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Observatorio (OBS*)

versão On-line ISSN 1646-5954

OBS* vol.14 no.4 Lisboa dez. 2020  Epub 28-Fev-2022

https://doi.org/10.15847/obsobs14420201720 

Artigos Originais

Radar XS: um telejornal sob o signo da contradição

Radar XS: a newscast under a veil of contradiction

iCentro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, Portugal


Resumo

Neste artigo, o telejornal infantil da RTP, Radar XS, lançado em setembro de 2019 e dirigido a crianças entre os oito e os 12 anos de idade, é analisado a partir das lentes da Semiótica Social e da Análise Crítica do Discurso. Tendo em conta nomeadamente o contexto em que este telejornal é produzido, bem como os signos visuais, plásticos e linguísticos presentes, procurou-se compreender qual a conceção de criança que está subjacente à sua produção, acedendo a camadas de significação escondidas no discurso. Pierre Bourdieu afirma que a figura do camponês só pode ser compreendida tendo em conta a sua relação com o citadino e com a vida urbana. Acreditamos que o mesmo acontece com a criança e com a sua relação com o adulto e o mundo adulto. Daí que o Radar XS seja analisado tendo implícita uma comparação com os telejornais dos adultos. Resgatámos, ainda, de Bourdieu, o seu entendimento do espaço de comunicação como mercado simbólico, atendendo às relações de poder que se manifestam no ato comunicativo: quem fala? Que legitimidade tem para falar? Que ideologia está implícita à mensagem? Que espaço é dado ao interlocutor? Concluímos que o Radar XS é um objeto antagónico que, por um lado, veicula uma visão da criança como sujeito de direitos limitados, mas, por outro, a empodera.

Palavras-chave: crianças; notícias; jornalismo televisivo; semiótica; análise crítica do discurso

Abstract

In this paper, RTP's children's newscast, Radar XS, which was launched in September 2019 and is aimed at children of ages between eight and 12, is analysed through the lens of Social Semiotics and Critical Discourse Analysis. Bearing in mind the context in which the newscast is produced, as well as the visual, plastic and linguistic signs which are present in the programme, we have tried to understand the conception of a child underlying its production, and have looked for layers of meaning which may be hidden in the discourse. Pierre Bourdieu argues that the notion of a peasant can only be understood by taking into account its relationship with the city and the urban life. We believe the same happens with the child and his/her relationship with the adult and the adult world. Thus, Radar XS is analysed departing from a comparison with adults newscasts. We also revisited from Bourdieu’s understanding of the field of communication as a symbolic market, by taking into account the power relations that exist in the communicative act: who speaks? What legitimacy does he/she have to speak? What ideology is behind the message? What space is given to the interlocutor? We concluded that Radar XS is an antagonistic object that, on one hand, conveys a view of the child as a subject with limited rights, but, on the other, empowers him/her.

Keywords: children; news; television journalism; semiotics; critical discourse analysis

Introdução

Longe de ser um mero instrumento de comunicação, a linguagem e as suas formas de uso são chaves que nos permitem abrir portas e aceder a dimensões complexas, situadas muito para lá dos significados imediatos das palavras ou das frases. Quem leu a aula inaugural que Michel Focault deu no Collège de France, em 1970, não voltará decerto a olhar a linguagem - certas linguagens, em especial - de modo ingénuo, sem tentar descortinar o que revela ou, pelo contrário, esconde uma determinada forma de expressão. Nessa aula, eternizada no livro A Ordem do Discurso, Focault consegue, com uma simples questão, abalar toda a imagem de banalidade ou inofensividade que se possa ter da linguagem: “O que há afinal de tão perigoso no facto de as pessoas falarem e de os seus discursos proliferarem indefinidamente?” (Focault, 1997, p. 9). Por aqui se depreende algo que é central para o campo da Análise do Discurso: a ideia de que o discurso acarreta implicações de várias ordens - social, cultural, política, identitária, económica até. Como recorda Dijk, no prefácio da obra The study of discourse (1997), “o discurso tem um papel na reprodução de diferentes formas de dominação e desigualdade, como seja, a classe, a idade, a nacionalidade, o género, a etnicidade, a religião ou a orientação sexual”.

Neste artigo, pretende-se analisar se um discurso específico - o de um telejornal infantil - contraria ou reproduz uma forma de dominação e desigualdade baseada na idade, já que se trata de um discurso que é construído por adultos e que se destina a crianças. Partilha-se, aqui, da visão de Fairclogh e Wodak (1997), segundo a qual os discursos estruturam a sociedade e a cultura, mas são também por elas estruturados e, nessa medida, “toda instância de uso da linguagem faz a sua pequena contribuição para reproduzir e /ou transformar a sociedade e a cultura, incluindo as relações de poder” (p. 273). Parte-se, ainda, da visão de Pierre Bourdieu, que olha as situações de comunicação como espaços em que se jogam relações de poder. Para o autor, quem fala tem um poder, um valor, que pode ser maior ou menor, dependendo da posição social na qual se encontra e, por isso mesmo, as trocas comunicacionais são trocas simbólicas, em que se joga a possibilidade de ordenar o mundo e de legitimar ordens que são arbitrárias, mas que estabelecem sistemas de dominação (Bourdieu, 2007). Um dos exemplos que Bourdieu aborda neste livro intitulado A economia das trocas simbólicas é o da religião, afirmando que ela “contribui para a imposição (dissimulada) dos princípios de estruturação da perceção e do pensamento do mundo (…) na medida em que impõe um sistema de práticas e representações” (p. 34). Julgamos que o mesmo princípio se pode aplicar aos media em geral que, como recorda Jensen (1995), têm um papel fundamental “na produção e circulação de sentido na sociedade” (p. 3). Mas também às informações jornalísticas que, na óptica de Dijk (1996), são “a forma principal do discurso público” e que, ao oferecerem “algo mais do que uma agenda de temas e debates públicos”, “proporcionam a projeção geral de modelos sociais, políticos, culturais e económicos dos acontecimentos sociais” (p. 259). Através dos discursos que difunde, dir-se-ia que o jornalismo assume, assim, uma função reguladora e de padronização das formas de pensar, de agir e mesmo de sentir - uma função que se traduz em poder.

