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Observatorio (OBS*)

On-line version ISSN 1646-5954

OBS* vol.15 no.1 Lisboa Mar. 2021  Epub July 26, 2022

https://doi.org/10.15847/obsobs15120211648 

Artigos originais

O processo de mediatização e a emergência do capitalismo de vigilância

Mediatization process and the emerge of surveillance capitalism

1Universidade Católica Portuguesa, Portugal


Resumo

O artigo debate a relação entre a mediatização e o capitalismo, a partir do conceito de “capitalismo de vigilância” cunhado por Shoshana Zuboff. Este conceito descreve uma nova lógica económica ancorada na monetização de dados comportamentais, em que empresas vendem e compram o acesso em tempo real ao fluxo da vida quotidiana para influenciar e modificar o comportamento dos indivíduos em busca de lucro. Esta subespécie emergente do capitalismo está relacionada com o processo de mediatização social, uma vez que as sociedades contemporâneas podem ser caracterizadas por um aumento geral da importância dos media em variadas dimensões da vida, com as rotinas diárias profundamente entrelaçadas nos media móveis - nomeadamente, smartphones, tablets, redes Wi-Fi e contas em redes sociais. Isto significa que os indivíduos produzem quantidades crescentes de informação sobre si e o seu comportamento, e à medida que mais áreas da vida social dependem de processos de mediação digital, mais sectores da sociedade se adaptam e são dependentes das tecnologias. Ou seja, a vigilância empresarial criou um sistema de extração de lucros constituído por recolha e análise sistemática de dados para capturar o consumidor digital. Este artigo parte do modelo abstrato sobre as dinâmicas do capitalismo, teorizado por Rosa et al. (2017), para debater a indispensabilidade dos media para a estabilização dinâmica do capitalismo. Como a sua estabilidade é precária, o capitalismo precisa de aceleração permanente para atingir novos níveis de estabilidade e neste ensaio teórico defende-se que a mediatização desempenha um papel acelerador na escalada do capitalismo de vigilância, ao mesmo tempo que, deste modo, garante a sua estabilização social. Neste contexto, o termo “acelerador” deve ser entendido como uma condição prévia funcional para uma aceleração contínua.

Palavras-chave: Mediatização; Capitalismo; Datificação; Vigilância

Abstract

The concept of surveillance capitalism, christened by Shoshone Zuboff, is used in this article to explore the relationship between mediatization and capitalism. The concept describes a new economic logic based upon the monetization of behavioral data. This subspecie of capitalism is related to the mediatization process as contemporary societies may be described by the increasing relevance of media technologies in varies dimensions of life whereby daily routines are profoundly embedded in mobile media - namely, smartphones, tablets, WiFi networks and social media accounts. This means that individuals produce a growing amount of data about themselves and as increasing dimensions of life depend upon digital mediation processes, more economic sectors adapt themselves and are dependent upon technologies. Corporate surveillance created a system of extraction of profit by sistematically collecting and analyzing data to capture the digital consumer. This article departs from the abstract model of dynamics of capitalism, theorized by Rosa et al. (2017), to debate media indispensability to the stabilization of capitalism. As its stability is precarious, capitalism needs permanent acceleration to achieve new levels of stability and in this theoretical essay it is argued that mediatization plays an accelerator role in the escalation of surveillance capitalism at the same time that by doing it capitalism guarantees its social stability. In this context, “accelerator” must be understood as a functional precondition for assuring a continuos acceleration process.

