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Observatorio (OBS*)

On-line version ISSN 1646-5954

OBS* vol.15 no.1 Lisboa Mar. 2021  Epub July 26, 2022

https://doi.org/10.15847/obsobs15120211688 

Artigos Originais

Gênero e jornalismo: quem produz as notícias e como influenciam no discurso

Gender and journalism: who makes the news and how it influences the discourse

1Universidade de Coimbra, Portugal


Resumo

O assunto que esse trabalho se debruça diz respeito ao questionamento: o fato de haver mais mulheres jornalistas alteraria a perspectiva de gênero nas produções noticiosas? O artigo divide-se em três partes; na primeira, o discurso é abordado sobre uma perspectiva de gênero, trazida por Teun van Dijk (2017) e Linda Steiner (2017). Na segunda, é feita uma revisão bibliográfica de trabalhos que tiveram como ênfase a diferenciação de gênero nas redações dos meios de comunicação noticiosos. Alguns deles pontuam diferenças existentes nas representações midiáticas e levam em consideração o número de mulheres presentes nas redações. Entretanto, pesquisas mais recentes contextualizam a inserção sociocultural dos/das profissionais, levando em consideração os papéis de gênero na sociedade. Sendo a feminização das redações um fenômeno que acontece passo a passo com a crise comunicacional neste início de século, são trazidas por último as cinco estratégias propostas por Margaret Gallagher (2004) para que a mudança do cenário atual possa ocorrer. O ponto de vista da autora compreende outros meios de comunicação, além dos noticiosos, e tem como chave a perspectiva de gênero.

Palavras-chave: jornalismo; gênero; feminização das redações; discurso; subjetividade

Abstract

The main subject discussed in this paper concerns the question: would more women journalists alter the gender perspective in news productions? The article is divided into three parts. In the first, the discourse is approached from a gender perspective, explained by Teun van Dijk (2017) and Linda Steiner (2017). The second part is reserved for a bibliographical review of some researches which emphasize gender differentiation in newsrooms. Some of them point out differences in media representations and take into account the number of women working as jounalists. However, more recent research contextualizes the socio-cultural insertion of media professionals, considering gender roles in society. Since the feminization of newsrooms is a phenomenon that happens at the same time happens the communicational crisis in the beginning of this century, five strategies proposed by Margaret Gallagher (2004) are presented. It is a manual to change the current scenario. The author's point of view comprises media than other the news and is based on gender perspective.

Keywords: journalism; gender; feminization of newsrooms; discourse; subjectivity

Introdução

Quem sou eu? Quem é o outro? As perguntas filosóficas que dão o pontapé inicial necessário ao processo de conhecimento que obedecem à lógica racional cartesiana desenlaçam-se para outras questões que podem ajudar a responder as primeiras. Como e por que nos comunicamos? Por quais meios o fazemos? E com quem comunicamos, ou ao menos com quem nos interessa comunicar? Comunicação é troca, é tentativa de entendimento, é coabitação. A ideia que Dominique Wolton (2006, p. 11) cunha ao defender a comunicação é a da constante “procura da relação, e da partilha com o outro. Atravessa todas as atividades: lazer, trabalho, educação, política, diz respeito a todos os meios sociais, todas as classes sociais, todas as idades, todos os continentes, aos ricos e aos pobres”.

Mas como falar de trocas num mundo desigual? Como uns ouvem os outros, por quais perspectivas e através de quais meios? “É sempre o mesmo raciocínio: os valores que sustentam a comunicação - liberdade, respeito e igualdade dos parceiros - passam do plano pessoal para o plano colectivo” (idem, p.89). Tentando decifrar a construção de mundo que fazemos, podemos dizer que afirmamos, descobrimos e construímos nossa identidade a partir das diferenças, ao descobrirmos o “outro”, e de sobremaneira pela concepção e idealização que nos é trazida pelos meios de comunicação (Hall, 1997). É através da imprensa que “as atitudes sociais são formuladas e difundidas na sociedade (…). Muito do que sabemos sobre o mundo não é só baseado nas notícias, mas também está associado a normas e valores e a princípios ideológicos fundamentais” (van Dijk, p. 2017, p. 15). Então, quem (ou o quê) formula essa ordem, ela é baseada em quais premissas e como é desenvolvida?