Neste trabalho, partimos da Semiótica Social e de algumas vertentes da Análise do Discurso - por considerarmos que fornecem um enquadramento teórico e metodológico capaz de permitir aceder a camadas de significação mais profundas imbuídas nas mensagens - para procurar compreender qual a aceção de criança presente no noticiário infantil da RTP, Diário XS, e quais as ideias sobre criança que o noticiário indicia. Neste contexto, entendemos discurso, justamente, como “uma forma de uso da linguagem, um evento comunicativo, no sentido em que as pessoas se servem da linguagem para comunicar ideias, crenças (cognição)” (Dijk, 1997, p. 2). Tomaremos como elemento de análise o discurso como estrutura verbal, mas também as dimensões visuais do discurso.

Importa salientar que nos situamos, aqui, no âmbito da Análise Crítica do Discurso, partindo para esta investigação com o pressuposto de que as crianças, tal como os adultos, são cidadãs e têm direito a um jornalismo de qualidade que lhes permita ter conhecimento do que se passa na sua comunidade, no seu país e no mundo, de modo a poderem formar uma opinião e assumir papéis de intervenção na vida social.

Nas secções seguintes iremos abordar o enquadramento legal e institucional (no contexto do serviço público de televisão português) das notícias para crianças, a relação entre crianças e notícias e a importância do jornalismo para a existência e manutenção de um sistema democrático. Por fim, antes de partirmos para a análise do Radar XS propriamente dita, apresentaremos a metodologia utilizada. O artigo encerra com uma discussão dos resultados.

Enquadramento legal e institucional das notícias para crianças

Adotada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1989, a Convenção sobre os Direitos da Criança, que Portugal ratificou logo no ano seguinte1, tem na “liberdade” e na “educação” (entendida não apenas no sentido formal) duas palavras-chave. O direito à informação, que sustenta ambos os conceitos, merece várias referências ao longo do documento, mas no artigo 17º enaltece-se, especificamente, o papel dos órgãos de comunicação social, salientando-se que estes devem ser encorajados pelos Estados signatários da Convenção “a difundir informação e documentos que revistam utilidade social e cultural para a criança”.

Em Portugal, esta orientação prevista na Convenção teve reflexos no documento que rege o serviço público, assegurado pela Rádio e Televisão de Portugal (RTP). O Contrato de Concessão de Serviço Público da RTP que esteve em vigor até 2015 estabelecia que a operadora tinha o dever de cumprir com “espaços regulares de informação adequadamente contextualizada, dirigidos ao público infantojuvenil”. No atual contrato, que revogou o anterior, essa obrigação específica de providenciar informação para crianças e jovens perde peso, escrevendo-se apenas que “o segundo serviço de programas generalista deve incluir espaços educativos e de entretenimento diários, destinados ao público infantojuvenil e que contribuam para a sua formação" (Contrato de Concessão de Serviço Público, p. 17)2. Apesar disso, e embora de forma não permanente, a RTP tem mantido a preocupação de ter um programa de notícias para crianças na sua grelha. Entre 2010 e 2015, esteve no ar, de segunda a sexta, o Diário XS. Emitido ao fim da tarde, na RTP2, o programa tinha a duração de cerca de seis minutos e, sem apresentador, servindo-se apenas de uma voz off, oferecia um resumo das principais notícias do dia aos mais jovens. Em setembro de 2019, um telejornal para crianças voltou à antena da RTP2, desta vez com periodicidade semanal e um formato diferente, com pivot em estúdio.

De realçar que a RTP tem uma longa tradição de formatos jornalísticos para a infância, que remonta, pelo menos, a 1984, ano em que foi lançado o Jornalinho (emitido até 1987), a que se seguiu o Caderno Diário, entre 1991 e 20013. Além da RTP, nenhuma outra televisão em Portugal, nem mesmo depois da explosão de canais por cabo e da emergência de canais específicos de informação e de canais para a infância, ofereceu ou oferece algum programa semelhante.

Neste início do século XXI, em Portugal, embora haja grandes progressos a registar no que concerne aos direitos das crianças, parece haver ainda um grande caminho a percorrer relativamente ao direito à informação por parte dos jovens. Mesmo em tempo de pós-verdade e fake news, em que o excesso de notícias e a facilidade de acesso a elas requerem cidadãos informados e críticos, a imprensa nacional (televisão, rádio, jornais, analógicos ou digitais) tem vindo a dar pouca atenção a crianças e jovens, contrariamente a outros países (Pereira, Fillol e Silveira, 2015). Isto, apesar das crianças portuguesas reclamarem “notícias mais adequadas aos seus gostos e às suas capacidades de compreensão” (Silveira, 2019, p. 48).

