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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versión impresa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.16 no.4 Algés dic. 2022  Epub 31-Dic-2022

 

Beyond Science/Para Além da Ciência

Fazer o melhor que podemos... para uma saúde melhor

Do the best that we can... for a better health

Filipa Sousa1  , Revisora

Joana Oliveira1  , Revisora

Teresa Bombas2  , Vogal

1. Revisora da revista Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa. Portugal.

2. Vogal da revista Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa. Portugal.


Cores, cheiros e sabores: a mistura incrivelmente mágica que Moçambique nos ofereceu mal aterrámos no aeroporto. A brisa quente, suave e tranquila rapidamente nos envolveu e naquele mesmo instante sentimos que sempre fizemos parte daquele lugar, do mesmo meio daquela gente.

A chegada ao Hospital Central de Maputo não podia ter sido mais calorosa. Desde a Equipa Médica, de Enfermagem, às Assistentes Operacionais, aos Porteiros do Hospital, foi sem dúvida um exceder de expectativas.

Num pequeno instante estávamos vestidas a rigor e era-nos impossível esperar mais. Ansiávamos há muito por esta vivência, este desafio, e já só queríamos deixar um pouco de nós.

Ao entrar na sala de partos, os gritos de dor eram audíveis, instalando-se-nos um misto de ansiedade e exacerbando o sentimento de missão. A dor do parto não é algo com que contactamos diariamente. A força, a coragem com que a mulher moçambicana lidava com a dor ficarão guardadas para sempre nas nossas memórias.

Com a nossa atenção dividida entre 16 salas de parto e ainda a admissão, eram os gritos mais altos de dor que nos serviam de bússola para socorrer o parto mais iminente. Quando chegava o momento do parto, onde todas as posições antálgicas eram permitidas, os nossos incentivos para os esforços expulsivos iam do Português ao Changana - “Kukumucha mama, kukumucha” ecoava naquelas salas.

Além da capulana para a “mama” e da capulana que aconchega o recém-chegado membro da família, um curioso elemento fazia-nos sentir em casa: a garrafa de Compal© na mesa de cabeceira que reconfortava aqueles corações cansados, mas tão agradecidos pela nossa presença e acompanhamento no parto.

No meio desta azáfama, iam entrando grávidas com convulsões: chegou a temida “eclâmpsia”, esta que para nós quase só nós livros existia, passou a “tomar café” connosco diariamente. “Senhora enfermeira, sulfato de magnésio, dihidralazina por favor”... “Hei-de trazer doutora, hei-de trazer”, eram frases do nosso quotidiano.

A morte fetal também fez parte do nosso dia-a-dia. Na admissão muitas vezes nos deparámos com a ausência de foco fetal, e apesar da alta taxa de natalidade, as lágrimas rolavam-lhes pelo rosto, sobrando apenas as nossas palavras e o nosso abraço como conforto.

E para abanar ainda mais a nossa estrutura, surgiu-nos a amarga morte materna, vivenciada nas nossas mãos. Sem armas para combater uma batalha já perdida à entrada na maternidade, seguiu-se uma cesariana peri-mortem numa tentativa desesperada de salvação de uma adolescente de 18 anos. Após vários minutos de manobras de reanimação que pareciam horas, e na ausência de recursos, seguiu-se um silêncio ensurdecedor. Restou-nos lidar com a lancinante frustração. Até na Obstetrícia a vida pode ser tão efémera.

Tempo houve ainda para a formação: três máquinas de registo cardiotocográfico e um ecógrafo portátil, o nosso amigo “butterfly”, eram membros recentes da equipa, em período de integração. Ao deixarmos as nossas marcas levámos também connosco das maiores experiências da nossa vida.

E esta troca não se resumiu somente à parte académica. Ouvir os relatos na primeira pessoa do tumulto vivido durante a independência moçambicana e a separação forçada de uma mulher portuguesa a quem sempre chamou de mãe, foi de ficar com coração partido e invadiu-nos uma vontade profunda de mudar o passado. Mas a alegria cobria os dias daquele povo, desde danças na sala de partos, sorrisos de estranhos nas ruas, até às festas pela cidade ensinaram-nos que é possível ser-se feliz com pouco. A lente com que agora vemos o mundo é mais bonita!

Moçambique: a tua gente, as tuas ruas, as tuas praias, o teu mar e o teu vento, como nos transformaste em melhores pessoas, melhores médicas, e nos deste alento.

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