Keywords: Mediatization; Capitalism; Datafication; Surveillance

Introdução

As sociedades contemporâneas podem ser caracterizadas por um aumento geral da importância dos media em variadas dimensões da vida. As rotinas diárias estão profundamente entrelaçadas nos media móveis - nomeadamente, smartphones, tablets, redes Wi-Fi e contas em redes sociais -, enquanto as fronteiras que separam as várias esferas da vida são cada vez mais ténues. A tecnologia móvel tem contribuído para a fusão entre o trabalho e o lazer, o tempo produtivo e o tempo livre, o escritório e a residência, as esferas pública e privada. Deste modo, podemos afirmar que a mediatização desempenha um papel cada vez mais determinante na condução da sociedade e pode ser entendida como “a variedade de maneiras pelas quais possíveis ordenações do social pelos media são posteriormente transformadas e estabilizadas por meio de contínuos ciclos de retroalimentação” (Couldry & Hepp 2017, p. 4). A transformação dos media é, assim, vista como uma condição de mudança social na medida em que as alterações da vida quotidiana são consideradas no contexto das mudanças dos media (Krotz, 2007, 2017; Dressens et al., 2017; Jansson, 2018).

A literatura também descreve a mediatização como um processo de longo prazo que modifica as interações sociais ao criar novas condições para a comunicação humana. Como estas transformações não podem ser isoladas de outros desenvolvimentos culturais, económicos, sociais e políticos, isto significa que a mediatização está inter-relacionada com outros meta-processos, como a globalização, a individualização e a comercialização. No entanto, e apesar de Frederich Krotz considerar a comercialização “o processo básico que fornece o estímulo a toda ação” (2007, p. 259), a dimensão económica e a dinâmica do capitalismo têm tido escassa atenção nos estudos de mediatização. Esta dimensão tende a ser perspetivada como pano de fundo para teorizar processos transformadores contemporâneos, como a construção mediada da realidade, e analisar a mediatização em diversas dimensões institucionais, culturais e sociais da vida (ver, por exemplo, Couldry & Hepp, 2017; Dressens et al., 2017; Jansson, 2018).

Em termos desta linha de pesquisa, apenas recentemente começou a ser dada atenção à dinâmica entre a mediatização e o capitalismo (Murdock, 2017; Fast, 2018). Por exemplo, Graham Murdock (2017) destaca a necessidade de se pesquisar a mediatização no âmbito das transformações mais amplas da mercantilização da sociedade. Considerando o papel que o discurso sobre a tecnologia desempenha na construção da realidade, Karin Fast (2018) tem explorado a construção discursiva que os conglomerados tecnológicos fazem acerca do processo de mediatização da sociedade. Por sua vez, pesquisadores dos media interessados em analisar as ligações entre tecnologia, globalização e capitalismo tendem a conceder pouca ou nenhuma atenção ao conceito de mediarização nos seus estudos (ver por exemplo, Castells, 1996; Fisher, 2010; Fuchs, 2012) ou até mesmo a colocarem em questão a utilidade do conceito para as suas investigações (ver por exemplo Ampuja, 2012). Neste mesmo sentido encontramos trabalhos académicos de outros campos de saber. As teorias da mediatização têm tido pouca ou nenhuma atenção entre os académicos interessados em estudar as dinâmicas do capitalismo (ver por exemplo Sennett, 2006; Mann, 2013; Streeck, 2016; Rosa et al., 2017).

As dinâmicas do capitalismo têm sido, portanto, sub-pesquisadas nos estudos em mediatização e este artigo pretende contribuir para preencher algumas lacunas a este respeito, integrando um ângulo crítico da economia política na análise de processos de mediatização. Por esta razão, o artigo oferece uma perspetiva ampla do conceito de mediatização, uma vez que lida com processos estudados em outras disciplinas. A relação entre capitalismo e mediatização é complexa e este texto consiste numa primeira tentativa de explorar teoricamente o papel da mediatização na estabilização dinâmica da modernidade capitalista.

Nas sociedades atuais, moldadas pelas lógicas do capitalismo avançado, os limites ao crescimento são cada vez mais evidentes à medida que a escassez estrutural de recursos e a intensificação das crises económicas, políticas e ecológicas, entre outras, colocam em risco a dinâmica incessante da escalada contínua do capitalismo. Estas crises estão a minar a estabilidade, a sustentabilidade e a viabilidade das sociedades modernas, levando vários académicos a investigar o que designam por “o fim do capitalismo” (ver por exemplo Harvey, 2010; Streeck, 2016; Rosa et al., 2017).