Se olharmos por outro prisma, o da forma como a imprensa dos adultos aborda, em Portugal, a população infantojuvenil, vemos que os estudos existentes nesta matéria apontam para uma abordagem da infância marcada por imagens negativas (Brites, 2013; Ponte, 2009) e para uma voz das crianças quase ausente dos media, sendo frequente ouvir-se pais, educadores e professores a falarem sobre os assuntos que lhes dizem respeito (Marôpo, 2009).

O lugar do jornalismo na construção da democracia e da cidadania

Sendo a imprensa um pilar da democracia, essencial à criação e à manutenção de uma cidadania informada, o panorama traçado no ponto anterior levanta preocupação. Logo no prefácio do seu livro The making of citizens (2000), David Buckingham sublinha essa relação fundamental entre jornalismo e democracia, ao escrever que, longe de serem um ritual diário, os jornais e noticiários televisivos são uma fonte fundamental de informação, da qual a saúde da sociedade civil depende. Sem notícias, o acesso à esfera pública e ao debate político ficam vedados, resume o investigador inglês.

Este acesso é algo que não interessa apenas a adultos: a cidadania não precisa da maioridade para acontecer (Pereira, 2013) e pode ser estimulada desde tenra idade. Um estudo centrado na relação das crianças do Reino Unido com o serviço noticioso para a infância da BBC, o Newsround, Carter, Messenger Davies, Allan e Mendes (2009) mostraram como as notícias podem constituir um importante contributo para o crescimento delas enquanto cidadãs. Os investigadores constataram que o facto das crianças se sentirem representadas naquele telejornal constituía um estímulo ao seu interesse pelas questões que se colocam à sociedade.

A falta de espaços noticiosos para crianças torna-se ainda mais premente quando, como sublinha o francês Jacques Gonnet (2007), a escola parece afastar-se da realidade do mundo, “dos saberes (e dos valores) diretamente ligados à sociedade”. O fundador do Centre de Liaison de l’Enseignement et des Moyes d’Information nota o papel fulcral que a atualidade deveria desempenhar na escola, ao permitir despertar a consciência dos alunos para o facto de o que aprendem nas aulas ser fonte de construção de sentidos. As notícias são, assim, vistas “como uma forma de motivação insubstituível para valorizar o saber fornecido” (p. 40), tanto mais numa escola onde “parece que, cada vez mais, o único sentido reconhecido tem a ver com o sucesso nos exames” (p. 41). Também Edgar Morin (1999) nota a inadequação do ensino a um mundo em que os problemas se afiguram cada vez mais “polidisciplinares, transversais, globais, planetários”, por oposição aos saberes “separados, partidos, compartimentados” (p. 13) que a divisão do conhecimento por disciplinas no sistema educativo promove.

Abordando as várias dimensões da vida humana e da vida em sociedade, o jornalismo permite, pela sua natureza plural, cruzar uma grande diversidade de pontos de vista e reunir num mesmo espaço conhecimentos de diversas áreas disciplinares. Por outro lado, ao constituir-se como ponto de encontro de opiniões divergentes, suporte de argumentações e diálogo, convida à aceitação de diferentes perspetivas, estimula o pensamento, desperta a curiosidade. Carrero (2008) chama ainda a atenção para a importância que os noticiários para crianças (no caso, televisivos) assumem ao constituírem-se como uma “janela para se decifrar o modo como a notícia é produzida e enquadrada pelos profissionais da comunicação” (p. 154), fomentando assim a literacia para as notícias dos cidadãos, com os reflexos que ela tem para a exigência de um melhor jornalismo.

Método

Como referido no início deste artigo, o propósito deste trabalho foi o de analisar o noticiário infantil da RTP, Radar XS4. Para tal, foram observadas 21 edições do noticiário, emitidas entre 21 de setembro de 2019 e 7 de fevereiro de 2020. Para orientar a análise, servimo-nos do enquadramento metodológico da Semiótica e de algumas vertentes da Análise do Discurso, disciplinas que Dijk (1997) considera “irmãs”. Trata-se de dois campos que não se compadecem com espartilhos e que, em comum, têm o facto de se dedicarem ao estudo de signos ou sistemas de signos e sua significação.

Carmelo (2003), definindo signo de uma forma sucinta, diz que ele é “tudo aquilo a que recorremos para compreendermos o mundo, o outro, e para nos fazermos compreender a nós próprios” (p. 11). Assim, como notam Mourão e Babo (2007), “a Semiótica trabalha sobre o pressuposto da inteligibilidade do mundo como sentido orientado, saber partilhado”, tendo como objetivo “tornar explícitos os conteúdos e as formas culturais” (p. 15), não podendo, logo, distanciar-se da componente social.

A cultura assume, de igual modo, um papel central nos estudos do discurso que, para além de lidarem com as propriedades do texto e da fala, lidam, como frisa Dijk (1997), com o contexto, “visto como as outras caraterísticas da situação social ou do evento comunicativo” (p. 2).

Tendo o enquadramento teórico da Semiótica Social e da Análise do Discurso presente, bem como o trabalho empírico realizado por Buckingham (1997) e Matthews (2008, 2009) na análise de noticiários para crianças em Inglaterra e nos Estados Unidos, elaborámos um quadro de análise que compreende componentes verbais e visuais do discurso, além de aspetos relacionados com o conteúdo veiculado. As componentes visuais foram divididas em duas, uma vez que os signos visuais podem não ser apenas icónicos. Como o Grupo Mu mostrou na década de 80, há também signos plásticos, como sejam as cores, as formas, a composição, sendo esta uma distinção que Martine Joly vê como fundamental, já que permite “revelar que uma grande parte da significação da mensagem visual é determinada pelas escolhas plásticas e não apenas pelos signos icónicos analógicos” (Joly, 1999, p. 93).