Com o empréstimo do termo de Wolton, podemos começar a “salvar” a comunicação aniquilando as desigualdades de gênero nas redações jornalísticas. Este artigo, com finalidade exploratória e inevitavelmente reduzida por afunilar o ato de “comunicar” aos meios de comunicação noticiosos, não pretende resgatar o jornalismo colocando luz apenas em um dos tantos pontos a se discutir. Mas, pretende sim, defender a urgência de se desenvolver novos modos, a partir dos já existentes, de comunicar notícia. O presente trabalho começa por traçar um desenho das relações de gênero no discurso, avança para questões mais particulares com relação às mulheres no jornalismo, e expõe ao final a proposta de Margaret Gallagher (2004) para mudar o futuro. Tratamos do “fazer jornalismo” como peça-chave para a mudança mais célere das diferenças de representação de género, que envolvem outras questões, tão profundas quanto a primeira. A ideia é discutir e pontuar em que já se avançou e o que é preciso fazer, ou continuar a fazer, para que haja uma equidade nas relações de género nos meios de comunicação noticiosos.

A questão que se coloca é: o fato de haver mais mulheres jornalistas alteraria a perspectiva de gênero nas produções noticiosas? Sim, porque maior representatividade aumentaria as possibilidades para novos pontos de vista. Ou não, a considerar que as práticas discursivas nos moldes patriarcais estão de tal forma institucionalizadas, foram incorporadas de tamanha maneira, que a maior presença de mulheres não alteraria algo que está interiorizado. Em suma, como as subjetividades femininas podem influenciar na cobertura jornalística?

Gênero e discurso

A crítica feminista que envolve o discurso é direcionada à exclusão histórica do gênero feminino no discurso. Muito mais que tratar da linguística indo-europeia, em que a mulher é construída como sendo o “outro”, a diferença é marcada por binarismos simplistas (ativa/passiva, cabeça/coração, para citar alguns exemplos). O gênero linguístico não classifica apenas o que é descrito, ele prescreve normas não declaradas de representações simbólicas. Como o domínio deste simbolismo é masculino, as regras do discurso criadas - e porque não, impostas - na nossa sociedade acompanham a maneira masculina de pensar e de se expressar. “Ninguém vê do nada” (Jansen, 2002, p. 89). O conhecimento é situado, personificado, corporificado (Haraway apud Jansen, 2002; Miguel & Biroli, 2010). Sendo assim, não existem neutralidades nem imparcialidades; todos os objetos e todas as observações são mediadas pela linguagem, cultura e pontos de vista.

É previsível que o modo de ver o mundo dos que exercem a profissão de jornalistas esteja espalhado em seus textos noticiosos. Como pontuou van Dijk (2017), nas redações a maioria são homens, e as mulheres raramente estão em funções editoriais hierarquicamente mais altas. Estes profissionais, e os meios de comunicação por sua vez, são pouco diferentes dos grupos de elite e das instituições, são eles que sustentam a ordem masculina.

É desta forma (como as ideologias são reproduzidas nas notícias de imprensa) que os cidadãos se identificam, comunicam e actuam como membros de grupos. É deste modo que as atitudes sociais são formuladas e difundidas na sociedade; é fundamentalmente desta forma que o poder e a dominação são hoje exercidos. A política seria impensável sem os media e as suas mensagens ideologicamente baseadas. Muito do que sabemos sobre o mundo não é só baseado nas notícias, mas também está associado a normas e valores e a princípios ideológicos fundamentais. (van Dijk, 2017, p.15)

Como pontua Steiner (2017), a pesquisa sobre gênero e jornalismo é dividida em duas categorias, sendo a primeira focada no trabalho nas redações onde discutem-se oportunidades e desigualdades nas funções, hierarquia, remunerações e sexismo. E a segunda, é centrada nas representações de mulheres. Geralmente é assumido que a primeira determina incondicionalmente a segunda e que as relações entre gênero e jornalismo são fenômenos separados (Ruoho & Torkkola, 2018; Steiner, 2017). A objetividade e a imparcialidade como valores e técnicas essenciais do jornalismo é base de uma crença que posiciona o jornalismo além das relações de poder e de gênero (Ruoho & Torkkola, 2018), e é esse ponto justamente que é desafiado e questionado nas pesquisas mais recentes.

