Lei, ciência e política convivem há longos anos. Nem sempre foi uma convivência pacífica e em muitos casos foi mesmo tumultuosa. A tentação de colocar a ciência ao serviço de interesses políticos é grande e a História deu-nos um sem número de exemplos que deixaram marcas e cicatrizes profundas na sociedade.
Por outro lado, casos houve em que alguns avanços científicos colidiram com a “moral vigente” uma vez que não existindo legislação adequada os limites à atividade científica estavam nos escrúpulos (ou na falta deles) de quem a exercia.
Foram pois criadas “válvulas de escape” no sistema legislativo que nomeia comissões compostas por técnicos, juristas e outros elementos ligados de uma forma ou outra à ética na ciência. É neste contexto que surge também legislação que enquadra e regulamenta o funcionamento das Comissões Técnicas para Certificação da Interrupção Médica da Gravidez (CTCIMG).
A própria Comissão Europeia manifestou uma forte preocupação, que se traduziu no documento que ficou conhecido pelo nome de Convenção de Oviedo, que corresponde a um compromisso de proteção dos direitos do Homem e da dignidade do ser humano face às aplicações da biologia e da medicina, e que entrou em vigor na ordem internacional no dia 1 de Dezembro de 1999. Daí para cá já sofreu vários protocolos adicionais, o último dos quais em 2013, para se atualizar face a novos progressos neste campo.
Obviamente que as Sociedades Científicas também devem assumir as suas responsabilidades promovendo por um lado a elaboração, divulgação e atualização de protocolos de atuação clínica que servem para balizar a nossa atividade, e por outro auscultando os profissionais, por forma a perceber com que dificuldades se confrontam na sua prática clínica diária.
Foi isso mesmo que aconteceu no passado dia 1 de Outubro, altura em que a Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-natal (APDPN) convidou para uma reunião, realizada em Aveiro, as CTCIMG de todos os hospitais públicos e privados do Continente e Ilhas, para dar voz e ouvir quais são os maiores constrangimentos à nossa atividade nesta área.
Dos 48 convites (41 a hospitais do SNS e 7 a hospitais particulares) responderam presente 34 CTCIMG (31 do SNS e 3 privados), representando uma larga maioria dos profissionais que trabalham em diagnóstico pré-natal no nosso País.
No mês de Agosto fizemos chegar um questionário juntamente com o convite para participarem na reunião. Nesse questionário, para além de perguntas técnicas, também havia outras relacionadas com a logística e o funcionamento destas Comissões, tendo as respostas dadas servido de mote para lançar a discussão.
Foi unânime a opinião que nos dias de hoje a legislação que enquadra a nossa atividade é por demais desadequada e desajustada da realidade do diagnóstico pré-natal (DPN), o que não é de estranhar uma vez que a última vez que os prazos legais para excluir a ilicitude da interrupção médica de gravidez no que à alínea c) diz respeito foram alterados, foi há quase 25 anos.
Temos hoje em dia uma qualidade média de exames ecográficos obstétricos muito elevada, fruto da enorme diferenciação e vontade de aprender de quem se dedica à ecografia obstétrica; temos em curso, ao fim de longos anos de luta (e o tributo devemos prestá-lo ao Pof. Nuno Montenegro e aos Drs. José Matos Cruz e Joaquim Correia), o reconhecimento de quem tem competência para realizar ecografia obstétrica diferenciada e trabalhamos de mãos dadas com uma das especialidades médicas em que a evolução é mais extraordinária - a genética médica -. O estudo do feto evoluiu muito porque a nossa capacidade de diagnóstico, o conhecimento cada vez mais profundo da história natural de cada malformação, aliados a estudos genéticos que demoram hoje em dia pelo menos 3 a 4 semanas, fazem com que o prazo legal para interromper uma gravidez em Portugal (as 24 semanas ) seja facilmente ultrapassado, obrigando-nos a ser criativos para contornar a lei (o que não deixa de ser uma forma airosa de dizer que chegamos a trabalhar fora da lei ), ou angustiando e desanimando quem sabe que ao cumprir escrupulosamente a lei não está a prestar a melhor assistência aos casais cujos fetos têm problemas graves.
Há que dizer que esta lei cria iniquidade ao estimular o “turismo para interrupção” apenas a quem tem meios económicos que lhe permite deslocar-se a países com leis diferentes da nossa, sendo muitas vezes atendidos por profissionais menos diferenciados que os portugueses, mas que lhes possibilitam interromper a gravidez mais tardiamente.
E não será isto uma verdadeira violência obstétrica, legislada?
Outra preocupação extensiva a muitos dos participantes, e ainda relativa ao limite legal para interromper uma gravidez por causa fetal em Portugal, foi a de que perante um diagnóstico de uma situação que pode ser grave mas cujo prognóstico ainda não está completamente estabelecido, o casal opta muitas vezes pelo pedido de interrupção da gestação, sem ter a certeza do que poderia efetivamente ter acontecido caso tivesse tido a opção de prosseguir a gravidez até uma idade gestacional em que o prognóstico pudesse estar mais seguramente estabelecido, o que cria também muitas dificuldades éticas às CTCIMG. E este é um problema extensivo a todos os profissionais que vigiam grávidas e não só a quem trabalha em diagnóstico pré-natal.
Que impacto terá esta dúvida na “metabolização” do processo de luto?
Quantos fetos serão poupados a uma interrupção de gravidez se o limite para interromper for alargado?
Está na altura de fazermos ver ao legislador que a interrupção médica de gravidez por causa fetal não deveria estar dependente da idade gestacional mas do tipo de patologia sendo, portanto, urgente a sua sensibilização para a alteração da redação da alínea c) da lei 16/2007, adequando-a à evolução técnica e científica e permitindo aos profissionais trabalhar de acordo com o que são boas práticas em DPN.