Assim, as quatro dimensões principais de análise foram as seguintes: contexto (quem produz, quem emite, através de que canal, com que recursos); discurso (nome do programa, estilo e formas linguísticas utilizadas); signos icónicos (genérico, cenário, apresentadora); signos plásticos (movimento, cor, som ambiente, imagem gráfica) e papel social em que surgem as crianças ouvidas no programa. Foram também analisadas questões como o tipo de linguagem (simples ou complexa; paternalista/infantil ou natural) e notícias apresentadas (temas de atualidade ou intemporais).

Pierre Bourdieu afirma que a figura do camponês só pode ser compreendida tendo em conta a sua oposição à cidade e ao mundo urbano. Entendemos que o mesmo acontece com a criança e com a sua relação com o adulto e o mundo adulto. Daí que o Radar XS seja analisado tendo implícita uma comparação com os telejornais dos adultos, o que, como bem nota Buckingham (1997), na sua análise de três telejornais para crianças e jovens, comporta uma visão demasiado simplificada e homogénea dos telejornais feitos para um público adulto.

Um olhar introdutório sobre o Radar XS e o seu contexto

O Radar XS, emitido no segundo canal da estação pública de televisão todas as sextas-feiras às 19h305, é apresentado pela RTP como “um telejornal para crianças dos 8 aos 12 anos, onde se pretende incentivar o pensamento crítico e a cidadania consciente”6. Com uma duração média de 15 minutos, o noticiário vai para o ar no seio do espaço de programação para a infância da RTP2 (Zig Zag), onde são também emitidos desenhos animados e séries infantojuvenis. O Zig Zag existe há já vários anos, ocupando a emissão da RTP2 logo de manhã e ao fim da tarde, perfazendo um total de sete horas e meia de programação diária do canal. Porém, apesar do seu peso nesta antena, o slogan da RTP2 é, já desde 2016, “Culta e Adulta”. Nas notícias do dia em que este slogan foi lançado, em simultâneo com um novo grafismo, a diretora do canal, Teresa Paixão, afirmou aos jornalistas: “a RTP2 é um canal cultural para minorias que promove o pensamento tanto em crianças como em adultos”7. A declaração elucida que não se trata apenas de ignorar, através do lema, uma parte fundamental do público-alvo da RTP2: as crianças. Trata-se, também, de enaltecer a condição de adulto face à de criança, escolhendo a primeira como marca distintiva do canal e parecendo sugeri-la como o paradigma, como ideal a atingir.

Esta é uma das primeiras contradições com que nos deparamos quando analisamos, em detalhe, o contexto em que o Radar XS surge. Mas o nome dado ao telejornal é, ele próprio, paradoxal. Pelo seu significado, “aparelho que serve para assinalar, pela reflexão de ondas hertzianas ultracurtas, os objetos afastados e determinar a sua localização exata”8, Radar afigura-se como um nome apropriado para um telejornal, transmitindo a ideia de que, tal como o aparelho, este irá localizar tudo o que de importante acontecer num raio considerável. No entanto, o adjetivo que surge a qualificar o nome vai no sentido oposto a este: enquanto radar remete para algo grande, para uma superação da distância, XS opera no sentido inverso, ao significar Extra Small (muito pequeno). Estamos, portanto, perante um radar, mas um radar pequeno, de curto alcance, oposto à imagem mítica do jornalismo que, ao ser capaz de vencer as barreiras do espaço e do tempo, nos traz tudo aquilo que de relevante acontece no mundo.

Será, ainda, legítimo questionar o porquê do XS neste contexto e inferir que ele surge numa alusão ao público-alvo, de tenra idade. Neste caso, estaríamos a simbolizá-las recorrendo a algo que remete para a sua estatura física, num programa que, contraditoriamente, parece ter como objetivo o intelecto e o seu empoderamento.

Sendo objetivo da Análise Crítica do Discurso “tornar mais visíveis os aspetos opacos” do mesmo, como nos recordam Fairclough e Wodak (1997, p. 258), este olhar atento ao nome do noticiário não ficaria completo sem atentarmos melhor no contexto em que XS é aplicado na vida quotidiana. Trata-se de uma medida aplicada ao vestuário, identificando as peças de roupa de tamanho mais pequeno (inferior ao S). Esta é, porém, uma escala que se aplica à roupa dos adultos, é o tamanho mais pequeno da roupa dos grandes. A roupa das crianças recorre a outras escalas, como sejam a idade ou centímetros (e mesmo que XS se aplicasse ao vestuário infantil, a medida que representa não seria certamente a do público-alvo que, como vimos, se situa entre os oito e os 12 anos). Logo, o que encontramos aqui é, uma vez mais, o predomínio da visão dos adultos num espaço feito a pensar nas crianças que, contudo, tem logo no nome uma sigla que a maioria delas provavelmente desconhece.

Assumindo a visão de Dijk (1996, p. 252), segundo a qual “a escolha do léxico é um aspeto importante do discurso jornalístico no qual as opiniões ou ideologias ocultas podem vir à superfície”, mesmo que de forma inconsciente, deparamo-nos aqui com uma visão da criança como subalterna, secundária, dependente de outrem, inferior.

