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Observatorio (OBS*)

versão On-line ISSN 1646-5954

OBS* vol.11 no.3 Lisboa set. 2017

 

A Construção Mediática da Corrupção Política. Opinião e Informação sobre os casos BPN, Freeport e Face Oculta nos noticiários televisivos portugueses

The Media Construction of Political Corruption. Opinion and News about BPN, Freeport and Face Oculta on the Portuguese TV Newscasts

 

Rita Figueiras*

*Universidade Católica Portuguesa, Portugal

 

RESUMO

Este artigo pretende contribuir para um melhor conhecimento acerca do modo como os comentadores abordaram nos noticiários televisivos do prime-time dos canais generalistas portugueses três dos casos de corrupção mais mediatizados nos últimos anos em Portugal: os casos BPN, Freeport e Face Oculta. Analisamos os temas, atores, tom e estilo dos comentários sobre os casos de corrupção e aferimos a conexão entre a narrativa do comentário e a da cobertura jornalística sobre os mesmos casos.

O estudo permitiu concluir que a cobertura noticiosa foi o expectável ponto de partida dos comentários, mas em sede da opinião identificámos a produção de uma narrativa muito diferente da noticiosa. Os comentadores ordenaram e relevaram os factos de modo distinto e construíram uma narrativa conflitual, consubstanciada em tons negativos sobre o que entenderam ser o comportamento desadequado dos atores envolvidos. Propuseram uma versão dos acontecimentos em cuja narração encontramos histórias personificadas sobre a luta de poder nas e entre as mais altas instâncias das esferas política, judicial e de regulação portuguesas.

Palavras-chave: Comentadores, Comentário, Noticiários, Televisão, Corrupção Política

 

ABSTRACT

This research article aims at contributing to shad light on how television commentators address in prime-time TV newscasts three of the most well-known corruption cases in Portugal in the last years: BPN, Freeport and Face Oculta. Topics, actors, tones and the narrative style of the comments will be analyzed against the news narratives on the same cases. The study concluded that news coverage was the expected point of departure for comments, but the opinion narrative was quite different from the news story about the corruption cases analyzed. Comments were more adversarial, negative and judgmental against what commentators perceived as bad behavior of the actors involved. Commentators built a different version of facts and a personalized narrative about power struggle inside and between the heads of the Portuguese political, judicial and regulatory spheres.

Keywords: Commentators, Comments, Newscasts, News, Political Corruption

 

A crescente presença de escândalos de corrupção nos media ocidentais tem as suas raízes no declínio das ideologias, na regulamentação jurídica da vida política e na emergência da política de confiança. Ou seja, os escândalos ganharam maior protagonismo mediático a partir do momento em que o discurso político passou a colocar a ênfase não em projetos e questões ideológico-partidárias, mas no carácter e na credibilidade dos políticos.

Neste contexto, os partidos e os seus líderes passaram a retirar dividendos das falhas de carácter, reais ou presumidas, dos seus oponentes e a violação dos códigos de conduta tornou-se uma arma eficaz na luta pela vantagem política, tornado os políticos vulneráveis a qualquer tipo de publicidade negativa. A cultura do escândalo em vigor nas sociedades ocidentais pode, assim, ser perspectivada como um dos reversos da medalha da política de confiança, uma vez que os escândalos, ao destacarem transgressões de códigos e condutas que regulam o exercício de cargos públicos, alimentam-se de um dos bens simbólicos mais relevantes para qualquer indivíduo: a sua reputação (Thompson, 2002; Ekström & Johansson, 2008).

Este enquadramento ajuda a compreender por que é que os escândalos de corrupção ganharam tanta visibilidade nas democracias contemporâneas (Thompson, 2002 e 2005). De acordo com a International Transparency (2010, xxvi), a corrupção caracteriza-se pelo abuso do poder (delegado) para ganhos privados. Este é um crime complexo que tende a articular diferentes campos de poder, nomeadamente a política (mau uso ou abuso de poder) e a economia (infração de leis que regulam a aquisição e gestão de recursos económicos)1, mas também os media. Os meios de comunicação são imprescindíveis no processo de revelação (Blankenburg, 2002) e construção dos próprios escândalos que são, cada vez mais, indissociáveis da sua mediatização (Thompson, 2002; Ekström & Johansson, 2008).

Na mediatização dos escândalos de corrupção, a par das notícias, os comentários desempenham um papel relevante na construção da perceção pública. Os comentadores fazem parte do conjunto de atores que, numa hierarquia de influências e relações distintas, contribuem para a configuração dos temas em circulação nos media e para moldar a perceção dos cidadãos sobre as questões públicas, nomeadamente a corrupção política.

Apesar de o espaço de opinião ser um lugar de reconhecida influência mediática, social e política em Portugal, o modo como os comentadores abordam os assuntos públicos, em particular questões de corrupção política, tem tido escassa atenção académica. Em linha com estudos já realizados sobre o tema (Figueiras, 2015), este artigo pretende contribuir para um melhor conhecimento acerca do modo como os comentadores abordaram nos noticiários televisivos de prime time dos canais generalistas portugueses, três dos casos de corrupção mais mediatizados nos últimos anos em Portugal: os casos BPN, Freeport e Face Oculta. O estudo tem dois grandes objetivos: (1) analisar a narrativa do comentário e (2) aferir a relação entre esta e a narrativa das notícias sobre os casos em análise. Estes objetivos decorrem da assunção de que o comentário tem uma conexão com as notícias, porque a agenda do comentário é cada vez mais presentificada e parte das notícias para debater os assuntos em agenda, mas também porque a construção social dos assuntos é fortemente determinada pelo modo como ambos os discursos – o jornalístico e o de opinião – abordam os temas públicos.

 

A Mediatização da Corrupção

Nas sociedades ocidentais, a política é feita primordialmente com e através dos media, que são igualmente a principal fonte de informação dos cidadãos. Isto confere aos meios de comunicação um poder enorme na construção da realidade política e no moldar da cognição pública (Altheide, 2004; Luhmann, 2005). A capacidade dos meios de comunicação influenciarem as atitudes e as opiniões públicas é considerável, mesmo que seja sempre difícil encontrar provas claras de uma relação causal entre a construção mediática da realidade e a percepção pública dessa mesma realidade.

Os media constroem uma determinada realidade política através de um conjunto de quadros explicativos (enquadramentos) para retratar a atividade política que, por sua vez, são negociados com os atores políticos (interação entre os media e a política) e que impõem uma certa definição da realidade (definição da agenda pública). As regras envolvidas na cobertura política incluem, assim, três sistemas de regularidades interligados (Marcinkowski, 2014, 7): regularidades de seleção – escolha consciente de eventos, situações e questões para informação pública; regularidades de narração – forma de contar as estórias que obedece a uma estrutura sequencial padronizada, e, regularidades de interpretação – construção padronizada de significados.

Os meios de comunicação usam estas rotinas para selecionar e apresentar os assuntos públicos em formatos familiares. Sob tais condições, a comunicação política produzida pelos media tem frequentemente propriedades previsíveis, como o foco em imagens fortes, uma preferência por eventos em vez de estruturas, tal como por pessoas em vez de instituições ou ideias. Os media dão ainda especial atenção a conflitos e a interpretações da política como uma competição (Brants & Voltmer, 2011; Aalberg & Curran, 2012; Aalberg, Strömbäck & de Vreese, 2012; Figueiras, 2017).

No que diz respeito aos casos de corrupção, o jornalismo desempenha um papel fundamental na revelação de dados relacionados com este tipo de crime, mas não o fazem sozinhos. Num estudo de 2002, Erhard Blankenburg identificou uma aliança entre juízes e jornalistas com o objetivo de divulgarem informações cuidadosamente selecionadas e que alimentam a presença de determinados casos de corrupção nos media. Deste modo, a perceção que o público tem deste tipo de crimes é fortemente estruturada pela cobertura noticiosa, que tende a descontextualizar e a dramatizar os casos, enfatizando determinados fatos em detrimento de outros e ordenando-os em benefício de uma narrativa apelativa.

A perceção que o público tem dos crimes de corrupção é, então, fortemente estruturada pela cobertura noticiosa. Esta é um produto da lógica comercial e concorrencial que transformou o setor dos media numa indústria baseada no escândalo, mas é igualmente um produto da luta entre opositores políticos partidários e não-partidários e da necessidade que os jornalistas têm de demonstrar que estão a cumprir a sua função política de vigilância e denúncia dos abusos de poder (Thompson, 2002; Ekström & Johansson, 2008).