As Mulheres e os Meios de Comunicação

Quando as mulheres começaram a trabalhar em um ambiente tipicamente masculino, como (ainda) são as redações jornalísticas (Santos & Temer, 2016; Ross, 2001; De-Miguel et al., 2017; Skjerdal, 2016), e entraram no mercado de trabalho de forma mais ampla, ocuparam cargos subalternos aos dos homens. Nos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX até o início do século XX, as repórteres foram as que encabeçaram o jornalismo investigativo. As Stunt Girls utilizavam disfarces e assumiam uma personagem para obter documentos e informações que de outra forma não conseguiriam (Santos & Temer, 2016). Em Portugal, as jornalistas tiveram que se esconder usando pseudônimos masculinos, o que dificulta o fato de saber quem foram as primeiras mulheres nas redações, assim como situar com exatidão o tempo e o espaço do início das mulheres no jornalismo português. De qualquer modo, são assinaladas como início as décadas de 1960 e 1970, um período marcado pela ditadura do Estado Novo e atravessado pela Revolução de 1974. O Portugal dos anos 1960 era um país com níveis altos de analfabetismo, que atingiam particularmente o sexo feminino. A somar, havia uma visão jurídica que equiparava as mulheres aos menores de idade (Ventura, 2014). Nas redações do Brasil, ao longo do século XIX, elas assumiram papéis de redatoras destinadas aos assuntos ditos femininos, entretenimento, fofocas, moda, beleza, família e afazeres domésticos (Bandeira, 2016). A segregação dos assuntos “mais leves” dos “mais pesados” acompanhou as diferenciações de gêneros. Na primeira página, notícias escritas por homens (política, internacional, esporte, economia) eram - e ainda são em sua maioria - separadas das notícias escritas por mulheres, consideradas “fúteis e apolíticas” (Chambers, 2017, p. 76). Porém, esta não era a única forma de organização da informação; houve resistências e alternativas.

Surge no século XVIII, seguindo os passos da Revolução Francesa, o jornalismo feminista, que, ao contrário do jornalismo feminino, aborda ações das mulheres fora do ambiente privado. A participação feminina envolvia movimentos sociais de cunho político (Bandeira, 2016; Santos & Temer, 2016). Na Inglaterra, o período pós-guerra marcou o momento em que as mulheres se envolveram em lutas culturais e políticas para estabelecerem-se na profissão onde eram marginalizadas e subordinadas. Na segunda onda do feminismo, foram criadas estratégias para desafiar os discursos patriarcais, passando a ser inserido o prisma das mulheres em questões que tangiam a política (idem).

O último relatório do Global Media Monitoring Project (2015) mostrou que 37% das matérias de jornais impressos e online, televisão e rádio são relatadas por mulheres; tendo esta estatística geral estagnado por dez anos. Mais especificamente, quando os assuntos são sobre política e economia, 31% e 39% das notícias, respectivamente, são relatadas por mulheres. As editorias que possuem maior equilíbrio quanto ao número de repórteres homens e repórteres mulheres são as de ciência e saúde. Elas também são consideradas velhas, e eles experientes com o avançar da idade. Na televisão, embora a maioria seja apresentadora, a proporção cai drasticamente ao chegarem aos 50 anos, justamente a idade dos homens que dominam a ancoragem de notícias. Para perceber a presença das mulheres nas redações e a prática jornalística relacionada à representação, são observados e analisados, a cada cinco anos, meios de comunicação em mais de cem países.

Embora haja disparidades de gênero na profissão de jornalista, vê-se um fenômeno de feminização das redações nos Estados Unidos (Santos & Temer, 2016) e em Portugal (Miranda, 2014, 2017). Isto se deve em parte ao fato do cenário acadêmico ter mudado e o impacto ter começado a ser sentido nos padrões de empregabilidade (Chambers et al., 2004). A maior procura e aceleração nas especializações é observada nos Estados Unidos no início do século XX, mas não na Grã-Bretanha, que no campo jornalístico se profissionalizou de maneira mais lenta (Chambers et al., 2004). Tanto em Portugal quanto no Brasil o corpo discente nos cursos de Informação e Jornalismo é predominantemente feminino (Rocha & Santos, 2019; Miranda, 2017, 2014). Entre 2000/01 e 2013/14, encontra-se uma proporção na situação portuguesa de 2,7 mulheres por cada homem que se diploma nestas áreas (Miranda, 2017, 2014). Com esta tendência, Miranda (2017, p. 40) fala de indícios para um quadro onde o “efeito transformador destas dinâmicas será abrandado ou invertido”.