Esta é uma imagem que parece ressaltar também da análise aos meios de produção empregues na realização deste serviço noticioso. Dispondo a RTP de uma redação numerosa, distribuída pelos dois principais centros de produção (Lisboa e Porto) e com delegações em todas as capitais de distrito, além de uma importante rede de correspondentes internacionais, o Radar XS, sendo um programa de informação, não é, no entanto, um noticiário feito pelos jornalistas da estação pública. A única jornalista envolvida na produção do Radar XS, responsável quer pela apresentação do programa e entrevistas em estúdio, quer pela elaboração das diferentes peças que o compõem, é contratada externamente9, o que acarreta uma série de limitações que se refletem na qualidade do noticiário em questão. Perante tão escassos meios, não será pois de estranhar que a maioria das peças emitidas pelo Radar XS não vá além de um resumo, onde os assuntos são narrados com recurso a imagens de arquivo e voz off. A diversidade de rostos, de ligações ao exterior em direto, de depoimentos e pontos de vista que marcam os noticiários dos adultos são aqui uma miragem. Além de que se nega a crianças e jovens uma das principais marcas da informação jornalística atual: a rapidez na transmissão das notícias (a maioria das peças é sobre temas que não marcam a atualidade noticiosa da semana - uns são intemporais, outros estão recorrentemente na agenda mediática, como é o caso das notícias falsas, da gentrificação, do racismo, mas não surgem neste telejornal a propósito de nenhum acontecimento/notícia10). Por outro lado, se os adultos têm noticiários diários (e até de hora a hora nos canais informativos), as crianças dispõem de um único espaço semanal de informação noticiosa feito a pensar nelas. Além disso, muito embora o público-alvo do Radar XS, pertença à geração que nasceu já com a Internet, este telejornal não dispõe de um site com informação atualizada. Na página online do Radar XS, a única possibilidade que é dada à audiência é a de ver o noticiário da semana e as edições anteriores a qualquer hora. De resto, o noticiário não dispõe, por exemplo, de redes sociais para ir ao encontro do seu público-alvo.

Signos icónicos e plásticos

Em seguida faremos uma análise da dimensão visual do discurso, destacando alguns signos icónicos e plásticos do telejornal em análise e terminando com a análise das circunstâncias em que as crianças são ouvidas no Radar XS e nele retratadas.

O simbolismo escondido no genérico

Os genéricos dos jornais televisivos marcam o início do espaço noticioso e apresentam, por regra, uma imagem gráfica do globo terrestre em movimento, transmitindo ao telespectador a ideia de que, naquele espaço, se poderá informar sobre o mundo que o rodeia e que está em constante mudança. O genérico do Radar XS evidencia continuidade a este nível. O globo está presente, além da representação de um radar, que dá nome ao programa. A continuidade faz-se sentir também a nível sonoro, sendo o genérico acompanhado por uma impactante música que vai crescendo em intensidade até surgir a imagem da apresentadora. Uma particularidade deste momento de abertura é que contém praticamente todos os elementos que marcam a identidade estética do programa: o movimento, a explosão de cor, a panóplia de artifícios gráficos e sonoros, a cibercultura, os símbolos da cultura juvenil - um olhar atento não deixará de notar, no globo terrestre a que fizemos referência, os símbolos de localização vermelhos e brancos que o Google Maps popularizou (figura 1).

Figura 1: Frame do genérico do Radar XS  

Um cenário em constante movimento

No Radar XS, o fundo em que surge a apresentadora combina aspetos de rutura e de continuidade face aos tradicionais cenários dos jornais televisivos. A secretária, atrás da qual, por norma, o pivot do telejornal dos adultos se senta, não integra o cenário e, em vez de uma cor dominante, temos, tal como no genérico, uma profusão de cores. Reinhard Gade, desenhador de vários jornais, entre os quais o espanhol El País, refere que a cor “atrai o olho do leitor, estimulando as suas antenas sensoriais” (Gade, 2002, p. 130). No contexto do Radar XS, dir-se-ia que a cor é um dos muitos elementos que concorre para essa estimulação. Outro é o movimento constante, conseguido através de diferentes estratégias. Desde logo, pelo globo em constante rotação que surge do lado direito, mas também pelo ecrã gigante que aparece do lado esquerdo e que, mais do que o tradicional ecrã de televisão, sugere o de uma consola de jogos futurista. Para Andrea Melodia (1999), nos cenários da informação televisiva, a presença de um ecrã simboliza uma janela sobre o presente, “um olho que vê tudo aquilo o que o homem pode ver” (p. 124). Dentro desse ecrã, neste caso, surge o nome do programa e, à volta deste, um círculo azul que corre no sentido dos ponteiros do relógio. Um relógio que aqui se evoca sem, contudo, ser dado a ver, mas trazendo assim para pano de fundo do noticiário esses dois elementos míticos do jornalismo, a que já aludimos atrás, e que são o espaço e o tempo. Para a sensação de movimento concorre, ainda, a forma como a imagem é captada. Há duas câmaras em estúdio que permitem alternar o ângulo com que vemos a apresentadora, e os planos que nos são dados a ver raramente são estáticos. A própria apresentadora se movimenta enquanto introduz as peças e, se não o faz, surge sempre em partes diferentes do estúdio e em diferentes posições - de pé, sentada num banco, sentada no chão. Antes de centrar a análise na sua figura, atentemos ainda nos restantes volumes que compõem o cenário e que remetem para uma realidade virtual, a dos videojogos nomeadamente, com uma profundidade de campo assinalável e elementos suspensos que participam, também eles, desse todo em movimento - mesmo sendo ele ilusório neste caso (Figura 2). Ao ver o programa, o telespectador parece ser convidado a entrar num universo próprio, mas familiar, pelos elementos visuais e plásticos de uma cultura juvenil que convoca. As tecnologias não se veem, mas estão no cenário: sem o recurso a elas a imagem que nos chega não seria possível. Martins (2017) parece resumir o que nos é dado a ver, sem o ter visto, remetendo-nos assim para uma imagem que faz parte do mundo pós-moderno: “Pela tecnologia do virtual, misturam-se a presença e a ausência, o próximo e o distante, o pesado e o leve, a aparência e a realidade. Entram em crise as fronteiras entre o real e o virtual. O nosso mundo fusiona” (p. 179).