Neste processo, os comentadores também desempenham um papel significativo na construção da perceção pública dos temas em agenda, nomeadamente sobre a corrupção política. O espaço de opinião é um elemento constitutivo do processo comunicativo democrático (Nimmo & Combs, 1994; Figueiras, 2009; Jacobs & Townsley, 2011), e, em linha com o “cascading activation model” de Robert Entman (2003), podemos considerar que os comentadores desempenham um papel relevante na ativação da atenção e na formação da opinião pública, num processo que combina mecanismos de agenda-setting (definição da agenda pública), priming (grau de destaque dado aos temas), framing (enquadramento dado aos temas) e feedback (reação aos temas). Os comentadores fazem, assim, parte do conjunto de atores que, numa hierarquia de influências e relações distintas, condicionam o desenrolar dos assuntos no espaço público e contribuem para moldar a perceção que os cidadãos têm sobre variadas questões.

Em termos da tradição cultural ocidental, o comentário foi instituído como um espaço de mediação social (Nimmo, & Combs, (1992), como um lugar de esclarecimento das questões em destaque nos meios de comunicação. O reconhecimento que os comentadores contribuem para a configuração dos temas em circulação nos media e para moldar a perceção dos cidadãos justifica a pertinência deste estudo, que pretende contribuir para aprofundar o conhecimento sobre o comentário e os comentadores em Portugal, e também sobre o modo como contribuem para a construção social dos problemas públicos, e em particular da corrupção, na sociedade portuguesa.

 

Metodologia

Este artigo pretende contribuir para um melhor conhecimento acerca do modo como os comentadores abordaram nos noticiários televisivos de prime time dos canais generalistas portugueses, três dos casos de corrupção mais mediatizados nos últimos anos em Portugal: os casos BPN, Freeport e Face Oculta. Para tal, o estudo definiu dois grandes objetivos: (1) analisar a narrativa do comentário e (2) aferir a relação entre esta e a narrativa das notícias sobre os casos em análise.

Os dados usados neste artigo foram recolhidos no âmbito do projeto FCT “Corrupção Política nos Media: Uma Perspectiva Comparada”2. Na persecução do segundo objetivo do estudo, e no âmbito do projeto FCT referido, utilizamos dados secundários sobre a cobertura noticiosa dos casos e disponíveis em Cunha & Serrano, 2014 e 2015. É então possível aferir a relação entre ambas as narrativas, porque foram utilizadas as mesmas variáveis na análise das peças noticiosas e dos espaços de comentário.

O estudo tem como unidade de contexto da análise os noticiários televisivos de prime time (20 horas) dos canais generalistas portugueses: o Telejornal da RTP1, o Jornal da Noite da SIC e o Jornal Nacional/Jornal de Sexta da TVI. A unidade de registo é composta pelos segmentos de comentário emitidos nos noticiários de 2009, ano em que os casos BPN, Freeport e Face Oculta tiveram maior incidência nos jornais televisivos. O corpus de análise é assim constituído por 64 comentários, perfazendo um total de quatro horas, vinte e oito minutos e cinquenta e nove segundos de opiniões emitidas nos noticiários de prime time das televisões generalistas portuguesas sobre os três casos de corrupção referidos.

O estudo da narrativa da opinião combina dois níveis de análise. Em primeiro lugar, aferimos os temas (identificação dos tópicos associados a cada caso em análise), os atores (personalidades colocadas no centro de ambas as narrativas) e o tom, que nos permite conhecer a avaliação dos comentadores sobre os casos em análise e dos seus principais protagonistas (modalidades: negativo, equilibrado, neutro e positivo). Ainda no âmbito da narrativa da opinião, com o objetivo de explorar as complexidades, nuances e camadas contidas nos comentários, analisamos o estilo das opiniões a partir de um conjunto de indicadores sistematizados em estudos realizados sobre o comentário (Figueiras, 2009 e 2015; Jacobs & Townsley, 2011) e consubstanciados em quatro modalidades: “analítico-interpretativo/explicativo” (explicação do contexto e consequências, bem como as relações entre os elementos que enformam temas, decisões ou escolhas); “tomada de posição” (argumentação de apoio ou crítica, sendo a opinião apresentada num formato a favor ou contra); “reenquadramento” (convite a reexaminar premissas básicas e/ou tentativa de reorientar a atenção para outras dimensões da questão em análise); “informativo” (apresentação de novos fatos, dados e elementos). A distinção analítica entre os indicadores nem sempre é fácil e simples e, por vezes, há intervenções que congregam vários, sendo isso evidente nos excertos de opinião apresentados neste estudo. Todavia, é possível identificar um estilo dominante com vista a aferir a narrativa do comentário.

Compreender a relação entre as narrativas jornalística e da opinião corresponde ao segundo objetivo deste estudo. Tal como referido, esta relação é possível de ser estabelecida, porque as categorias aplicadas na análise de conteúdo quantitativa da opinião são as mesmas que estão na base da análise das notícias sobre os casos BPN, Freeport e Face Oculta.

As narrativas jornalística e de opinião obedecem a lógicas particulares ainda que haja uma contiguidade entre ambas. A primeira está subordinada a uma lógica de produção de notícias para informar o cidadão, enquanto a segunda pressupõe um espaço de exposição de ideias suscitadas a propósito das notícias do dia ou da semana. A conexão entre o estilo dos comentários e o modo como a narrativa jornalística aborda os casos de corrupção referidos permite-nos extrair ilações sobre a relação entre ambas e saber se os comentários complementam e aprofundam a narrativa jornalística ou se, pelo contrário, o espaço de opinião produz uma narrativa distinta e autónoma sobre os casos de corrupção em avaliação. 

 

Os casos BPN, Freeport e Face Oculta nos noticiários televisivos

Tal como referido, este artigo pretende contribuir para um melhor conhecimento acerca do modo como os comentadores abordam nos noticiários televisivos de prime time dos canais generalistas portugueses, três dos casos de corrupção mais mediatizados nos últimos anos em Portugal: os casos BPN, Freeport e Face Oculta.

A partir dos dados recolhidos no âmbito do projeto de investigação “Corrupção política nos media: uma perspectiva comparada”, e sistematizados na tabela 1, é possível acompanhar a evolução dos casos nos noticiários de prime time entre 2005 e 2012. Todavia, antes de analisarmos a narrativa da opinião e aferirmos a relação entre as narrativas do comentário e das notícias, importa fazer uma breve apresentação dos casos em estudo.

 

 

O caso BPN refere-se a um conjunto de processos relacionados com os crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e tráfico de influências que interligaram o Banco Português de Negócios (BPN), a Sociedade Lusa de Negócios (SNL) e o Banco Insular, e que conduziram ao colapso e à nacionalização do BPN. O caso envolve membros dos governos PSD, liderados por Aníbal Cavaco Silva: José Oliveira e Costa, Manuel Dias Loureiro, Domingos Duarte Lima, Miguel Cadilhe e Arlindo de Carvalho. Em novembro de 2008, Oliveira e Costa é detido por suspeitas de burla, fraude fiscal e branqueamento de capitais. Em 2009, o Banco de Portugal acusa o banqueiro e mais 12 ex-responsáveis do BPN de terem fornecido informações falsas ao supervisor bancário e por terem falsificado a contabilidade do banco entre 2002 e 2007, ocultando a relação entre a SLN, o BPN e o Banco Insular. Em maio de 2015, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários condena Oliveira Costa ao pagamento de uma multa avultada por violação do dever de prestar informação devida aos clientes do banco, entre outras infrações. Por sua vez, a leitura da sentença do processo criminal está prevista para 2017 e envolve José Oliveira e Costa e outros arguidos que são acusados, entre outros crimes, de burla e fraude fiscal. Domingos Duarte Lima, advogado e ex-líder parlamentar do PSD na década de 1990, foi condenado em Novembro de 2014 a dez anos de prisão efetiva por burla qualificada e branqueamento de capitais.

Em termos de cobertura mediática, o caso BPN começou por ser notícia em 2005 (tabela 1). Nesse ano foram emitidas duas peças sobre possíveis irregularidades no banco, uma na SIC e outra na TVI. No ano seguinte, o número de peças sobe para oito e, em 2007, apesar de ser o ano em que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) abriu inquéritos criminais relacionados com a gestão do banco, não encontramos referências ao caso nos noticiários. Por sua vez, em 2008, ano da prisão de Oliveira e Costa e em que é aprovado o inquérito parlamentar sobre a atuação do BPN, o número de peças dispara para 226, aumentando para 546 em 2009. Nos dois anos seguintes, a quantidade de peças desce consecutivamente para 132 (2010) e 118 (2011), voltando a alcançar maior destaque em 2012, com 173 peças, nomeadamente por causa da detenção de Duarte Lima.

O Freeport teve na sua origem suspeitas de corrupção (ativa e passiva) e tráfico de influências na alteração à Zona de Proteção Especial do Estuário do Tejo, no licenciamento do espaço comercial de Alcochete, quando José Sócrates era Ministro do Ambiente. A estes indícios juntaram-se outros de branqueamento de capitais e financiamento ilegal de partidos políticos.

