Introdução
Os cuidados obstétricos relacionados com o trabalho de parto são um dos cuidados prestados 24 horas por dia no Serviço Nacional de Saúde. A maioria dos estudos aponta para uma distribuição equilibrada do número de partos que ocorre durante o dia e durante a noite1-6.
Vários estudos ao longo dos últimos anos têm analisado a atividade clínica nos blocos de partos e a relação entre os desfechos obstétricos e neonatais e o dia da semana ou a hora em que ocorre o nascimento2,6-14. Os resultados são contraditórios, com alguns estudos a apontarem para um aumento do risco de desfechos adversos neonatais em partos ocorridos durante a noite2,12,15,16, nomeadamente com mais admissões na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais (UCIN)15 e maior mortalidade perinatal12,16, enquanto outros estudos não encontraram diferenças no que se refere aos desfechos adversos maternos ou perinatais3-5,13,14.
Em Portugal, até à data, foi realizado apenas um estudo no Centro Hospitalar de São João, entre 2008 e 20124. Neste estudo, foram analisados 9143 partos e comparados os desfechos maternos e neonatais em três períodos do dia (das 8:00 às 16:00, das 16:00 às 00:00 e das 00:00 às 08:00). Não se verificaram diferenças em relação aos principais desfechos, nomeadamente asfixia neonatal, admissões na UCIN, mortalidade materna e neonatal, hemorragia pós-parto ou admissões maternas na Unidade de Cuidados Intensivos ou Intermédios.
O objetivo deste estudo é avaliar a diferença na atividade clínica do Bloco de Partos de um hospital terciário, entre o período diurno e o noturno, em relação ao número e tipo de partos e aos desfechos maternos e perinatais.
Métodos
Estudo retrospetivo que analisou todos os partos ocorridos num hospital terciário em Portugal (Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, Hospital de Santa Maria, Portugal) no período decorrido entre 1 de janeiro de 2018 e 29 de fevereiro de 2020. Neste Centro Hospitalar, o Bloco de Partos é assegurado, 24 horas por dia, por uma equipa obstétrica composta por 5 elementos (2 ou 3 Especialistas em Ginecologia/Obstetrícia e 2 a 3 Internos de Formação Especializada em Ginecologia/Obstetrícia) e por uma equipa de enfermagem composta por 5 elementos no turno da manhã (dos quais 3 Enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica - EESMO) e 4 elementos nos turnos da tarde e noite (dos quais 2 Enfermeiros EESMO). Os turnos são habitualmente de 24 horas para todos os elementos da equipa médica. Existe ainda apoio em presença física de, pelo menos, um Anestesiologista. No Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, existe uma UCIN, contando o Bloco de Partos com o apoio de um Neonatologia 24 horas por dia. Nesta maternidade, ocorrem cerca de 2400 partos por ano.
Foram recolhidos dados sobre as características dos partos e respetivas complicações, nos dois períodos - dia (das 9:00 às 21:00) e noite (das 21:00 às 9:00). Relativamente às características dos partos, foram recolhidas informações sobre: tipo de parto (eutócico, distócico, cesariana, parto gemelar vaginal, parto pélvico vaginal), responsável pela realização de partos eutócicos (Médico ou Enfermeiro Especialista em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica), motivo para a instrumentação do parto; tipo de cesariana (programada, urgente ou emergente), horário e motivo da realização da cesariana, complicações (índice de Apgar<7 ao 5º minuto de vida, admissões na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais, lacerações perineais de 3º ou 4º grau, hemorragia pós-parto e distócia de ombros).
Até 30 de abril de 2019, estes dados foram recolhidos do Registo de Nascimentos realizado pela equipa de enfermagem e dos registos cirúrgicos, de partos distócicos e de complicações preenchido pela equipa médica. A partir de 1 de maio de 2019, todos os registos foram realizados no software Obscare (Porto, Portugal).
Na análise estatística, foi realizada uma análise descritiva com medidas apropriadas às variáveis em estudo. Para a comparação das complicações entre os dois períodos, foi utilizado o teste qui-quadrado, de acordo com o apropriado para variáveis categóricas. Foi utilizado o software SPSS versão 26.0.
Resultados
No período do estudo ocorreram 5306 partos. Destes, 43,1 % (2286) ocorreram no período noturno. Se não forem consideradas as cesarianas programadas, a percentagem de partos realizados durante a noite foi de 46,8 % (2261). Nos Tabelas I e II, está descrita a distribuição do tipo de parto pelos dois períodos.
Relativamente aos partos eutócicos, 47,3 % (1264) foram realizados no período noturno. No período diurno, 55,1 % foram realizados pela equipa de enfermagem, sendo esta percentagem de 63,3 % no período noturno (Tabela I).
Dos 1202 partos distócicos ocorridos no período do estudo, 44,9 % (540) foram realizados no período noturno. O principal motivo para a instrumentação em ambos os períodos foi o estado fetal não-tranquilizador (percentagem de partos do período diurno versus período noturno -38,2 % versus 42,2 %), seguido da ausência/paragem de descida da apresentação (32,6% versus 25,7 %) e o período expulsivo arrastado (13,0 % versus 14,8 %). No Tabela III, estão descritos de forma detalhada os motivos para a instrumentação dos partos.