Figura 2: Vista geral do cenário do Radar XS  

A personagem que a apresentadora encarna

Em qualquer jornal televisivo, o/a pivot é muito mais do que o apresentador(a) das notícias: ele/ela é o símbolo do jornal televisivo, alguém que se deixa entrar em casa e em quem se confia para se saber o que de mais importante está a acontecer no mundo. Ter uma imagem de credibilidade e conseguir estabelecer com o telespectador uma relação empática é propósito de qualquer pivot. Com esse objetivo, muitos são os códigos mobilizados. Como recorda Umberto Eco,

“Que o homem comunique através da emissão de sons articulados a que são atribuídos certos significados (diz-se normalmente a ‘linguagem verbal’) é coisa que se aceita pacificamente. Mas menos pacífico torna-se já o facto que o homem comunique através de uma infinidade de outros sinais, os gestos das mãos, os movimentos dos olhos, as inflexões da voz” (Eco, 1989, p. 8).

O olhar é, justamente, um aspeto determinante na apresentação das notícias. Jean-Jacques Jespers (1998) pensa que ele espelha o tipo de discurso que se institui: “se o apresentador olha o espectador nos olhos, é porque está para lhe contar uma história verídica, para lhe dar uma informação referente a uma realidade, o que torna o discurso real” (p. 178). Também Eco (1993) considera que o pivot “pondo-se em posição frontal em relação ao espectador, este adverte que ele está a falar precisamente para ele através do meio televisivo. Implicitamente, adverte-o de que há qualquer coisa de ‘verdadeiro’ na relação que se está instituindo” (p. 139).

O olhar é porventura o único elemento de continuidade da apresentadora do Radar XS face ao telejornal dos adultos. Andreia Friaças olha o espectador nos olhos. Mas, pelo que analisamos em seguida, vê-se que está longe de ser a pivot convencional. É uma jornalista muito jovem que conseguimos ver aqui quase como uma personagem: a da irmã mais velha, em quem se pode confiar, que ensina, que orienta. E, não menos importante: alguém com quem o público-alvo se pode identificar. Ela é cool. Invocando de novo as palavras de Eco (1989), “quem se interessou alguma vez pelos atuais problemas da semiologia, já não pode continuar a fazer o nó da gravata (…) sem ficar com a clara sensação de estar a fazer uma opção ideológica: ou, pelo menos, de lançar uma mensagem” (p. 7). Andreia Friaças trata os telespectadores por tu, aparece com o cabelo ligeiramente despenteado ou com um informal carrapito no cimo da cabeça, veste calças de ganga e calça as sapatilhas da moda, tanto se senta com uma perna em cima do banco como de pernas cruzadas no chão, gesticula, é expressiva (ver Figuras 3 e 4). Tudo parece informal, ocasional, espontâneo (embora se trate, provavelmente, de uma encenação de espontaneidade, fruto de estudo e reflexão11) para que a empatia com o público que se pretende atingir aconteça.

Talvez nem mesmo os óculos que tem na cara sejam um acaso, mas sim um subtil símbolo de autoridade intelectual, de seriedade que assenta bem a quem vai falar de assuntos sérios.

Figura 3: Frames de um dos momentos de apresentação do noticiário  

Figura 4: Frame de um dos momentos de apresentação do noticiário  

Imagem gráfica: uma leitura facilitada

Pela inteligibilidade quase imediata da mensagem que proporciona, a infografia tornou-se uma grande aliada do jornalismo e dos jornalistas na altura de transmitir certo tipo de mensagens. Na opinião de Gonzalo Peltzer, “o desenho é visto e compreendido num tempo muito breve, que nos permite falar de uma leitura imediata”. O autor salienta que a eficácia do desenho reside na velocidade, ao beneficiar “da rapidez de investigação da vista, capaz de explorar muito rapidamente um espaço já estruturado” (Peltzer, 1992, p. 86). Para os produtores do Radar XS essa aliança é real: o recurso à infografia é frequente e acontece em várias situações (ver Figuras 5 e 6). Desde logo, quando há necessidade de situar geograficamente as notícias, mostrando no mapa o lugar em que ocorreram. Mas também em situações menos expectáveis, em que mais do que infografia, talvez seja adequado falar em imagens animadas. Por exemplo, quando se recorre a ilustrações dinâmicas para explicar o passado de desigualdade entre mulheres e homens a vários níveis; para mostrar o funcionamento da Assembleia da República ou de um projeto empreendedor como o Fruta Feia, que pôs os portugueses a comprar fruta que, pela sua aparência ou tamanho, nunca chegaria às prateleiras de um supermercado. O que parece estar em causa nestas situações é não tanto uma preocupação com a clareza na transmissão das mensagens, mas antes uma forma mais apelativa de ilustrar as notícias.