O caso começou a ser mediatizado nas vésperas das eleições legislativas de fevereiro de 2005, tornando-se José Sócrates – que era cabeça de lista pelo PS a essas eleições – um dos suspeitos de corrupção devido a ter subscrito o decreto-lei que aprovara a construção do outlet Freeport em Alcochete. O ex-Primeiro-Ministro não chegou, todavia, a ser ouvido na investigação do DCIAP, mas o tribunal considerou que do julgamento resultaram fortes indícios de que existiram pagamentos dentro do Ministério do Ambiente e da Administração Pública, tendo por base os depoimentos de três testemunhas que referiram que o então Ministro do Ambiente José Sócrates recebera pagamentos em dinheiro para viabilizar o projeto. Todavia, o inquérito não resultou em nenhuma acusação e o processo culminou na absolvição, em 2012, dos dois arguidos, Manuel Pedro e Charles Smith, da prática do crime de tentativa de extorsão aos promotores do centro comercial Freeport.

Ainda que este caso tenha sido objeto de atenção mediática pela primeira vez em 2005, foi apenas quando José Sócrates se recandidatou nas eleições legislativas de 2009 que o caso teve maior projeção. A tabela 1 indica-nos o percurso mediático deste processo nos canais de televisão generalista: no ano de 2005 registaram-se 27 peças sobre o tema, nenhuma no ano seguinte, 17 notícias em 2007, uma em 2008, 753 em 2009, 101 em 2010, 16 em 2011, e 82 peças em 2012.

O processo Face Oculta foi noticiado pela primeira vez no fim de outubro de 2009 e a leitura da sentença ocorreu em setembro de 2014. Neste processo todos os arguidos foram condenados, tendo sido muito comentadas as penas de prisão atribuídas aos envolvidos. Num primeiro nível, a noticiabilidade do caso decorreu do envolvimento de figuras cimeiras da administração pública e privada em Portugal, mas o foco central foi o envolvimento de Armando Vara, à época vice-presidente do BCP, ex-ministro dos governos de António Guterres e figura muito próxima do Primeiro-Ministro em funções. As acusações relacionavam-se com lavagem de dinheiro, corrupção política e evasão fiscal. Algumas semanas depois de se conhecer este caso ficou-se a saber da existência de escutas telefónicas entre Armando Vara e José Sócrates, dando origem ao caso das escutas. Este segundo caso refere-se a um alegado conluio orquestrado pelo Primeiro-Ministro para a compra da TVI pela PT, constituindo esta conduta um possível crime de atentado contra o estado de direito. Na base desta intenção estaria o objetivo de pôr termo a uma campanha jornalística negativa e prejudicial para o Primeiro-Ministro, bem ilustrada pela cobertura do processo Freeport pela TVI. Este caso trouxe novamente para o espaço público a discussão sobre o segredo de justiça.

O caso Face Oculta foi, então, objecto de atenção mediática a partir de Outubro de 2009 e foi nesse período eleitoral que o tema teve maior projeção mediática. Nos últimos meses desse ano foram emitidas 367 peças sobre o assunto, 213 em 2010, 113 em 2011, e 66 notícias em 2012.

Os dados coligidos na tabela 1 demonstram claramente a  relevância do ano de 2009 no ciclo noticioso dos três escândalos de corrupção. Este foi um ano com três atos eleitorais (Europeias, Legislativas e Autárquicas) e o ano em que os três casos atingiram o pico de maior atenção nos noticiários de prime time dos canais de televisão generalistas portugueses. Por esta razão, este é o período temporal de análise deste estudo sobre as narrativas dos comentários e das notícias produzidos acerca dos casos de corrupção referidos.

Em 2009, os noticiários de prime time da RTP1 e da TVI contam com a colaboração de comentadores residentes num dia específico da semana, enquanto, à época, a SIC não recorria a comentadores fixos no seu noticiário. Nesse ano encontramos Marcelo Rebelo de Sousa num espaço de opinião acoplado ao noticiário de Domingo da RTP1, e Miguel Sousa Tavares e Vasco Pulido Valente no noticiário da noite na TVI. Todavia, este último deixou de colaborar com o canal de Queluz na sequência do cancelamento do Jornal de Sexta, conduzido por Manuel Moura Guedes, em setembro de 2009. Após estas mudanças editoriais, António Peres Metello assume a função de comentador fixo do canal.

Em 2009 foram produzidos 64 comentários sobre os três casos de corrupção em análise: 32 sobre o Freeport, 21 sobre o BPN e 11 sobre o caso Face Oculta. Tendo os noticiários uma periodicidade diária, compreende-se o número substancialmente superior de peças jornalísticas face aos comentários, cuja cadência obedece a periodicidades distintas, predominando a semanal. Deste modo, os dados apresentados na tabela 2 não devem ser analisados em termos de dias, mas de semanas. Isto significa que os três casos foram comentados, pelos menos, uma vez por semana, revelando, assim, uma presença assídua e regular na agenda dos comentadores ao longo do ano. Neste contexto, importa destacar o caso Face Oculta. Este distingue-se dos outros dois, porque só irrompeu no espaço público no fim de outubro de 2009. Os 11 comentários registados foram então produzidos entre os últimos dias desse mês e meados de dezembro, correspondendo a uma média superior a um comentário por semana.

 

 

O Gráfico 1 permite-nos acompanhar a evolução dos casos nos espaços de opinião nos noticiários televisivos. Em primeiro lugar, verificamos que a presença dos casos no comentário – e, por maioria de razão, nos noticiários – parece ter evoluído em espelho. Ou seja, os meses em que o caso Freeport tem maior presença na opinião, corresponde aos meses em que o caso BPN também tem. A partir dos finais do mês de outubro, quando o caso Face Oculta ganha destaque mediático, o caso BPN regressa à agenda dos comentadores.

 

 

Para melhor compreendermos esta ilação importa recordar que os três casos envolvem (ou estão na órbitra de) figuras cimeiras do país no período em que tiveram maior destaque mediático – o Primeiro-Ministro e o Presidente da República – e os dois partidos mais votados em Portugal, o PS e o PSD. Os casos Freeport e Face Oculta envolvem o Primeiro-Ministro José Sócrates e individualidades próximas do líder do PS e o caso BPN está associado a ex-ministros dos governos PSD, liderados por Aníbal Cavaco Silva, Presidente da República quando o escândalo eclodiu.

Em segundo lugar, verificamos que a atenção aos casos concentrou-se entre meados de abril e de junho, período temporal que corresponde à fase da pré-campanha eleitoral das Europeias (realizadas a 7 de julho) e das Legislativas (realizadas a 27 de setembro). A fase de campanha propriamente dita costuma incidir sobre as atividades de campanha, nomeadamente as visitas a vários pontos do país, seguindo de perto a agenda dos candidatos (Cunha e Figueiras, 2013). Por sua vez, a fase de pré-campanha corresponde ao período em que se define o ambiente da contenda eleitoral, ou seja, o contexto narrativo em que a campanha se vai desenrolar. Esta é a fase em que os partidos propõem uma determinada imagem de si e dos cabeças de lista, construída em articulação com os seus temas de campanha, e, por contraposição, a uma determinada imagem do(s) candidato(s) diretamente oponente(s) (Cacciotto, 2015).

Em terceiro lugar, decorrente das ilações anteriores e da articulação dos dados disponibilizados na tabela 1 e no Gráfico 1, parece ser possível considerar que se verificou um uso estratégico destes casos de corrupção em momentos-chave da vida democrática portuguesa, nomeadamente a rentabilização política destes casos em período de campanha eleitoral.

O Gráfico 2 revela-nos a atenção que os comentadores deram aos três casos em cada canal de televisão. Dos 64 comentários, 25 foram emitidos na RTP1, 24 na TVI e 15 na SIC. O canal público foi o que deu maior destaque, mas estes dados devem, no entanto, ser contextualizados nas alterações registadas na TVI em setembro de 2009, altura em que o Jornal de Sexta, conduzido por Manuela Moura Guedes, foi suspenso e se começou a verificar uma suavização da linha editorial do canal, cujo enfoque até então caracterizava-se por uma abordagem incisiva e crítica da política, em linha com uma rentabilização comercial dos escândalos de corrupção. Esta hipótese parece ser corroborada pelos dados do Gráfico 2, nomeadamente a atenção que o canal deu aos casos Freeport e BPN, cujo maior destaque ocorreu até julho. Nos primeiros meses do ano de 2009, a TVI foi o canal que deu maior atenção a ambos os casos. No entanto, quando o Face Oculta irrompeu no fim de outubro, o noticiário da TVI foi o que deu um destaque menor a este caso.