Não obstante, as sociedades capitalistas sempre precisaram de diferentes fontes de crescimento para garantirem a sua reprodução e estabilidade. Neste âmbito, na era moderna disfuncional emergiu uma nova variedade de capitalismo baseada em dados comportamentais, dando lugar ao que Shoshana Zuboff (2015) batizou de “capitalismo de vigilância”. Esta é uma nova lógica económica baseada na monetização de dados comportamentais, em que empresas vendem e compram o acesso em tempo real ao fluxo da vida quotidiana para influenciar e modificar o comportamento dos indivíduos em busca de lucro. Apesar de não ser a lógica dominante de acumulação em nosso tempo - não é a única modalidade atual do capitalismo informacional, nem o único modelo possível para o futuro -, a rápida institucionalização do capitalismo de vigilância tornou- o o modelo padrão do capitalismo informacional (Zuboff, 2016, p. 5).

Sem ignorar que múltiplas redes de interação sobrepostas influenciam as lógicas económicas emergentes, este artigo parte do modelo abstrato sobre as dinâmicas do capitalismo, teorizado por Hartmut Rosa, Klaus Dürre e Stephan Lessenich (2017), para debater a indispensabilidade dos media para a estabilização dinâmica do capitalismo. Este debate sustenta o argumento central deste artigo que defende o seguinte: os sucessivos envolvimentos sócio-tecnológicos com os media, ou seja, o aprofundamento dos processos de mediatização nas sociedades contemporâneas são fundamentais para assegurar processos renovados de apropriação, aceleração e ativação - os três motores que garantem a estabilização dinâmica do capitalismo, segundo Rosa et al. (2017). Como a sua estabilidade é precária, o capitalismo precisa de aceleração permanente para atingir novos níveis de estabilidade e neste ensaio teórico defende-se que a mediatização desempenha um papel acelerador na escalada do capitalismo de vigilância, ao mesmo tempo que, deste modo, garante a sua estabilização social. Neste contexto, o termo “acelerador” deve ser entendido como uma condição prévia funcional para uma aceleração contínua.

Para substanciar este argumento, na primeira secção do artigo aborda-se a mudança da sociedade fordista para a pós-fordista, o que inclui um debate sobre a economia baseada em dados e, em particular, sobre o “capitalismo de vigilância” (Zuboff, 2015). Estas mudanças de formação intra-capitalistas são reconstruídas com base no aumento da velocidade, como explicam Rosa et al. (2017) no seu modelo abstrato de estabilização dinâmica do capitalismo, debatido também na primeira secção. Na segunda secção do texto explora-se o comércio a retalho orientado por dados, colocando em diálogo a pesquisa empírica conduzida por Joseph Turow (2017) e o modelo teórico de estabilização dinâmica do capitalismo desenvolvido por Rosa et al. (2017). Este exemplo do comércio a retalho é usado para ilustrar como a subespécie emergente do capitalismo, o chamado capitalismo de vigilância, está relacionada com a transformação dos media que, por sua vez, é uma condição para mudanças na vida quotidiana, neste caso da prática cultural das compras. Na secção final do artigo defende-se que a mediatização desempenha um papel acelerador na escalada do capitalismo de vigilância, ao mesmo tempo que se argumenta que essa aceleração é fundamental para a própria estabilidade social do próprio capitalismo de vigilância.

Dinâmicas entre capitalismo e mediatização: big data e vigilância digital

Nesta primeira secção aborda-se algumas das mais recentes transformações no capitalismo. Sem pretender desenvolver uma discussão exaustiva, são aqui debatidas algumas dimensões relevantes relacionadas com a mudança da sociedade fordista para a pós-fordista. Estas mudanças de formação intra-capitalistas são reconstruídas com base na lógica da aceleração da velocidade que pode ser explicada pelo modelo abstrato da estabilização dinâmica do capitalismo proposto por Rosa et al. (2017).