Figura 5: Exemplo de recurso a imagens gráficas  

Figura 6: Exemplo de recurso a imagens gráficas  

Um som ambiente sintético e repetitivo

Quem tenha estudado jornalismo sabe que o som é informação e, por vezes, informação determinante para se compreender a mensagem. No Radar XS, o som perde o papel que habitualmente desempenha no convencional jornalismo televisivo. Na esmagadora maioria das peças emitidas, o som ambiente é eliminado e, em sua substituição, as peças apresentam uma música de fundo - música sintética e repetitiva quase sempre -, transportando o telespectador para um cenário mais próximo da ficção do que da realidade. É sobre essa música, semelhante à que se ouve nos jogos de computador, que é gravado o off da jornalista. Também os elementos gráficos são acompanhados de um som específico aquando da sua inserção na imagem. É o caso das identificações dos entrevistados, que surgem associadas a um som similar ao de uma mensagem de telemóvel. Também no sumário do telejornal, emitido no início do programa, de cada vez que muda a notícia a apresentar, ouve-se um som que parece o de uma espada a cortar repentinamente o ar.

Crianças: um retrato diversificado a partir das notícias

Na apresentação do Radar XS, na página da RTP, lê-se “Queremos dar voz às crianças”. A observação das 21 edições do telejornal confirma que este objetivo é alcançado. O noticiário dá-lhes voz em quase todos os programas e elas são entrevistadas num leque de papéis mais vasto do que aquele que, como vimos no início deste artigo, lhes é atribuído na imprensa dirigida aos adultos. Nas peças ou nas entrevistas feitas em estúdio, as crianças surgem como estudantes (envolvidas em diferentes iniciativas escolares, como aulas de meditação), como ativistas (é ouvida uma jovem que organizou uma manifestação estudantil contra as alterações climáticas em Lisboa), como artistas (é ouvida uma bailarina), como tendo opinião sobre os temas (vox pop sobre o que pensam sobre o racismo), como desportistas (em jogos de futebol que aproximam crianças e jogos de dois bairros rivais), como solidárias (envolvidas em projetos de solidariedade), como moradores da cidade (uma criança guia os telespectadores pelo seu bairro). A existência de peças ou offs sobre espetáculos, filmes ou livros coloca-as, ainda, implicitamente na posição de audiências.

De destacar, porém, que a visão dos telespectadores do Radar XS como estudantes está presente, em grande medida, no discurso a que se recorre para veicular determinadas informações. É frequente, em diferentes peças, fazer-se uma pergunta e dar-se de imediato a resposta, como se de uma aula se tratasse. São exemplos desta situação notícias sobre o racismo, a União Europeia ou o Serviço Nacional de Saúde, com o off da jornalista a questionar o que é cada um deles e a avançar a explicação. Para a visão do noticiário como uma aula, contribui também, o facto de, por várias vezes, a apresentadora remeter os telespectadores para edições passadas do Radar XS, como uma professora que remete para matéria já dada (por exemplo: “o Radar XS já falou sobre todos os direitos da criança, podem voltar a ver no Zig Zag Play”).

Discussão de resultados

No capítulo que encerra o livro A linguagem, a verdade e o poder (2017), Martins reflete sobre esse sobreaquecimento contínuo com que Nietzsche, há mais de um século, se referia à modernidade, mostrando como esse sobreaquecimento não parou de se acentuar, nomeadamente com o advento do digital, que veio possibilitar mediações que "conectam-se, ligam-se diretamente aos nossos sentidos, às nossas emoções, paixões e afetos" (p. 175). As palavras do autor parecem adequar-se na perfeição ao Radar XS, que se adivinha gizado sob a lógica do não aborrecimento. O espaço da comunicação que Martins descreve como sendo na atualidade “libinal e retórico”, onde o “ruído” impera, onde se convoca uma multiplicidade de “símbolos e modelos juvenis”, vindos, como vimos, da música, da moda, do lazer, das artes gráficas é, também, o espaço em que se inscreve o Radar XS. O programa solicita em permanência a atenção do telespectador, serve-se de técnicas de sedução mais ou menos sofisticadas para o cativar. Na ânsia de o prender, adorna as notícias com artifícios, beliscando-lhe por vezes a aura de autenticidade, de verdade, como vimos no caso da substituição do som ambiente por uma música anestesiante. Huyghe defende que “já não somos homens de pensamento, homens cuja vida interior se alimenta nos textos. Os choques sensoriais conduzem-nos e dominam-nos; a vida moderna assalta-nos pelos sentidos, pelos olhos, pelos ouvidos” (René, 1998, p. 9)

Respondendo à questão de partida, sobre qual a aceção de criança subjacente na produção deste noticiário, a análise efetuada aponta para uma visão deste público como uma audiência que não se interessa de forma natural por notícias. Daí que um noticiário semanal de cerca de 15 minutos de duração, feito sem grandes recursos técnicos e humanos, ser visto como suficiente para as informar. Assim pode ser interpretado, também, o esbatimento de fronteiras entre informação noticiosa e entretenimento que sobressai da análise efetuada aos signos visuais e plásticos, com doses generosas de cor, movimento, música e efeitos gráficos que, como vimos, caraterizam o Radar XS.

Seria, no entanto, injusto associar o esbatimento das fronteiras entre informação jornalística e entretenimento unicamente a este noticiário infantil. Essa é a tendência de uma boa parte do jornalismo televisivo atual. Ramonet (1999) é um dos vários autores que reflete sobre a espetacularização da informação noticiosa. Considera que “as novas leis que se impuseram aos programas informativos - e aos telejornais em primeiro lugar -, as do espetáculo e da encenação, perturbaram verdadeiramente a relação com a realidade e com a verdade, alterando-lhes a natureza e subvertendo as referências” (p. 86). A televisão explora ao máximo as possibilidades que os meios tecnológicos lhe facultam, entre elas o estabelecimento de ligações em direto, que fazem hoje parte integrante dos noticiários televisivos. Dir-se- ia que, no Radar XS, as leis do espetáculo são diferentes das dos adultos, já que os meios são diferentes, e que os signos analisados dão essa espetacularidade à informação que nos noticiários convencionais se consegue, por exemplo, com recurso a diretos, a vivos de vários jornalistas, com comentadores, com a exibição dos meios técnicos com que se faz o telejornal, com a redação como pano de fundo, com bolachas e rodapés a acompanhar a leitura do pivot.