 

 

A partir da tabela 3 é também possível verificar que o caso Freeport teve uma atenção mais homogénea nos três canais de televisão – 12 comentários na TVI, 10 na RTP1 e outros 10 na SIC –, enquanto os outros dois casos tiveram uma presença mais irregular nos espaços de opinião. O caso BPN foi comentado 10 vezes na TVI, nove na RTP1 e duas vezes apenas na SIC, e o Face Oculta foi objeto de seis comentários na RTP1, três na SIC e dois no noticiário de prime time da TVI. O Gráfico 2 permite-nos ainda concluir que a RTP1 deu uma atenção relativamente equitativa aos três casos. O Freeport foi comentado 10 vezes, o BPN foi objecto de nove comentários e o Face Oculta de seis no canal público de televisão.

 

 

A tabela 3 fornece-nos também informação sobre os comentadores, o seu perfil e o número de vezes que comentaram os casos em análise. Os tópicos foram debatidos com níveis de complexidade distintos dependendo do comentador em específico e o formato que enquadrou as suas possibilidades de expressão: poucos minutos no noticiário, partilha da análise com outros comentadores em estúdio ou o controlo do tempo dedicado ao caso em espaço de opinião em nome próprio.

A opinião apresentou-se sob a forma de três modalidades nos noticiários de prime-time: como um tema da agenda dos comentadores fixos, como uma forma de complementar a abordagem noticiosa, e como uma estratégia comercial e simbólica dos grupos de comunicação. Na primeira modalidade encontramos Marcelo Rebelo de Sousa (RTP1) e Miguel Sousa Tavares, Vasco Pulido Valente e António Peres Metello (TVI). Na segunda, Eduardo Dâmaso e Pedro Santos Guerreiro (RTP1), António José Teixeira, José Gomes Ferreira, Ricardo Costa, Luís Filipe Carvalho (SIC) e Rogério Alves (SIC e TVI). Encontramos a terceira modalidade em duas vezes apenas, na SIC e na TVI, onde em ambos os noticiários foram emitidas peças curtas com opiniões produzidas sobre o caso Freeport em programas de comentário nos canais de informação no cabo que pertencem aos mesmos grupos de comunicação: “Quadratura do Círculo” na SIC Notícias e “A Torto e a Direito” na TVI24. Ao mesmo tempo que estas opiniões ajudavam a reforçar uma determinada proposta de leitura sobre os casos, permitiam diversificar a abordagem jornalística nos noticiários televisivos e promover programas de nicho emitidos nos canais de cabo junto dos auditórios mais vastos dos canais generalistas dos grupos.

Esta estratégia é igualmente reveladora dos fluxos de conteúdos em circulação dentro dos grupos de media. Este uso estratégico da opinião reforça a legitimidade simbólica dos comentadores. O espaço de opinião é, já por si, uma instância de legitimação discursiva, pelo que este tipo de intertextualidade e recontextualização contribui para reforçar o estatuto de comentador e para o que Pierre Bourdieu (1989, 1997) definiu como o “círculo encantado da legitimação”. A citação adquire os contornos de uma instância de legitimação discursiva de segundo grau.

A tabela 3 permite-nos, assim, concluir que dos 64 comentários emitidos, 2/3 – 43 comentários – foram produzidos por comentadores fixos dos canais de televisão generalistas, nomeadamente da RTP1 e da TVI. O quadro esclarece-nos então que a posição cimeira da RTP1 deve-se à atenção que Marcelo Rebelo de Sousa deu aos três casos no seu programa de comentário semanal, «As Escolhas de Marcelo Rebelo de Sousa». Das 25 opiniões registadas no canal público, apenas duas foram proferidos no noticiário por jornalistas de imprensa que pertenciam à carteira de comentadores do canal, mas cuja presença em antena era definida pela agenda noticiosa. O caso Freeport foi analisado por Eduardo Dâmaso, à época vice-diretor do Correio da Manhã. O caso BPN foi comentado por Pedro Santos Guerreiro, na altura diretor do Jornal de Negócios. Se no primeiro caso a tónica foi colocada no escândalo de poder, no segundo, o destaque foi dado à dimensão financeira do escândalo.

Depois desta análise de conjunto, vamo-nos agora centrar em cada um dos casos em particular e detalhar o modo como cada um deles foi abordado pelos comentadores a partir dos indicadores já referidos: temas, atores, tons e estilos dos comentários. Estes dados vão depois permitir-nos aferir a relação entre a narrativa do comentário e das notícias sobre os casos BPN, Freeport e Face Oculta.

O caso BPN

Integradas nas 546 peças identificadas sobre o caso BPN em 2009 (tabela 2), 21 correspondem a opiniões proferidas, que se traduziram em uma hora e dezanove minutos de comentário sobre o tema. Nesse ano, o primeiro comentário foi feito por Vasco Pulido Valente no Jornal Nacional da TVI, no dia 16 de janeiro, e o último do ano foi proferido por Marcelo Rebelo de Sousa na RTP1, a 22 de novembro. A maior atenção ao caso registou-se, todavia, até julho desse ano, onde encontramos 16 das 21 opiniões emitidas sobre o BPN.

Os temas que mais se destacaram na abordagem dos comentadores foram (Gráfico 2): “Irregularidades da supervisão do Banco de Portugal” (sete comentários), “Gestão danosa de Oliveira e Costa” (seis comentários), “Declarações de Oliveira e Costa” (seis comentários) e “Privatização do BPN” (cinco comentários).

Tal como os outros dois casos em análise, o caso BPN foi sendo comentado à medida que se iam conhecendo um conjunto vasto e variado de crimes associados ao Banco Privado de Negócios. Todavia, a opinião canalizou as suas atenções para as responsabilidades do regulador. Os comentadores elegeram as falhas da supervisão como a principal causa explicativa do que se estava a descobrir. Por este motivo, a descredibilização política e o apuramento das responsabilidades do regulador foram os tópicos dominantes na opinião.

Esta perspetiva está bem patente no comentário de Marcelo Rebelo de Sousa (RTP1: 15.02.2009): “Há muito que digo que o Banco de Portugal não perguntou o que devia ter perguntado. (...) Acho que se deve fazer um apuramento da responsabilidade do regulador. (...) continuo cheio de dúvidas sobre a intervenção do regulador.” Na mesma linha, Miguel Sousa Tavares questiona (TVI: 26.03.2009): “Como é que este banco pode acabar a dever 2 mil milhões de euros? (...). E isto acontece nas barbas do Banco de Portugal, que nunca deu por nada, que nunca desconfiou de nada, que nunca percebeu a relação entre o Banco Insular e o BPN. E só, de facto, com a casa a arder é que dá por alguma coisa. (...). Ficámos a saber que um banco privado, que ainda por cima já não tinha bom nome no mercado na altura, faz desaparecer 6 mil milhões de euros e o Banco de Portugal não tem uma suspeita?”.

A “Gestão danosa de Oliveira e Costa” foi o segundo grande tema discutido pelos comentadores, por coincidir com o período em que o banqueiro foi interrogado na Comissão de Inquérito parlamentar e que, posteriormente, enviou uma carta à Comissão enquanto estava em prisão preventiva. Os comentadores destacaram a ausência de respostas concretas sobre a gestão do banco, nomeadamente Miguel Sousa Tavares: “O que é que eles estão ali a fazer? (...) É extraordinário, entre os administradores ninguém sabia de nada. Qualquer incompetente teria feito melhor do que fez a administração do BPN” (TVI: 26.03.2009).

Estes temas foram ainda interligados com as “Declarações de Oliveira e Costa” proferidas ao longo do ano, tal como se percebe no comentário de José Gomes Ferreira (SIC: 26.05.2009): “O Dr. Oliveira e Costa não explicou o que teve na origem do desequilíbrio enorme do banco. Portanto, andou sempre à volta desta questão. Depois vai mais longe. Acusa o Dr. Miguel Cadilhe de ter recebido muito dinheiro. (...). Depois diz que das três hipóteses de venda do grupo (...), pôs sempre a informação disponibilizada para o Banco de Portugal ver quem queria comprar e diz também que os compradores sabiam que havia um banco, o Banco Insular, que embora não estivesse consolidado, fazia parte da compra. Isto levanta muitas questões, nomeadamente o regulador sabia ou não sabia disto tudo?”. Pedro Santos Guerreiro também comentou as declarações de Oliveira e Costa, alertando para a incompatibilidade entre a sua versão e a de Dias Loureiro: “É palavra contra palavra. Há um mentiroso, pelo menos, ou dois” (RTP1: 26.05.2009).