Hartmut Rosa, Klaus Dürre e Stephan Lessenich (2017) argumentam que o capitalismo só se consegue reproduzir e estabilizar se for capaz de permanentemente se renovar através de processos de apropriação, aceleração e ativação. A apropriação descreve o processo de conquista contínua de novos territórios, recursos e mercados para acumulação de lucros. Este caráter expansionista do capitalismo está intrinsecamente associado ao processo de aceleração - a estrutura temporal e o regime de tempo das sociedades capitalistas modernas (Rosa, 2013) -, o que significa que a aceleração da comunicação relacionada com a inovação tecnológica é uma das formas mais mensuráveis de aceleração associada à mudança social. A ativação, por sua vez, descreve a politização da subjetividade, ou seja, a ativação dos cidadãos através da transferência de algumas das responsabilidades do estado e do mercado para os próprios indivíduos. Segundo Rosa et al. (2017, p. 55), estes três motores, em conjunto, formam a “teoria tripla” da estabilização dinâmica do capitalismo, o modo de reprodução social que os autores consideram melhor descrever as sociedades capitalistas modernas.

Como ordem social dependente de um modelo ininterrupto de crescimento, o capitalismo precisa de estar em constante desenvolvimento para garantir estabilidade. A estabilidade é, então, uma pré-condição funcional para a aceleração contínua. Como Rosa et al. afirmam: “os sistemas capitalistas em todas as variedades assemelham-se a uma bicicleta que ganha estabilidade com a velocidade do seu movimento para a frente” (Rosa et al., 2017, p. 4). Velocidade e estabilidade são, portanto, elementos comuns a todas as variedades de capitalismo e mudanças intra-capitalistas, a saber, do fordismo ao pós-fordismo, devem ser entendidas numa lógica de escalada contínua (Harvey, 2010).

A transformação do capitalismo do fordismo para o pós-fordismo, verificada no final do século XX, substituiu o estado social keynesiano e o planeamento da economia pelo pós-fordismo, um modo neoliberal de capitalismo (Harvey, 2010; Mann, 2013; Streeck, 2016). No fordismo, o estado tinha um papel forte e intervencionista na incorporação do mercado na sociedade. Esta era uma sociedade dominada por uma cultura política da democracia social e por um capitalismo planeado em benefício do bem-estar social da sociedade, ou seja, tendo em vista objetivos sociais de segurança, estabilidade e igualdade. Por sua vez, na sociedade pós-fordista o estado perdeu muita da sua influência para exercer controlo sobre o capital, que ganhou maior independência. O capital desvinculou-se do local e de políticas particulares para se tornar mais móvel e global. A desregulamentação, a privatização e o desmantelamento do estado social conduziram a mercados em rede, autorregulados e autogovernados (Fisher, 2010).

Os mercados pós-fordistas são inerentemente mais acelerados, dinâmicos e flexíveis, mas também mais instáveis, imprevisíveis e não-lineares. Estas características estão relacionadas com o processo multifacetado de desestabilização que as sociedades capitalistas passaram a enfrentar, principalmente a partir da década de 1970 (Mann, 2013; Streeck, 2016). Desde então, os movimentos cíclicos de crises económicas tornaram- se mais frequentes e o desequilíbrio passou a ser uma condição estrutural do mundo industrial avançado, tanto a nível nacional como global.

As sociedades atuais moldadas pelas lógicas do capitalismo avançado enfrentam, assim, uma tensão intrínseca devido a crises sucessivas mais severas, que se espalham de modo mais amplo e rapidamente (Streeck, 2016). Desde a crise financeira internacional de 2008, os limites ao crescimento tornaram-se mais evidentes, porque a escassez estrutural de recursos e a intensificação das crises económicas, políticas, e ecológicas, entre outras, colocaram em risco a dinâmica incessante de escalada contínua. Este desequilíbrio pode ser entendido como uma ameaça à estabilidade, sustentabilidade e viabilidade das sociedades modernas tal como estão organizadas no presente, levando vários académicos a argumentarem que estas crises sinalizam a dessincronização entre as necessidades do capitalismo e os limites naturais e humanos (ver por exemplo Streeck, 2016; Rosa et al., 2017).