No caso brasileiro, mais especificamente em São Paulo, depois de entrevistas com jornalistas, foi verificado que não houve mudanças nas estratificações entre homens e mulheres no jornalismo, mesmo depois do ingresso delas nas universidades e no mercado de trabalho. Há inclusive um contraste geracional percebido na forma como as mais jovens (recém-formadas e sem filhos) se comunicam de maneira mais técnica, empresarial e objetiva. E na idealização que possuem sobre a profissão, enquanto que as jornalistas mais experientes não sonham com o glamour da profissão (Leite, 2017). Mesmo sendo as mulheres maioria nas redações e nos cursos de graduação em jornalismo no Brasil, não há uma ocupação proporcional nos postos de trabalho. No caso do Amapá, uma pesquisa mostrou que o número de mulheres sem contrato formal de trabalho é maior que o de homens. Além da precarização laboral, foi constatado que há prevalência de mulheres brancas (Rocha & Santos, 2019).

Nos trabalhos sobre os meios de comunicação portugueses, que direcionam as análises para a feminização das redações, é visto que apesar da presença de mulheres ser cada vez em maior número, a barreira social que as vincula à subordinação e à inferioridade salarial impede que a equidade de gênero aconteça (Bandeira & Vizeu, 2018). A investigação de Silveirinha e Simões (2016) constatou que as/os jornalistas acentuam a meritocracia ao deixar de lado suas experiências. Às vivências relacionadas ao gênero é possível exemplificar com implicações práticas no que concerne família-trabalho. As mulheres têm de equilibrar os seus papéis, organizando o dia-a-dia de forma a “compensar” (p.44) em casa e no trabalho.

Como as mulheres lidam com as expectativas e a cultura típica machista do local de trabalho depende de uma série de fatores. Foi o que Ross (2001) tentou buscar ao conversar com as associadas da rede britânica de mulheres jornalistas, a Women in Journalism. A investigação, realizada em 1999, sugere que o gênero não era aspecto importante para algumas mulheres, embora para outras o impacto fosse visto de forma negativa. A exemplo dos homens, as mulheres que comandam ou que fazem parte deste ambiente de trabalho tendem a repetir padrões hegemônicos tipicamente masculinos. “As consequências para as mulheres que optam por trabalhar nesse domínio ordenado por homens, então, são as de derrotar os meninos em seu próprio jogo, tornando-se mais assertivas e mais machistas, ou então desenvolver maneiras alternativas de ser jornalista” (Ross, 2001, p. 535), ou seja, sob o ponto de vista da autora, aliando-se aos profissionais que também sofram processo de exclusão, como os negros ou homossexuais.

A situação dos Estados Unidos estudada por Craft e Wanta (2004) revelou que a linha editorial nos veículos comandados por homens tendia para focos mais negativos. Os autores sublinham que a presença de mulheres está gerando um impacto nas redações, mas de maneiras díspares e sutis do que era previsto. Foi observado que repórteres, independentemente se homens ou mulheres, estão propensos a coberturas semelhantes quando trabalham para jornais com uma alta percentagem de mulheres em cargos mais altos. Os autores explicam que há situações de forte empatia das editoras com as repórteres porque as atuais chefes podem ter passado por obstáculos semelhantes no início de suas carreiras. E o terceiro achado diz respeito a aceitação de tarefas rotineiras e de enquadramentos para suas histórias por parte dos homens apenas para manterem boa impressão com suas chefes.

A pesquisa de Chamber et al. (2004), que teve foco nos Estados Unidos e na Inglaterra, revela que a rotina de trabalho é definida e julgada por questões de gênero. As mulheres ainda são concentradas em editoriais consideradas de “soft news”, e na televisão a ênfase se dá no “valor decorativo” (p. 1) e na sexualização feminina. Enfrentamento de sexismo e situações que esbarram em convenções sociais versus cultura da redação, como maternidade/gestação e longas horas de trabalho são frequentes.

Os dois países também estiveram sob escrutínio, juntamente com países da Europa e da América Latina, no trabalho de De Vuyst e Raeymaeckers (2019). Há genderização no jornalismo quando a rotina envolve inovação tecnológica, sendo os homens classificados como tecnologicamente competentes e as mulheres como tecnologicamente incompetentes. O binarismo de gênero é visto quando as habilidades digitais das mulheres são frequentemente questionadas ou subestimadas, sendo que elas mesmas posicionaram suas competências em falas de "medo" e "distância", enquanto que eles expressaram suas capacidades em termos de confiança.