A “Privatização do BPN” foi o quarto tema mais abordado no comentário e o que gerou uma maior polarização entre os comentadores. A opinião sobre a conduta do Governador do Banco de Portugal e as declarações de Oliveira e Costa foi significativamente homogénea, mas a privatização do banco após a sua nacionalização, foi o tópico em que registámos uma maior divergência de opiniões entre os comentadores. Enquanto uns consideraram a nacionalização inevitável no contexto da crise económica que se abateu na Europa, após a queda do Lehman Brothers nos Estados Unidos, outros interpretaram-na como um aproveitamento político.

Em defesa da nacionalização, António Peres Metello justificou (TVI: 03.02.2009): “Porventura não é muito popular dizer isto, mas há uma importância crucial no sistema financeiro. Sem o sistema financeiro a funcionar como deve ser, a irrigar todos os sectores da economia”. Por sua vez, José Gomes Ferreira assume claramente que “é bom que o ministro das finanças vá explicar ao parlamento e aos portugueses, (...) que vamos reprivatizar (...). E eu pergunto-me como é que um ministro que tem uma imagem de rigor construída ao longo dos anos, agora vem dizer aos portugueses não se preocupem que ninguém pôs lá um tostão. Por amor de Deus” (SIC: 20.11.2009). Avançando nesta linha de argumentos encontramos Vasco Pulido Valente (TVI: 16.01.2009): “O que o Dr. Cadilhe disse é que a nacionalização do Banco de Negócios tinha sido um ato político e não um ato financeiro (...). O Dr. Cadilhe disse que quando se estava quase a descobrir, quando ele tinha indicadores seguros que permitiam identificar os responsáveis pelo buraco e fraudes do banco, foi nessa altura que o estado resolveu nacionalizar o dito banco”.

 

Apesar de elencarem um conjunto elevado de nomes relacionados com o caso (Gráfico 3), os comentadores centraram as atenções em três individualidades: Vítor Constâncio (10 comentários), Oliveira e Costa (nove comentários) e Dias Loureiro (sete comentários). Estes são os protagonistas dos temas dominantes na opinião, permitindo-nos constatar que a narrativa do comentário adotou uma concepção orientada para a personificação assente na conduta das personalidades envolvidas.

 

 

De acordo com o Gráfico 4, o tom negativo dominou a opinião (18 comentários), seguido do tom equilibrado (14 comentários), ou seja, de comentários que ponderaram apreciações positivas com negativas. Os comentários positivos registaram-se apenas por três vezes.

 

 

Quando cruzamos as variáveis atores e tons (Gráfico 5) verificamos, em linha com o que já foi dito, que os comentadores avaliaram de forma depreciativa o desempenho de Victor Constâncio. O Governador do Banco de Portugal colheu sete comentários negativos e dois equilibrados. Esta apreciação destaca-se também por contraste ao modo como os comentadores avaliaram o desempenho de Oliveira e Costa – equilibrado (seis comentários) – e de Dias Loureiro, sobre o qual as opiniões se dividiram entre três negativas e três equilibradas.

 

 

E de que modo é que os comentadores abordaram o caso BPN? A variável “estilo” pretende definir a estrutura da argumentação do comentário, ou seja, a forma como as ideias são apresentadas. Tradicionalmente, o comentário foi instituído como um espaço de interpretação e esclarecimento dos assuntos públicos, refletindo sobre causas, contextos e consequências, complementando, assim, as notícias naquilo que, pelas suas características, estas não podiam oferecer ao auditório. Deste modo, importa conhecer como os comentadores debateram o caso BPN e perceber se a narrativa da opinião contribuiu para o esclarecimento público.

A estratégia retórica dos comentadores desenvolveu-se em duas etapas. Num primeiro momento, os comentadores começavam por analisar e interpretar sumariamente os novos dados sobre o caso, para, de seguida, tomarem posição sobre o assunto, tal como ilustra bem este excerto da opinião de Miguel Sousa Tavares (TVI: 5.11.2009): “Eu sou contra a opção da nacionalização e mais injeção de capital vindo do estado. Não me interessa o tal risco sistémico. Para mim não havia risco sistémico nenhum”. Apenas por três vezes foram registados comentários a propor um reenquadramento da estória. Ou seja, que convidaram o auditório a reexaminar premissas básicas do modo como o caso estava a ser enquadrado no espaço público ou a reorientar a atenção dos espetadores para outras dimensões da questão em análise.

E de que modo é que podemos relacionar esta narrativa com a informação? A tabela 4 revela-nos que houve três grandes temas que se destacaram na cobertura jornalística ao caso BPN. A “Gestão danosa de Oliveira e Costa” foi o tema dominante (9.2%, 43 peças), seguida da “Gestão danosa da Sociedade Lusa de Negócios” (8.1%, 38 peças) e das “Irregularidades da supervisão do Banco de Portugal” (6.6%, 31 peças).

 

 

Os três atores principais (tabela 5) foram Oliveira e Costa, protagonista em 19.5% das notícias (91 peças), seguido de Dias Loureiro, em 12.6% das estórias (59 peças), e de Victor Constâncio, presente em 7.7% das peças sobre o BPN (36 notícias).

 

 

Em termos de avaliação (tabela 6), o tom neutro dominou em 92.1% (430 peças) da cobertura noticiosa, seguido de muito longe do tom tendencialmente negativo, presente em 6.4% do total das peças jornalísticas sobre este caso (30 notícias). Ainda em menor presença encontramos o tom equilibrado, identificado apenas em 0.6% das peças (três notícias).

 

 

Quando cruzamos as variáveis atores e tons (Gráfico 6) verificamos que o tom neutro dominou em 93.4% das peças sobre Oliveira e Costa (85 notícias), em 79.7% das peças sobre Dias Loureiro (47 notícias) e em 91.7% das notícias sobre Victor Constâncio (33 notícias).

 

 

Estes dados permitem-nos afirmar que as notícias e os comentários destacaram dimensões distintas do caso. A título ilustrativo salientamos que, enquanto a gestão danosa e o buraco financeiro foram analisados separadamente, os comentadores interligaram ambos os temas. Por outro lado, os media noticiosos abordaram o caso com cautela, ou seja, de modo neutro e centrando-se nas declarações dos protagonistas. Por sua vez, os comentários foram muito críticos e negativos.

Se as notícias e a opinião colocaram no centro das suas narrativas os mesmos atores, o destaque dado a cada um deles foi diferente. O noticiário abordou os atores principais de modo maioritariamente neutro, nomeadamente Oliveira e Costa. A opinião elegeu o Banco de Portugal, na pessoa do seu Governador, como o foco central da sua crítica, que foi o protagonista em apenas 7.7% das peças noticiosas

O caso Freeport

Integradas nas 753 peças emitidas pelos noticiários televisivos em 2009, encontramos 32 comentários sobre o caso Freeport (tabela 2): 10 na RTP1, 10 na SIC e 12 na TVI, correspondendo a um total de duas horas, seis minutos e cinquenta e seis segundos de opiniões emitidas nos noticiários de prime time das televisões generalistas portuguesas. O caso foi amplamente comentado no espaço de opinião entre janeiro e maio. Durante estes cinco meses foram produzidos 30 dos 32 comentários sobre o processo em análise, significando também que o tema foi objeto regular de atenção, numa média de duas opiniões por semana. Os outros dois comentários foram feitos aquando do espoletar do caso Face Oculta. 

De que modo é que os comentadores abordaram o caso Freeport? Houve três grandes temas que se destacaram (Gráfico 7): “Investigações sobre Licenciamento/Corrupção” (10 comentários), “Conduta de José Sócrates” (10 comentários) e “Conduta da Justiça” (sete comentários). Relacionado com o primeiro tema, debateram-se questões como procedimentos de licenciamento, práticas lícitas e ilícitas de aprovação de negócios, e dúvidas sobre eventuais envolvidos no caso. As palavras de Vasco Pulido Valente (TVI: 22.05.2009) ilustram bem a tendência dominante: “As pessoas não são claras quanto aos seus atos. Continua a haver aqui uma série de ambiguidades. Deveria haver maior clareza e há a maior confusão que inspira a maior desconfiança a toda a gente”. Neste âmbito foram ainda vastamente analisadas as diferenças entre as molduras legais portuguesa e inglesa.

 

 

As reações de José Sócrates à cobertura jornalística do seu envolvimento no caso e ao que entendeu ser uma estratégia política para o derrubar foram dimensões do outro tema mais focado pelos comentadores, bem ilustrado no comentário de José Pacheco Pereira (SIC: 02.02.2009): “Um Primeiro-Ministro não pode dizer isto sem dizer mais alguma coisa (...). Estou a ver um homem que tem um comportamento, face à verdade, elástico”.