Não obstante, as sociedades capitalistas sempre precisaram de diferentes fontes de crescimento para garantirem a sua reprodução e estabilidade. Nesta era disfuncional, emergiu uma nova variedade de capitalismo baseada em dados comportamentais, dando lugar ao que Zuboff (2015) designou por “capitalismo de vigilância”. Esta lógica emergente de acumulação, da qual “o big data é tanto uma condição quanto uma expressão” (p. 3), baseia-se na monetização de dados comportamentais ao vender o acesso em tempo real ao fluxo da vida quotidiana para influenciar e modificar o comportamento dos indivíduos para fins lucrativos. Nesta nova subespécie do capitalismo, “os usuários são a fonte de matéria-prima que alimenta um novo tipo de processo de fabricação” (Zuboff, 2016, p. 6).

Como o discurso é fundamental para os processos de legitimação (Foucault, 1972), assim como o discurso da tecnologia legitimou a fase fordista do capitalismo, o discurso tecnológico contemporâneo pode ser perspetivado como uma ferramenta legitimadora do capitalismo pós-fordista (Fisher, 2010). As novas características do capitalismo - flexibilidade, adaptabilidade, temporalidade, aceleração, entre outras - ilustram a afinidade entre o pós-fordismo e a tecnologia em rede (Castells, 1996, p. 200; Fisher, 2010, p. 243). Estas afinidades ajudam a explicar porque é que o uso quotidiano da tecnologia em rede promoveu um clima sociocultural de monitorização digital (Fuchs, 2012), em que mecanismos de vigilância que seguem ordens calculadas, principalmente algorítmicas, estão a ser usados para a maximização do lucro.

Esta economia baseada em dados está relacionada com a mediatização. Este conceito diz respeito à transformação da cultura e da sociedade no contexto da transformação dos media (ver por exemplo, Hjavard, 2008; Jansson, 2014; Couldry & Hepp, 2017; Driessens et al., 2017; Krotz, 2017). O conceito de mediatização já foi definido muitas vezes e André Jansson (2014, p. 275) sugere considerá-lo: “um movimento através do qual tecnologias de media e artefactos relacionados se tornam necessários para a realização de práticas que são essenciais para a manutenção da sociedade”.

Para Jansson (2014, 2018), a indispensabilidade dos media é uma dimensão fundamental para a definição de mediatização. A indispensabilidade está relacionada com a mobilidade, a conectividade e a interatividade dos media. É também inseparável da integração significativa dos media na vida em geral. Assim, os desenvolvimentos tecnológicos estão entrelaçados com mudanças culturais e sociais. Por sua vez, à medida que mais áreas da sociedade se adaptam e se tornam dependentes das tecnologias e instituições de media, mais a indispensabilidade se torna uma realidade. Este processo tenderá a culminar na indistinção entre a tecnologia e a própria sociedade, ou seja, na tecnologia como uma infraestrutura social.

A tecnologia móvel facilita a fusão do trabalho e do lazer, dos espaços profissionais e domésticos, das esferas pública e privada. Esta indispensabilidade reforça a dependência funcional de vários sistemas e infraestruturas tecnológicas, mas também gera crescentemente sentimentos ambíguos. As vantagens sociais percebidas de auto-empoderamento, de liberdade e de libertação muitas vezes coexistem com sentimentos de ansiedade relacionados, por exemplo, com a descompartimentalização do trabalho, que parece estar sempre presente, pelo facto de poder ser realizado em qualquer lugar e a qualquer momento (Jansson, 2018).

