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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

Print version ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.15 no.4 Algés Dec. 2021  Epub Dec 31, 2021

 

Artigo de opinião/ Opinion article

É tempo de mudança...

It’s time to change

Álvaro Cohen1  , Presidente da Comissão Instaladora

1. Antigo Presidente da APDPN. Atual membro da direção da APDPN. Presidente da Comissão Instaladora do Colégio de Competência em Ecografía Obstétrica Diferenciada (CCEOD). Portugal.


Lei, ciência e política convivem há longos anos. Nem sempre foi uma convivência pacífica e em muitos casos foi mesmo tumultuosa. A tentação de colocar a ciência ao serviço de interesses políticos é grande e a História deu-nos um sem número de exemplos que deixaram marcas e cicatrizes profundas na sociedade.

Por outro lado, casos houve em que alguns avanços científicos colidiram com a “moral vigente” uma vez que não existindo legislação adequada os limites à atividade científica estavam nos escrúpulos (ou na falta deles) de quem a exercia.

Foram pois criadas “válvulas de escape” no sistema legislativo que nomeia comissões compostas por técnicos, juristas e outros elementos ligados de uma forma ou outra à ética na ciência. É neste contexto que surge também legislação que enquadra e regulamenta o funcionamento das Comissões Técnicas para Certificação da Interrupção Médica da Gravidez (CTCIMG).

A própria Comissão Europeia manifestou uma forte preocupação, que se traduziu no documento que ficou conhecido pelo nome de Convenção de Oviedo, que corresponde a um compromisso de proteção dos direitos do Homem e da dignidade do ser humano face às aplicações da biologia e da medicina, e que entrou em vigor na ordem internacional no dia 1 de Dezembro de 1999. Daí para cá já sofreu vários protocolos adicionais, o último dos quais em 2013, para se atualizar face a novos progressos neste campo.

Obviamente que as Sociedades Científicas também devem assumir as suas responsabilidades promovendo por um lado a elaboração, divulgação e atualização de protocolos de atuação clínica que servem para balizar a nossa atividade, e por outro auscultando os profissionais, por forma a perceber com que dificuldades se confrontam na sua prática clínica diária.

Foi isso mesmo que aconteceu no passado dia 1 de Outubro, altura em que a Associação Portuguesa de Diagnóstico Pré-natal (APDPN) convidou para uma reunião, realizada em Aveiro, as CTCIMG de todos os hospitais públicos e privados do Continente e Ilhas, para dar voz e ouvir quais são os maiores constrangimentos à nossa atividade nesta área.

Dos 48 convites (41 a hospitais do SNS e 7 a hospitais particulares) responderam presente 34 CTCIMG (31 do SNS e 3 privados), representando uma larga maioria dos profissionais que trabalham em diagnóstico pré-natal no nosso País.

No mês de Agosto fizemos chegar um questionário juntamente com o convite para participarem na reunião. Nesse questionário, para além de perguntas técnicas, também havia outras relacionadas com a logística e o funcionamento destas Comissões, tendo as respostas dadas servido de mote para lançar a discussão.

Foi unânime a opinião que nos dias de hoje a legislação que enquadra a nossa atividade é por demais desadequada e desajustada da realidade do diagnóstico pré-natal (DPN), o que não é de estranhar uma vez que a última vez que os prazos legais para excluir a ilicitude da interrupção médica de gravidez no que à alínea c) diz respeito foram alterados, foi há quase 25 anos.

Temos hoje em dia uma qualidade média de exames ecográficos obstétricos muito elevada, fruto da enorme diferenciação e vontade de aprender de quem se dedica à ecografia obstétrica; temos em curso, ao fim de longos anos de luta (e o tributo devemos prestá-lo ao Pof. Nuno Montenegro e aos Drs. José Matos Cruz e Joaquim Correia), o reconhecimento de quem tem competência para realizar ecografia obstétrica diferenciada e trabalhamos de mãos dadas com uma das especialidades médicas em que a evolução é mais extraordinária - a genética médica -. O estudo do feto evoluiu muito porque a nossa capacidade de diagnóstico, o conhecimento cada vez mais profundo da história natural de cada malformação, aliados a estudos genéticos que demoram hoje em dia pelo menos 3 a 4 semanas, fazem com que o prazo legal para interromper uma gravidez em Portugal (as 24 semanas ) seja facilmente ultrapassado, obrigando-nos a ser criativos para contornar a lei (o que não deixa de ser uma forma airosa de dizer que chegamos a trabalhar fora da lei ), ou angustiando e desanimando quem sabe que ao cumprir escrupulosamente a lei não está a prestar a melhor assistência aos casais cujos fetos têm problemas graves.

Há que dizer que esta lei cria iniquidade ao estimular o “turismo para interrupção” apenas a quem tem meios económicos que lhe permite deslocar-se a países com leis diferentes da nossa, sendo muitas vezes atendidos por profissionais menos diferenciados que os portugueses, mas que lhes possibilitam interromper a gravidez mais tardiamente.

E não será isto uma verdadeira violência obstétrica, legislada?

Outra preocupação extensiva a muitos dos participantes, e ainda relativa ao limite legal para interromper uma gravidez por causa fetal em Portugal, foi a de que perante um diagnóstico de uma situação que pode ser grave mas cujo prognóstico ainda não está completamente estabelecido, o casal opta muitas vezes pelo pedido de interrupção da gestação, sem ter a certeza do que poderia efetivamente ter acontecido caso tivesse tido a opção de prosseguir a gravidez até uma idade gestacional em que o prognóstico pudesse estar mais seguramente estabelecido, o que cria também muitas dificuldades éticas às CTCIMG. E este é um problema extensivo a todos os profissionais que vigiam grávidas e não só a quem trabalha em diagnóstico pré-natal.

Que impacto terá esta dúvida na “metabolização” do processo de luto?

Quantos fetos serão poupados a uma interrupção de gravidez se o limite para interromper for alargado?

Está na altura de fazermos ver ao legislador que a interrupção médica de gravidez por causa fetal não deveria estar dependente da idade gestacional mas do tipo de patologia sendo, portanto, urgente a sua sensibilização para a alteração da redação da alínea c) da lei 16/2007, adequando-a à evolução técnica e científica e permitindo aos profissionais trabalhar de acordo com o que são boas práticas em DPN.

Recebido: 01 de Dezembro de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

Endereço para correspondência Álvaro Cohen E-mail: alvaro.cohen65@gmail.com

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