O caso da Espanha não é diferente do que foi observado pelo GMMP (2015). Embora se vislumbre uma melhora na situação das mulheres jornalistas, nomeadamente no jornalismo online, são os homens que ocupam três quartos dos cargos de nível alto de responsabilidade administrativa e dois terços dos cargos que detêm a tomada de decisão sobre o conteúdo publicado. Apesar das mulheres espanholas possuírem maior nível de estudos, elas recebem salários mais baixos (De-Miguel et al., 2017).

Em consonância com os números do GMMP também está a Etiópia, que estende a divisão de gênero societal para as redações. Um estudo conduzido com 350 jornalistas locais averiguou que as práticas da profissão jornalística são influenciadas pelas desigualdades que acompanham a sociedade etíope. De forma geral, mulheres e meninas possuem baixo status social e são prejudicadas em áreas como emprego, alfabetização, estudos e direitos humanos. No jornalismo, a maioria dos homens têm mais de 30 anos, enquanto as mulheres têm menos de 30 anos. A pesquisa de Skjerdal (2016) evidenciou que repórteres homens inclinam- se com mais facilidade para pautas de investigação, e repórteres mulheres enfatizam assuntos sobre cultura e entretenimento.

Embora haja fortes indicativos sobre as desigualdades de gênero, no que tange as percepções individuais, Hanitzsch e Hanusch (2012) não encontraram significativas diferenciações entre homens e mulheres jornalistas em 18 países (Austrália, Áustria, Brasil, Bulgária, Chile, China, Egito, Alemanha, Indonésia, Israel, México, Romênia, Rússia, Espanha, Suíça, Turquia, Uganda e Estados Unidos). A partir da análise comparativa em larga escala foi possível evidenciar que não existe ligação entre objetividade e jornalismo feito por homens, nem subjetividade e jornalismo feito por mulheres. Mas há efeitos de gênero no que concerne ao papel de watchdog da profissão, estando elas mais propensas a achar tal função irrelevante. Os resultados põem em dúvida a convicção de algumas investigações em apontarem para uma cultura jornalística mais “feminizada” em detrimento dos padrões “masculinizados” hegemonicamente estabelecidos.

Reformular as normas masculinas e masculinizadas, tanto do escrever quanto da identidade profissional, tem sido tarefa árdua (Allan, 2014). Isto porque além de administrar a carreira, é destinado a elas o cuidado familiar e da casa. Muitas vivenciam a dupla jornada de trabalho, o que interfere no desempenho em horário laboral, com efeitos físicos e intelectuais. Numa profissão em que o mental é tão importante, em que o cognitivo dita muitas vezes a capacidade de produção, são elas que saem prejudicadas. Uma vez que fica mais fácil administrar o trabalho com os horários regulares, estruturados e previsíveis, as pautas que carregam mais status ficam à cargo dos homens (Chambers & Steiner apud Allan, 2014).

A naturalização das convenções que diferenciam os papéis de homens e mulheres, a negação em relação à influência que a forma de ver e relatar o mundo tenha a ver com a experiência de ser mulher e a ênfase em meritocracia mostram que as formas de lidar com as rotinas da vida são atitudes inquestionáveis para as entrevistadas e para os entrevistados (Bandeira & Vizeu, 2018; Silveirinha & Simões, 2016; Lobo et al., 2017). De uma forma acultural, há quem aponte que a grande diferença reside na ética profissional, tendo as mulheres posturas e condutas morais superiores aos dos homens. A elas também é reservada a percepção do jornalismo como justiça social (Santos & Temer, 2016).

Práticas para o futuro

O jornalismo atualmente enfrenta mudanças. As transformações são profundas e afetam tanto a indústria da informação quanto a profissão e as condições de trabalho (Wahl-Jorgensen et al., 2016). A feminização das redações é um processo que ocorre ao mesmo tempo em que a crise informacional bate à porta das empresas de comunicação. Mesmo não sendo uma questão de gênero, este problema pode influenciar nas perspectivas de igualdade nas condições de trabalho, nas práticas jornalísticas e nas representações estereotipadas vezes sem conta repetidas. Por outro lado, também os meios alternativos surgem e imprimem novas rotinas às já conhecidas e replicadas automaticamente no jeito de fazer jornalismo. As implicações são em dimensões surpreendentes, ora negativas ora positivas.