A intensificação da incorporação dos media nos processos sociais e na vida quotidiana está relacionada com o aumento da quantidade de tecnologia disponível, mas também com as inovações e funcionalidades dos media. Como os media são predominantemente móveis, digitais, baseados em software e em infraestruturas ligada à Internet, isto intensifica a conectividade e a sincronia entre diferentes tipos de media - “velhos” e “novos” media, plataformas online, telefones móveis e aplicativos, entre muitos outros -, na medida em que os media, especialmente os móveis, podem ser vistos como um conjunto de tecnologias (ou seja, infraestruturas em nuvem, banda larga móvel, telefones móveis, tablets portáteis, etc.) e não como um meio específico (Krotz, 2017; Fast, 2018). Deste modo, o que se entende por media amplificou-se e complexificou-se: podem ser considerados entidades associadas a conteúdos, tecnologias e infraestruturas. Isto significa que os media podem ser entendidos como meios de comunicação e de construção de sentido, infraestruturas de comunicação e conectividade, bem como meios de produção e recolha de dados sobre os usuários em tempo real (Couldry & Hepp, 2017; Driessens et al., 2017).

Esta paisagem de media alimentada por um sistema complexo de fluxos de informação on-line abriu as portas à datificação (Bolin e Schwarz, 2015, p. 1):

“novas técnicas para agregar dados dos usuários na era dos media pessoais (por exemplo, laptops, smartphones, cartões de crédito/cartão de identificação e identificação por radiofrequência) que se baseiam em grandes agregados de informações (big data) analisados por algoritmos que transformam dados em mercadorias”.

Isto significa que as sociedades marcadas pela abundância de media digitais estão cada vez mais imersas numa cultura de vigilância, onde “medir, manipular e monetizar o comportamento humano on-line” (van Dijck, 2014, p. 200) tornaram-se procedimentos rotineiros para muitas empresas. A vigilância corporativa regida por forças comerciais criou um sistema de extração de lucros baseado num modelo de vigilância de cima para baixo, constituído pela recolha e análise sistemática de dados. Apesar de ultrapassar o âmbito deste artigo, importa referir que, ainda que de modo e em graus distintos, muitos estados (não- democráticos, mas também democracias ocidentais) recorrerem aos mais variados desenvolvimentos tecnológicos, como a CCTV equipada com sistemas de inteligência artificial e programador a partir de algoritmos, para desenvolver mecanismos de monitorização e vigilância do comportamento dos cidadãos no espaço público (ver por exemplo van Dijck, 2014; Lyon, 2007, 2017; Zuboff, 2015).

Nesta nova arquitetura técnico-económica, empresas de tecnologia como a Google, a Amazon, a Apple, a Microsoft e o Facebook, que operam em todo o mundo e estão entre as organizações mais influentes do presente, devem ser perspectivadas como novas formas de organizações de media. Como proprietários de plataformas e operadores das principais infraestruturas da rede mundial, estas empresas dominam o mercado digital e a publicidade on-line, moldam as ofertas dos produtos e serviços da Internet, estruturam as possibilidades de comunicação para os usuários e os principais impulsionadores da inovação no campo da tecnologia, bem como no mundo físico. O sucesso destas corporações decorre também do facto de estarem economicamente interligadas com quase todas as formas tradicionais de media (Nielsen & Ganter, 2018) e outras instituições de poder de maneira inigualável (van Dijk, 2014; Zuboff, 2015). O domínio das grandes empresas referidas reflete-se na sua alavancagem económica e no controlo das principais infraestruturais e plataformas tecnológicas, mas também na capacidade que têm em estabelecer as regras no espaço digital e no poder que detêm relacionado com a produção e venda de dados sobre os indivíduos. Joseph Turow (2017, p. 177) considera que as pessoas são levadas a pensar que as coisas funcionam de uma maneira quando ignoram o que as corporações estão a fazer com as informações que estão dispostas a dar sobre si e especialmente com as informações que as corporações obtêm sem que tenham noção. Isto significa que os vínculos entre tecnologia e sociedade também estão relacionados com a construção discursiva da tecnologia (ver por exemplo, Fisher, 2010; Fast, 2018), que emerge em vários contextos sociais e reflete uma variedade de interesses de empresas de tecnologia (Fast, 2018). Por razões económicas, estas empresas constroem as tecnologias de media móveis como não opcionais para as empresas, os indivíduos e a sociedade em geral. Isso significa que eles constroem a mediatização “como a resposta a um impulso humano interno e como uma força natural inexorável” (Fast, 2018, p. 10), elaborando uma narrativa sobre a indispensabilidade dos media na vida (Jansson, 2014, 2018). Esta representação da tecnologia é poderosa, porque as práticas discursivas da tecnologia corporativa “refletem e influenciam as políticas públicas, institucionais, sociais, culturais e jurídicas” (David, 2001, p. 196).