Em terceiro lugar debateu-se o Ministério Público, nomeadamente, putativos usos, interesses e objetivos políticos dos magistrados no caso, bem como declarações e atitudes das altas figuras do aparelho judicial, reveladoras das tensões internas nos campos sociais envolvidos. No entender de Marcelo Rebelo de Sousa (RTP1: 01.02.2009): “A investigação deve avançar, portanto, os investigadores, em vez de darem tantas entrevistas, devem trabalhar. O importante é que a Cândida Almeida chegue rapidamente a conclusões (...). E que se apure rapidamente isto”.

Os atores (Gráfico 8) mais comentados foram José Sócrates (18 citações), seguido de António Pinto Monteiro, (nove citações) e Lopes da Mota e Cândida Almeida, ambos citados quatro vezes. Enquanto o tom dominante foi o negativo, em 22 comentários (Gráfico 9).

 

 

 

No cruzamento das variáveis (Gráfico 10) verificamos que a apreciação geral destes atores foi predominantemente negativa. José Sócrates foi objeto de nove comentários negativos e cinco positivos, o Procurador-Geral da República de cinco negativos e dois equilibrados, enquanto Lopes da Mota contou com dois negativos e Cândida Almeida, três negativos e um equilibrado. Estas variações decorreram do facto de as opiniões oscilarem entre uma certa cautela decorrente da escassez de dados concretos, e de informação confirmada sobre o caso, e uma tomada de posição clara contra a conduta das individualidades envolvidas, questão central na abordagem dos comentadores ao caso Freeport.

 

 

A maioria dos comentadores tomou uma posição face ao caso, tendo sido maioritariamente contra a forma como o Primeiro-Ministro, por um lado, e o Ministério Público, por outro, lidaram com o assunto. De entre os comentadores que se posicionaram contra a conduta de José Sócrates, destaca-se Vasco Pulido Valente (TVI: 23.01.2009): “O Primeiro-Ministro não pode pôr em causa a Procuradoria-Geral da República, o juiz de instrução e a polícia. O que ele insinuou que está por detrás disto é a velha cabala. (...) Que isso seja dito por um deputado, vá lá, que seja dito por um militante, até se desculpa, agora ser dito pelo Primeiro-Ministro, porque ele esquece-se que é Primeiro-Ministro e os Primeiros-Ministros não podem dizer certas coisas”. De forma mais contida, Marcelo Rebelo de Sousa (RTP1: 25.01.2009) afirmou: “Isto é mau para Portugal”.

Paralelamente, os comentadores posicionaram-se contra a conduta da justiça. O jurista e ex-Bastonário da Ordem dos Advogados Rogério Alves afirmou (TVI: 29.03.2009): “Compete ao Ministério Público denunciar a situação – pressões para arquivamento – e investigá-la. (...). Esta bruma sobre bruma, névoa sobre névoa, é o Ministério Público quem tem de dissipar. Neste momento começa a ser um imperativo patriótico ter de a dissipar”. De forma ainda mais incisiva, Miguel Sousa Tavares (TVI: 14.05.2009) tomou uma clara posição contra o Ministério Público: “Espero que o objetivo final não seja criar a ideia nas pessoas de que cada vez que há um processo que mete políticos, que há pressões sobre os magistrados, porque isso poderia servir como pretexto para que os magistrados do Ministério Público exigissem ainda mais autonomia. (...). O Ministro da Justiça não tem quaisquer poderes sobre o funcionamento do Ministério Público. Eu espero que não seja isso”.

De modo a analisarmos a conexão entre as narrativas noticiosas e dos comentários, começamos por identificar os temas principais, os atores mais referidos e o tom dominante nas peças jornalísticas. Das 974 notícias emitidas sobre o caso, 721 (74%) foram em 2009 (tabela 2). Ao longo de todo esse ano o caso dominou a agenda político-mediática com 247 peças na TVI, 270 na SIC e 204 na RTP1. Os temas mais noticiados (tabela 4) foram as “Declarações” dos principais intervenientes (186 peças), as “Investigações e Buscas do Ministério Público” (70 peças) e o “Caso Eurojust“ (55 peças).

A tabela 5 informa-nos que os atores principais nas notícias foram o Primeiro-Ministro José Sócrates (136 peças), o Presidente do Eurojust Lopes da Mota (63 peças), e o Procurador Geral da República António Pinto Monteiro (53 peças). A partir da tabela 6 apercebemo-nos que o tom que claramente se destacou foi o neutro (503 peças), distanciando-se da cobertura negativa (131 peças) e equilibrada (40 peças). Ao associarmos ator e tom (Gráfico 11), verificamos que as notícias que envolveram José Sócrates abordaram o Primeiro-Ministro maioritariamente de forma neutra (85 peças) e tendencialmente negativa (42 peças), tal como Lopes da Mota, cuja cobertura foi maioritariamente neutra (40 peças), seguida de negativa (20 peças). Na maioria das peças sobre o PGR predominou também o tom neutro (41 peças), contra seis com um tom tendencialmente negativo e outras seis com um tom equilibrado.

 

 

As narrativas jornalística e de opinião obedecem a lógicas particulares, ainda que haja uma contiguidade entre ambas. A primeira está subordinada a uma lógica de informar o cidadão, enquanto a segunda pressupõe um espaço de exposição de ideias suscitadas a propósito das notícias do dia ou da semana. No que diz respeito ao caso Freeport, verificamos que as notícias foram um expectável ponto de partida dos comentários. A contiguidade confirmou-se na agenda da opinião, cada vez mais presentificada e com os acontecimentos do dia e da semana a darem o mote para a análise dos temas. Todavia, a opinião não trabalha diretamente sobre fatos, mas comenta a partir deles. No contexto do noticiário, os comentários, por um lado, particularizaram determinadas questões – como o comportamento de intervenientes concretos – e, por outro, extrapolaram para questões mais amplas, como a relação entre os negócios e a política. O destaque dado ao caso Eurojust é um bom exemplo das diferenças entre as narrativas da opinião e do jornalismo sobre o caso Freeport. Na informação foi um tópico que se destacou nas notícias, enquanto na narrativa da opinião não ganhou verdadeiro protagonismo por si só, sendo abordado de forma integrada nas apreciações sobre a atuação de figuras de proa de instituições-chave no caso ou como exemplo de redes informais de interesses instituídos. Outra nota diferenciadora verificou-se no cruzamento das variáveis atores e tom. Os comentadores foram muito mais críticos e negativos para com José Sócrates, Pinto Monteiro e Lopes da Mota do que as peças noticiosas, que se mantiveram maioritariamente neutras face a estas personalidades.

Tal como evidenciado no caso BPN, e contrariamente também aos media noticiosos, que abordaram o caso com cautela, os comentadores foram muito críticos e adotaram uma postura maioritariamente conflitual. A análise permitiu identificar opiniões com níveis de animosidade elevada acerca do caso Freeport e dos seus principais protagonistas.

O caso Face Oculta

O Face Oculta emergiu a 29 de outubro de 2009 e é nos últimos meses desse ano que atinge maior atenção mediática no noticiário de prime time das televisões generalistas portuguesas. De entre 367 peças emitidas em 2009, encontramos 11 comentários (tabela 2): seis na RTP, três na SIC e dois na TVI, num total de uma hora, três minutos e três segundos de opiniões emitidas. A desproporção do número de comentários face ao total das peças sobre o assunto explica-se pelo fato de a maioria desses comentários ocorrer dentro de espaços de opinião de periodicidade semanal fixa. Deste modo, os dados adquirem uma leitura distinta se em vez de os enquadrarmos em termos de dias, os perspetivarmos em termos de semanas, nomeadamente as cerca de 9 semanas entre o espoletar do caso, no fim de outubro, e os dias que antecedem as festas no mês de dezembro. De entre todos os comentadores, Marcelo Rebelo de Sousa (na RTP1) foi o que mais abordou o tema (seis vezes), seguido de Miguel Sousa Tavares (TVI) com dois comentários.

Nesse ano de 2009, a SIC não tinha comentadores fixos no noticiário da noite e, por isso, o caso foi tratado por três colaboradores distintos que fazem parte da carteira de comentadores do canal e cuja presença no Jornal da Noite decorre dos temas em agenda. Deste modo, no dia em que se ficou a saber das buscas a várias empresas, a SIC inaugurou o comentário sobre o Face Oculta com o jornalista da estação José Gomes Ferreira. Cinco dias depois, a 4 de novembro, a componente política tornou-se o ângulo dominante, e a inaugurá-la esteve Ricardo Costa, à época diretor do Expresso, semanário do mesmo grupo proprietário do canal de televisão; duas semanas depois (a 24 de novembro), o ângulo privilegiado foi o jurídico, num comentário de Luís Filipe Carvalho, advogado e comentador do canal. Na TVI, Miguel Sousa Tavares comentou este caso durante duas semanas consecutivas e apenas regressou ao tema quando as escutas emergiram na terceira semana de novembro.