Em relação às cesarianas, 67 % (898) foram realizadas no período diurno. Se apenas forem consideradas as cesarianas urgentes ou emergentes, 47,8 % (393) foram realizadas no período noturno. Do total de cesarianas realizadas entre as 9:00 e as 21:00, 50,1 % (450) foram cesarianas programadas, 41,4 % (372) urgentes e 6,3 % (57) emergentes. No período noturno, 5,7 % (25) das cesarianas realizadas foram programadas, 72,4 % (320) urgentes e 16,5 % (73) emergentes. No período diurno (Tabela IV), o principal motivo para a realização de cesarianas foi a cirurgia uterina prévia em 27,1 % (243) dos casos, seguido da situação ou apresentação fetal anómala em 16,7 % (150) e do trabalho de parto estacionário em 15,8 % (142). No período noturno, os principais motivos foram o trabalho de parto estacionário em 29,1 % (129) dos casos, o estado fetal não tranquilizador em 28,0 % (124) e a situação ou apresentação fetal anómala em 9,5 % (42). Na Figura 1, está retratada a distribuição do horário da realização de cesarianas ao longo do dia.
As complicações (Tabela V), nomeadamente ocorrência de lacerações de 3º ou 4º graus, índice de Apgar<7 ao 5º minuto, hemorragia pós-parto e distócia de ombros, não foram diferentes nos dois períodos, à exceção da admissão de recém-nascidos na Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais que foi significativamente superior no período diurno (p = 0,01). Não se verificaram mortes maternas.
Discussão
Este trabalho foi realizado num hospital terciário e de apoio perinatal diferenciado, sendo, por isso, um Centro Hospitalar para o qual é transferido um elevado número de grávidas com várias comorbilidades e/ou complicações fetais e obstétricas complexas. Por este motivo, as equipas de urgência, médica e de enfermagem, são constituídas por um número de elementos que permite garantir a prestação de cuidados de saúde de qualidade em todos os momentos do dia. Até ao momento, ainda não havia sido feita nenhuma análise, neste centro hospitalar, relativamente ao volume da atividade tocológica e das complicações associadas de acordo com os períodos do dia - diurno ou noturno.
Foi possível verificar que existe uma distribuição equilibrada do número de partos nos dois períodos do dia considerados (diurno - entre as 9:00 e as 21:00 - e noturno - entre as 21:00 e as 9:00). No global, 43,1 % dos partos ocorreram no período noturno, aumentando esta proporção para quase 50% se não tivermos em consideração as cesarianas programadas, que ocorrem, na sua grande maioria, durante o período da manhã. Este equilíbrio mantém-se se for considerado igualmente cada tipo de parto individualmente: 47,3% dos partos eutócicos, 44,9 % dos partos distócicos e 47,8% das cesarianas urgentes ou emergentes ocorreram entre as 21:00 e as 9:00. Esta distribuição equilibrada dos partos coincide com os dados encontrados na literatura1-6.
É possível verificar que a proporção de partos eutócicos que fica a cargo da equipa de enfermagem é superior no período noturno, o que reforça a importância de garantir a presença de um número adequado de Enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Materna e Obstétrica em todos os períodos do dia.
A realização de cesarianas ao longo do dia e da noite não é uniforme. Podemos observar, como seria expectável, um maior número de cesarianas programadas realizadas entre as 10:00 e as 12:00. Em relação às cesarianas urgentes ou emergentes podemos verificar que existe um pico na sua realização entre as 23:00 e a 01:00.
Relativamente aos desfechos maternos e neonatais, não se verificaram diferenças significativas entre os partos ocorridos nos dois períodos, à exceção de uma taxa de admissões na UCIN superior no período do dia, que consideramos estar relacionada com partos programados para ocorrer no período do dia pela necessidade de apoio perinatal por patologia fetal, como, por exemplo, restrições de crescimento fetal ou malformações fetais.
As limitações deste estudo são o facto de se tratar de um estudo retrospetivo, ter sido realizado em apenas uma maternidade, apresentar uma amostra pequena, a qual poderá não refletir a realidade nacional, e o facto de não terem sido recolhidas informações relativamente à mortalidade perinatal, nem relativamente aos internamentos maternos em Unidades de Cuidados Intensivos/Intermédios. Além disso, as complicações registadas são eventos raros, pelo que a amostra poderá não ter tido dimensão suficiente para demonstrar eventuais diferenças. Acresce como limitação, o facto de terem sido incluídos na análise das complicações os partos ocorridos por cesariana eletiva que, por estarem associados por vezes à programação de partos de fetos com patologia de base (restrição de crescimento fetal, malformações) poderá mascarar diferenças entre os dois períodos.
Este trabalho foi realizado numa maternidade na qual não existem diferenças significativas no número de elementos que compõem as equipas de urgência no período diurno e no período noturno e vem reforçar a importância que o número de elementos que compõem as equipas de urgência que garantem o funcionamento dos Blocos de Partos seja adequado e mantido ao longo das 24 horas. No mesmo sentido, torna-se também essencial o apoio permanente nas 24 horas do dia por parte de Neonatologistas e Anestesiologistas. Conclusões semelhantes foram constatadas num trabalho realizado anteriormente numa outra maternidade portuguesa4, cujas constituição da equipa de urgência é também equilibrada entre o período diurno e noturno.
Neste estudo não foram encontradas diferenças no número de partos ou nas complicações maternas ou neonatais ocorridas entre o período diurno e noturno, à exceção de um maior número de internamento na UCIN no período diurno.