O capitalismo como modo de produção depende crucialmente do apoio financeiro e tecnológico para a sua busca incessante pela acumulação de capital. Deste modo, a reformulação de uma ampla gama de setores económicos para regimes baseados em dados é uma expressão exemplar da vontade do capitalismo em aumentar o seu poder e lucro. Para ilustrar este debate, na secção seguinte exploramos a relação entre o comércio de vigilância e a mediatização com a ajuda do trabalho de Turow (2017).

Mediatização e comércio a retalho no contexto do capitalismo de vigilância

Empresas baseadas na Internet, como a Google, o Facebook e a Amazon, foram as principais impulsionadoras da nova lógica de acumulação e venda de dados. Por sua vez, a incorporação crescente de media nos processos sociais e no tecido da vida quotidiana está a contribuir para a expansão do novo modelo económico para o mundo físico e para as indústrias convencionais, como é o caso do comércio a retalho, que está a transformar-se ao caminhar de modo crescente para um regime orientado por dados. Joseph Turow alerta para o facto de o comércio físico ainda representar 90% de todas as compras, mas o novo modelo de negócios está a ser implementado por grandes retalhistas, como o Macy's, a Target e a Walmart (Turow, 2017, p. 3). Todavia, alguns usos da tecnologia discutidos nesta secção do texto também estão a ser integrados no modelo de negócio de empresas de comércio de média e pequena escala.

Até ao início dos anos 2000, o comércio físico olhava para a Internet como um mundo separado e o comércio on-line como um negócio a ser explorado de modo autónomo, distinto e em paralelo às lojas físicas. No entanto, a estratégia predatória que a Amazon começou a desenvolver alguns anos depois (Turow, 2017, p. 107) forçou uma mudança na mentalidade dos retalhistas que começaram a olhar para as lojas físicas como um lugar onde poderiam rastrear e acompanhar os seus clientes de um modo similar ao usado pelos vendedores digitais. Assim, na segunda década dos anos 2000, ao integrarem os mundos virtual e físico, o comércio a retalho entrou numa nova fase hipercompetitiva com os vendedores on-line e, em particular, com a Amazon. Este sector começou a transformar-se para funcionar como um espaço multi-local e com uma estratégia multicanal. Esta remodelação incluiu também um novo relacionamento entre comerciantes e compradores enquadrado por novas práticas de monitorização, pontuação, personalização e discriminação. A acumulação de características como a mobilidade, conectividade e acessibilidade colocaram o telemóvel no centro de novas estratégias desenvolvidas pelo comércio a retalho. O telemóvel tornou-se o canal de marketing mais importante para a comunicação personalizada e para impulsionar o comércio permanente, mas, principalmente, para desenvolver novas práticas de vigilância dentro das lojas e para capturar dados sobre os clientes. Turow assinala que isto significa que “o comprador, em vez do comerciante, trouxe a tecnologia de conexão para a loja” (Turow, 2017, p. 101).

A era das compras digitais introduziu, assim, novas práticas de vigilância, com determinados comerciantes a rastrearem clientes, a armazenarem informações sobre o seu histórico de compras (o que compram e quando) e a pontuá-los com base nesses e outros dados adicionais comprados a empresas especializadas, com ou sem a permissão, ou melhor dizendo sem o conhecimento explícito dos compradores. Com a ajuda dos telemóveis passou a ser possível rastrear e segmentar os compradores praticamente em qualquer lugar (Turow, 2017, p. 135). Por exemplo, com base na localização dos clientes é possível "determinar se o titular do telefone está numa área em que um anunciante deseja alcançar os compradores com uma mensagem" (p. 136).