De que modo é que os comentadores abordaram o caso Face Oculta? Em sede da opinião destacaram-se dois grandes temas em dois momentos distintos da evolução do caso (Gráfico 12). Nas primeiras semanas, foi o tema “Crimes de corrupção” (quatro comentários) que dominou, e, a partir de meados do mês de novembro, a questão central passou a ser as “Escutas” (seis comentários). Inicialmente, a questão dominante na opinião foi o ilícito que estava na base da investigação, o crime de corrupção.

 

 

As análises debruçaram-se sobre as relações entre o poder político e o tecido empresarial, a circulação de lugares de um setor para o outro, e a cadeia de favores e favorecimentos entre ambos os setores. Neste âmbito, emergiu um debate sobre possíveis impulsos legislativos que os comentários repudiaram pelo seu caráter reativo e casuístico, levando Ricardo Costa a afirmar (SIC: 04.11.2009): “Quase que aposto que vão cair na fúria legislativa de legislar contra a corrupção. É um erro”. Ainda na primeira fase do processo, os comentadores debateram a (não) suspensão de funções dos principais envolvidos, o ex-ministro Armando Vara e José Penedos, considerando que a saída de ambos seria benéfica para a imagem dos cargos de poder e das instituições que lideravam, tal como ficou evidente nas palavras de José Gomes Ferreira (SIC: 30.10.2009): “Ninguém pode ser demitido nestas circunstâncias, mas eu pergunto o seguinte ao Governador do Banco de Portugal, ao Ministro da Economia, aos presidentes destas empresas: (...) olhem para si próprios, olhem para o país e perguntem-se se isto pode continuar assim? Se estas pessoas podem continuar nos lugares?” Na mesma linha, Marcelo Rebelo de Sousa afirmou (RTP1: 01.11.2009): “Se as pessoas estão constituídas arguidas devem suspender-se das funções (....)”.

Numa segunda fase do caso, a partir da segunda metade do mês de novembro, as escutas tornaram-se o tema dominante, relegando o Face Oculta para segundo plano das atenções, como notou Marcelo Rebelo de Sousa (RTP1: 15.11.2009): “Isto das escutas afastou do essencial, que é a Face Oculta”. Nesta segunda parte da história, os atores principais (Gráfico 13) foram António Pinto Monteiro (destacado em sete comentários), José Sócrates (destacado em seis comentários), e Armando Vara (destacado em cinco comentários). O Gráfico 14 dá-nos conta que o tom dos comentários foi maioritariamente negativo (sete comentários), acompanhado em menor grau por tons equilibrados (quatro comentários), i.e., em opiniões que conjugaram apreciações negativas e positivas.

 

 

 

No cruzamento das variáveis (Gráfico 15), António Pinto Monteiro surgiu associado às escutas num tom dominantemente negativo (cinco em sete comentários). Por sua vez, José Sócrates foi ligado aos dois grandes temas, salientando-se as escutas por ter sido essa também a questão dominante na análise ao caso: quatro apreciações negativas e duas equilibradas. O Primeiro-Ministro surgiu de forma latente como o grande ator do Face Oculta, mas a partir do momento em que emergiu o tema das escutas foi trazido para o centro do comentário. Interpretações sobre as conversas gravadas, a legalidade das escutas, o segredo de justiça e a revelação do conteúdo nos media foram temas apenas superados pela análise à conduta do Procurador Geral da República e à forma como geriu o processo.

 

 

Deste modo, podemos afirmar que o caso Face Oculta foi abordado pelos comentadores principalmente pelo ângulo da conduta e das consequências políticas para os atores mais referidos pelos comentadores: o Primeiro-Ministro e o Procurador-Geral da República. O primeiro por insistir nas teses da cabala e o segundo pela forma como demorou a decidir sobre a legalidade das escutas e por ter comentado publicamente o processo, ficando no ar sugestões de benefícios ao governo e de proteção a José Sócrates durante o período de campanha eleitoral. As palavras de Marcelo Rebelo de Sousa são bem ilustrativas sobre ambos (RTP1: 22.11.2009): “O Procurador atuou duma forma tão atabalhoada, com tantos pontapés no direito, na maneira como agiu, que não acabou por credibilizar e acabou por não dar força à decisão”. No sentido oposto, Miguel Sousa Tavares (TVI: 26.11.2009) insurgiu-se contra os que acusavam José Sócrates de estar a preparar um crime contra o estado de direito: “Como é que uma suposta compra da TVI pela PT pode ser um crime contra o estado de direito? Vamos admitir que de facto José Sócrates queria que a TVI fosse comprada para acabar com o Jornal de Sexta; daí para se dar o salto de crime contra o estado de direito parece-me demasiado fácil”.

Em termos de estratégia retórica, a maioria dos comentadores tomou uma posição clara, nomeadamente contra as suspeitas de corrupção: “Tem que se tirar ilações. Isto não pode mesmo ficar assim”, considerou José Gomes Ferreira (SIC: 30.10.2009), enquanto Marcelo definiu este como um “caso muito grave” (01.11.2009). A conduta dos arguidos envolvidos e, principalmente, a forma como os principais protagonistas conduziram o caso foi outro ângulo sobre o qual os comentadores se posicionaram claramente: “Eu acho que a divulgação é corrigir um erro com outro erro” (RTP1: 29.11.2009) e “os magistrados têm de ter a noção que não podem falar” voltou a afirmar Marcelo (RTP1: 13.12.2009), enquanto para Miguel Sousa Tavares (03.12.2009) “o Procurador-Geral da República deveria ter despachado imediatamente (...) não é aceitável que um líder político faça um aproveitamento político”.

A distinção analítica nem sempre foi fácil e simples e, por vezes, como estratégia argumentativa para justificar a tomada de posição, os comentadores fizeram uma introdução mais contextualizadora. Todavia, foi possível identificar um estilo dominante que nos permite afirmar que a maioria dos comentários foram críticos, tendo a opinião sido principalmente orientada contra a atuação dos que entenderam ser os principais protagonistas. Os comentadores reproduziram, assim, no espaço opinião os conflitos entre os campos envolvidos no caso. Com muito menor expressão encontramos comentários que se detivessem na explicação do contexto e nas consequências deste caso tão intrincado, bem como no esclarecimento das relações ou nas consequências de determinadas condutas.

A narrativa das notícias abordou o caso Face Oculta de modo distinto da opinião. Em termos de temas principais (tabela 4), destacam-se nas notícias televisivas as “Escutas” a envolver o Primeiro-Ministro José Sócrates (100 peças), seguida de longe pelas peças sobre as “Investigações/Buscas” (56 peças). Em termos de atores (tabela 5), Armando Vara foi a personalidade mais evocada pelos jornalistas (69 vezes), seguida do Primeiro-Ministro José Sócrates (42 vezes) e do empresário Manuel Godinho (42 vezes). Por sua vez, a tabela 6 permite-nos observar que a maioria das peças noticiosas oscilou entre os tons negativo (147) e neutro (129 vezes).

No cruzamento das variáveis tema e ator (Gráfico 16) constatamos que Armando Vara foi citado principalmente no início do caso, quando as questões dominantes eram as investigações e as buscas (24 vezes) e o debate sobre a suspensão de funções (16 vezes). O fato de os suspeitos se manterem nos seus cargos foi objeto de ampla cobertura noticiosa.

 

 

O tom maioritariamente associado a Armando Vara foi o equilibrado (27 vezes), seguido do tendencialmente negativo (25 vezes). No caso de José Sócrates, a segunda personalidade mais evocada no caso Face Oculta, o cruzamento das variáveis permite-nos constatar que o PM foi primordialmente associado ao tema das escutas (30 vezes). Este dado evidencia-se mais se tivermos em conta que o segundo tema que lhe foi associado, “Declarações”, surgiu apenas em sete peças. A cobertura de José Sócrates foi tendencialmente negativa (23 vezes).

Em ambas as componentes informativa e de opinião, a questão das escutas foi o tópico mais debatido. Enquanto nas notícias este tema foi secundado pelas investigações e pelas buscas judiciais, na opinião esteve ligado ao crime da corrupção (que em termos informativos foi o quinto tema mais registado na cobertura ao caso Face Oculta). Assinalamos também algumas diferenças nos atores mais evidenciados pelos comentadores. Estes centraram-se prioritariamente nas personalidades de maior poder real e simbólico citadas nas peças: José Sócrates e António Pinto Monteiro, o Primeiro-Ministro e o Procurador-Geral da República. As personalidades que estavam a ser investigadas e que foram mais focadas nas notícias – Armando Vara, José Penedos e Manuel Godinho – tiveram menor interesse para os comentadores. Por sua vez, o Procurador Geral da República surgiu em quarto lugar nas notícias (referido 29 vezes), atrás de Manuel Godinho, o terceiro ator mais referenciado (42 vezes).