A sociedade também já não é a mesma, o início de século se impõe e novos posicionamentos e novos pontos de vista emergem. Nos meios de comunicação, muitos acreditaram na ideia de que a reportagem iria masculinizar as mulheres, tirando delas sua feminilidade. Algumas estudiosas mostraram que os homens tentaram proteger seu emprego, seu salário e seu status impedindo as mulheres de entrarem numa zona que seria deles e estabeleceram o jornalismo sob a égide “masculina”, com regras e valores criados por eles. Vide os casos das mulheres mães, que eram - e são - prejudicadas com as longas e irregulares horas de trabalho, além da falta de assistência à infância, como creches, já que é dada a elas a responsabilidade da educação dos filhos e filhas e do cuidado com a casa. Entretanto, uma questão que passou a ser colocada nas pesquisas foi se as repórteres deveriam tentar agir como homens ou se elas deveriam insistir em fazer jornalismo de outra maneira. Para Steiner (2017), tais elaborações ignoram como os papéis de gênero no jornalismo mudaram ao longo do tempo.

(…) o discurso informativo não contempla entre seus pressupostos a dimensão de género. Nem a contempla nem sabe em que consiste. Portanto, é fácil compreender que haja um elevado estado de confusão no que toca à abordagem que se faz dos temas relacionados com o género, que pode oscilar desde a rejeição à compreensão. (Gallego, 2004, p. 65)

A investigação (e a experiência) mostraram que as medidas puramente quantitativas são completamente desadequadas para descrever a representação de género nos média e muito menos servem para interpretar o seu significado ou importância. (Gallagher, 2004, p. 89)

A considerar que falta muita discussão e muita pesquisa que envolva um parecer mais global sobre a questão que implica na genderização do discurso no meio jornalístico, discriminamos as cinco estratégias para mudar o cenário que Margaret Gallagher (2004) propôs e que compreende outros meios de comunicação, além dos noticiosos. Ela começa por defender que é necessário que mais mulheres trabalhem nos meios de comunicação, em todos os níveis hierárquicos e abranjam todos os tipos de trabalho, de forma a alcançar trabalhadoras com habilidades criativas e executivas. Em segundo lugar, trata da necessidade de haver pressão de quem consome informação; organização de campanhas efetivas e protestos a níveis nacional e regional, por exemplo, seriam boas medidas para forçar os meios a mudarem. A educação para os profissionais dos meios é a área que Gallagher destaca por serem sutis os mecanismos que dão início aos estereótipos de gênero. O quarto ponto diz respeito à linha de orientação editorial que deve especificar as formas de representação. As organizações devem ser pressionadas e encorajadas a agirem de acordo com um código de conduta. Por último, mas não menos importante, se faz necessário abrir a discussão sobre liberdade de expressão, enquadrando-a nos direitos humanos das mulheres. Como consequência, surgiria um código global de ética baseado numa nova interpretação. Prevendo que este último item seja o mais desafiador, a autora sublinha que “esta abordagem causaria certamente controvérsia” (Gallagher, 2004, p. 92).

Conclusão

A intenção de um trabalho breve como este, que se inicia com tantas perguntas, não é a de perscrutar todas as respostas. As questões modificam-se, aprimoram-se e multiplicam-se com o passar do tempo. O que se procurou fazer foi criar inquietações e gerar curiosidades, a serem melhor e mais profundamente trabalhadas, sobre as igualdades de gênero pautadas no exercício do jornalismo. Com o respiro e a esperança necessárias, Margaret Gallagher (2004) cedeu-nos um manual de ações para serem postas em prática e serem acompanhadas e mensuradas em relação aos seus avanços, retrocessos ou, quiçá pausas, ao longo do tempo.

Sendo o jornalismo responsável por moldar a forma como a sociedade se vê, a mudança surge em via de mão dupla. Transforma-se a sociedade e a instituição família e, a partir desta mudança, resolvem-se as problemáticas laborais. As questões que devem ser equacionadas em equiparação de gênero vão além das laborais jornalísticas, atingem as representações, os discursos e as práticas simbólicas. Mais do que pensar a representatividade, é necessário questionar a estrutura da sociedade e como ela se reflete nas instâncias pessoais e corporativas.

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Recebido: 03 de Março de 2020; Aceito: 08 de Setembro de 2020

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