Se demos a este artigo o título “Radar XS: um telejornal sob o signo da contradição” foi também porque há, na sua produção, elementos que parecem contrariar esta visão da criança como um público menor das notícias, que transparece da análise do contexto em que o noticiário surge, do seu nome e dos meios envolvidos que permitem fazer apenas um produto sofrível do ponto de vista jornalístico.

É importante salientar que, desde um determinado ângulo, o Radar XS empodera as crianças. Desde logo, pelo facto de existir (cumprindo o disposto na Convenção sobre os Direitos da Criança), transmite a ideia de que elas são capazes de compreender o que se passa no mundo à sua volta, desde que os acontecimentos lhe sejam explicados numa linguagem adequada à sua idade e de forma contextualizada. Por outro lado, a linguagem utilizada, sendo simples, não é infantil ou revestida de um caráter paternalista12, remetendo uma vez mais para a valorização da capacidade cognitiva das crianças. De acrescentar, também, que muito embora pecando por falta de atualidade e dos chamados temas quentes, abordam-se, ainda assim, no Radar XS temas sérios, com algum grau de controvérsia por vezes. É, ainda, como vimos, dada voz às crianças, que surgem como capazes de expressar as suas opiniões e preocupações, de relatar os seus feitos - sem a ajuda de pais ou professores, como costuma acontecer na imprensa adulta, onde a voz delas surge muitas vezes como um simples apontamento que dá colorido e vida às reportagens. Além disso, as crianças surgem retratadas em diferentes posições e não apenas reduzidas à condição em que mais costumam aparecer nas notícias dos adultos. A gama de papéis em que as crianças surge coloca-as, portanto, também no papel de cidadãs, não as reduzindo à sua condição de alunas, embora esta seja uma dimensão que se evidencia, como vimos, pelo discurso utilizado e pela quantidade de vezes em que surgem enquadradas por iniciativas escolares.

Retomando a imagem dos media a partir da ideia de mercado simbólico (introduzida por Bourdieu), vendo no discurso televisivo um emissor legítimo - com um elevado capital (e poder) simbólico que lhe vem da influência que exerce na sociedade - e tendo em conta a análise feita, podemos olhar para o Radar XS como um espaço sagrado onde se luta pela manutenção da visão dominante do adulto. Porém, nele, começa a revelar-se um certo poder mágico, já que o dominado - a criança - começa a ocupar um lugar no mercado simbólico, a tornar-se visível como grupo, a assistir a um reposicionamento do seu lugar no discurso. Uma magia que, ainda assim, só é possível graças à vontade da estrutura dominante e nos moldes em que esta a estabelece.

Agradecimentos

Este estudo foi realizado no âmbito do projeto de doutoramento em Ciências da Comunicação, na Universidade do Minho, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia através da bolsa com a referência BD/139388/2018.

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1A ratificação da Convenção representa um vínculo jurídico, devendo os Estados adequar as normas de Direito interno às do documento, garantindo a promoção e proteção eficaz dos direitos e liberdades consagrados.

2Ver http://media.rtp.pt/empresa/wp-content/uploads/sites/31/2015/07/contratoConcessao2015.pdf

3Os dados sobre os programas aqui apresentados foram fornecidos pelo Centro de Arquivo da RTP, a nosso pedido.

4Os episódios de 2019 podem ser vistos em https://www.rtp.pt/play/zigzag/p6232/radar-xs; os de 2020 em https://www.rtp.pt/play/zigzag/p6688/radar-xs

5Tem repetição aos sábados na RTP1 às 7h30.

6Ver https://www.rtp.pt/programa/tv/p37709

7Ver http://media.rtp.pt/extra/estreias/rtp2-culta-e-adulta/

8Ver https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/radar

9Contratados externamente são também os responsáveis pela infografia, grafismo, anotação, produção e realização. A equipa da RTP surge na ficha técnica do programa (a velocidade tão acelerada que se torna de difícil leitura) como responsável pela edição, pós-produção áudio, coordenação de conteúdos, música do genérico e direção de arte.

10Curiosamente, no final do programa a apresentadora despede-se dizendo que regressa na semana seguinte com “mais histórias sobre o país e o mundo”, deixando cair o conceito de notícias e remetendo para o caráter mais intemporal que marca a informação dada pelo Radar XS.

11No final do programa, um dos anúncios que surge, como patrocinador, é o de uma empresa ligada à imagem profissional (make up, caraterização, stylist e cabelos), a My Klaquete, que provavelmente trata da imagem da apresentadora no programa.

12Algum paternalismo transparece, porém, em certos comentários de caráter educativo feitos pela apresentadora, por exemplo quando esta afirma “o Radar XS diz-te o que podes fazer para ajudar a preservar o lobo ibérico”; ou, numa peça sobre as desigualdades entre homens e mulheres, “É preciso acabar com a ideia de que há profissões para mulheres e para homens”; ou ainda, quando em jeito de conselho, diz “A DGE tem um concurso que vos pode interessar” (Radar XS, edições nº 5, 9 e 10, respetivamente).

Recebido: 04 de Maio de 2020; Aceito: 20 de Julho de 2020

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