À imagem do que identificámos nos casos BPN e Freeport, a narrativa da opinião sobre o caso Face Oculta também construiu uma versão dos acontecimentos distinta da narrativa jornalística. Para os comentadores esta foi uma história sobre a luta de poder dentro das, e entre, as esferas política e judicial, personificada nas mais altas instâncias.

 

Discussão dos resultados

Os media desempenham uma função primordial de informar os cidadãos, bem como de organizar o debate público, num processo de ativação da atenção e de participação na formação da opinião pública que inclui os comentadores. Em linha com o cascading activation model de Robert Entman (2003), podemos afirmar que, em conjunto com os notícias, os comentadores desempenham um papel relevante na ativação da atenção e na formação da opinião, num processo que combina mecanismos de definição da agenda pública, grau de destaque e enquadramento dado aos temas, e de reação da sociedade. Os comentadores fazem, assim, parte do conjunto de atores que, numa hierarquia de influências e de relações distintas, condicionam o desenrolar dos temas no espaço público e contribuem para moldar a perceção que os cidadãos têm sobre variados temas em debate.

O estudo que aqui se apresentou sobre três dos casos de corrupção de maior projeção mediática nos últimos anos em Portugal – os casos BPN, Freeport e Face Oculta –, tinha dois grandes objetivos: conhecer a forma como os comentadores debateram os três casos nos noticiários de prime time das televisões generalistas. Para tal, identificámos os temas principais, os atores mais referidos e o tom dos comentários. Analisámos ainda o estilo dos comentários, ou seja, o modo como abordaram os casos de corrupção em apreciação. Esta primeira etapa forneceu os elementos necessários para cumprirmos o segundo objetivo do estudo e avaliar a contiguidade entre ambas as narrativas que, em conjunto, têm um papel preponderante na definição e construção dos problemas públicos.  

O estudo empírico permitiu constatar que a cobertura noticiosa foi o expectável ponto de partida dos comentários, mas em sede da opinião identificámos a produção de uma narrativa própria sobre os casos, que se traduziu em muito mais do que num destaque distinto a certos temas e atores. Os comentadores ordenaram e relevaram os factos à sua maneira e construíram uma versão dos acontecimentos em cuja narração encontramos histórias sobre a luta de poder dentro das, e entre, as esferas política, judicial e de regulação, personificadas nas mais altas instâncias.

A análise realizada aos comentários confirma tendências já identificadas noutros estudos (Figueiras, 2009 e 2015). O espaço de opinião foi menos perspetivado como um lugar de explicação das dimensões estruturais do problema da corrupção, tendo sido prioritariamente utilizado para os comentadores assumirem uma posição em relação ao que definiram como o conflito central e os protagonistas e antagonistas dos três escândalos de corrupção analisados. Assim, no centro da narrativa do caso BPN encontrámos o Governador do Banco de Portugal Victor Constâncio; o Primeiro-Ministro José Sócrates e os Magistrados do Ministério Público foram os atores principais no caso Freeport e, novamente, o Primeiro-Ministro José Sócrates e o Procurador-Geral da República António Pinto Monteiro foram os protagonistas no caso Face Oculta. Para os comentadores estas três histórias foram mais sobre o desempenho e a estratégia destes atores do que sobre os crimes de corrupção propriamente ditos.

Constatámos também que os comentadores adotaram uma postura conflitual, consubstanciada em abordagens muito críticas e em tons negativos sobre o que entenderam ser o comportamento desadequado dos atores envolvidos. Em 64 comentários, 47 foram negativos, indo estes resultados ao encontro de outros estudos já realizados sobre o comentário político em Portugal (Figueiras, 2009 e 2015). Por sua vez, em 1470 peças noticiosas relacionadas com os três casos analisados, 1053 foram neutras e “apenas” 308 tendencialmente negativas. A cobertura jornalística foi ainda dependente do discurso oficial, patente no predomínio do tema “declarações”, e caracterizou-se pelo uso do tom neutro com que abordou as personalidades envolvidas nos casos, e cujo destaque foi distinto do dos comentadores.

Estes resultados suscitam questões sobre as diferenças entre a abordagem da opinião e da cobertura noticiosa aos casos em análise, mas também sobre a cobertura noticiosa aos casos em análise e os padrões de cobertura jornalística dos temas relacionados com a política, e com os escândalos em particular.

Ao contrário do que os trabalhos sobre a cobertura noticiosa da política revelam há anos (Patterson, 2003; Aalberg & Curran, 2012; Cunha & Figueiras, 2013), o criticismo registado na opinião não se verificou na narrativa jornalística. A cobertura jornalística dos casos de corrupção em análise foi mais cautelosa, dando a palavra aos protagonistas e privilegiando uma abordagem neutra. Esta narrativa aproximou os noticiários da tradição descritiva, onde a voz do jornalista tende a ser passiva e neutral (Patterson, 2003) e afastou-os da tendência comercial contemporânea, que se caracteriza pelo predomínio de um jornalismo interpretativo, especulativo e negativo, e onde os políticos crescentemente perdem protagonismo devido ao predomínio dos jornalistas nas peças noticiosas (Aalberg, Strömbäck & de Vreese, 2012). Este padrão de abordagem foi, todavia, identificado na narrativa do comentário, escudando a produção noticiosa nestes casos de elevada sensibilidade política e judicial.  

No contexto atual, qualquer escândalo político é o produto da interação entre o campo político, judicial e mediático (Thompson, 2002). Se atentarmos no perfil dos comentadores que produziram opinião sobre os casos em análise, verificamos que a grande maioria provém exatamente destes três campos de poder. Isto significa que o comentário produzido se cingiu a interpretações feitas a partir de cada uma dessas esferas de poder e que para o espaço de comentário foram transpostas as lutas internas de cada uma dessas esferas e os conflitos entre os vários campos implicados. Significa também que o comentário circunscreveu as perspetivas aos interesses dos campos envolvidos, tendo sido excluídos outros ângulos de leitura sobre os casos. O comentário dos noticiários televisivos não contou com a presença de argumentos de vozes alternativas externas aos campos implicados, como especialistas no tema da corrupção, por exemplo.

 

Reflexões finais

Contribuir para o esclarecimento público e a formação da opinião são dois atributos fundamentais do jornalismo ocidental e que estão na base da visão da imprensa enquanto instituição basilar dos regimes democráticos (Habermas, 1984; Thompson, 2002; Norris, 2000). Neste âmbito, em termos da tradição cultural ocidental, o comentário foi instituído como uma instância que ajudaria a pensar o mundo, constituindo-se como um elemento do processo comunicativo democrático (Nimmo e Combs, 1994; Jacobs e Townsley, 2011). O comentário foi, assim, instituído como um espaço de interpretação e esclarecimento, complementando as notícias naquilo que, pelas suas características, elas não podiam oferecer ao auditório.

Ainda que as narrativas jornalística e de opinião obedeçam a lógicas particulares, existe uma crescente contiguidade entre ambas. O comentário tem-se vindo a tornar progressivamente dependente da atualidade, não só porque a sua agenda é hoje muito presentificada e parte das notícias para comentar, mas também porque a construção social dos assuntos é fortemente determinada pelo modo como ambos os discursos – o jornalístico e o de opinião – abordam os temas públicos.

A opinião produzida sobre os casos em análise parece indiciar que a lógica dos media, nomeadamente da televisão regida pelas regras do mercado, está a transformar o comentário, enquanto espaço específico de explicação. As diferenças temporais têm vindo a ser dissipadas pela compressão do tempo do comentário, que se tem aproximado crescentemente do tempo mediático.

A dramatização tornou-se, assim, um recurso que facilita a análise em estúdio, permitindo comentários mais sucintos e rápidos. Esta abordagem implica ainda a personificação e a fragmentação dos problemas sociais, condicionando o nível de profundidade da opinião. Induzidos pela lógica dos media, esta estratégia narrativa tem conduzido os comentadores a adoptarem uma concepção «fulanizada» dos problemas sociais. Tal foi evidente na narrativa do comentário ao transformar os casos de corrupção analisados em escândalos de conduta individual.

Todavia, qualquer explicação fundamentada requer tempo e a explicação de casos complexos – como os de corrupção – requer um horizonte temporal mais extenso do que aquele que os noticiários tendem a permitir. A televisão privilegia o ritmo, dificultando a possibilidade de os comentadores se deterem em cada tema em análise; privilegia também abordagens rápidas, sucintas e acessíveis ao maior número possível de espetadores. Deste modo, condicionados pela lógica da televisão, os comentadores produziram pouco mais do que observações compostas por frases breves e de efeito. Deste modo, o espaço de comentário nos noticiários de prime time privilegiou menos uma discussão substancial dos problemas em análise e instigou mais a produção de opiniões sound bites sobre a corrupção em Portugal.

 

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