De certa forma, esta não é uma prática nova, tendo em conta que a monitorização de consumidores sempre foi uma parte importante do sector comercial. Na já longínqua década de 1920, as lojas coletavam uma ampla gama de informações sobre os clientes (Turow, 2017, p. 52). A diferença é que os mecanismos de monitorização estão a evoluir para níveis sem precedentes na era digital. As empresas têm hoje muito mais informação sobre os seus clientes que pode ser cruzada de múltiplas maneiras e de modo célere. Um número crescente de comerciantes tem, cada vez mais, a facilidade de saber sobre as características demográficas e hábitos de compras dos clientes, mas os comerciantes podem também obter dados sobre o estilo de vida, hobbies, família, amigos, opiniões e atitudes dos clientes, entre outras informações.

As lojas são capazes de recolher uma grande quantidade de informação pessoal, que as tecnologias podem gerar sobre praticamente qualquer cliente em tempo real, e Turow afirma que certas cadeias comerciais já têm a capacidade de alterar os preços de determinados produtos enquanto as pessoas estão nas lojas. Tendo em conta o perfil do comprador, os preços cobrados à saída podem ser alterados ou, numa outra situação, um preço mais favorável pode ser oferecido se o cliente estiver a sair do local sem ter feito nenhuma compra.

Estas lojas podem ainda oferecer a um indivíduo preços mais vantajosos, tanto na loja física quanto no espaço on-line, em tempo real e também de maneira personalizada (Turow, 2017, p. 114). A capacidade tecnológica de percorrer milhares de dados sobre alguém e compará-los com milhares de dados sobre outros desconhecidos, e depois prever o que alguém vai comprar ou não e a que preço está disposto a fazê-lo, permite aos retalhistas oferecer descontos diferentes em produtos concretos de acordo com os retratos estatísticos que elaboram sobre os clientes. Isto significa que certas cadeias comerciais já podem oferecer a alguém um preço melhor, ou seja, um desconto, enquanto à pessoa que está ao lado desse cliente pode não lhe ser concedido qualquer desconto.

Turow argumenta que este processo de discriminação assemelha-se à era da venda ambulante, regime comercial em vigor antes de 1840 (2017, p. 25-31). Os vendedores ambulantes classificavam os clientes com base no relacionamento que tinha com eles e mudavam os preços dos artigos em venda com base no que eles achavam que os clientes podiam pagar. Na era digital, a nova forma de venda ambulante em larga escala replica a ideia que nem todos os clientes são tratados de forma igual. A discriminação é o resultado do valor que um retalhista atribui a cada indivíduo com base em diferenças percebidas. Por exemplo, a um cliente que é considerado menos valioso pode ser cobrado mais por certo produto ou serviço, ao ponto, inclusive, de certas mercadorias nem lhe serem mostradas. Em outros casos, mesmo que pareça contraditório, os membros leais de uma loja podem obter preços mais altos do que outros clientes que não o são, porque um certo retalhista pode querer transformar esses indivíduos em consumidores fiéis.

Deste modo, com a ajuda do dispositivo móvel, os clientes são incentivados a usar certas aplicaçōes com mais frequência e a gastar cupões quando lhe são enviados permitindo, assim, às lojas melhorarem o canal de comunicação com esses clientes. Estes mecanismos respondem e reforçam o comportamento social dos usuários de media e, ao fazê-lo, contribuem para que a nova lógica do retalho se sedimente, pois inclui a assinatura de termos e condições que permitem às marcas agregar, armazenar e analisar fluxos de dados sobre os consumidores. Desta forma, às pessoas estão a ser cultivadas para terem certos comportamentos a fim de obterem melhores condições, apesar de não saberem quais serão os preços que vão obter e o estatuto que terão para as marcas ou retalhistas (com base na pontuação). Turow considera, no entanto, que as pessoas estão a aprender a lidar com este novo cenário das compras, tal como revela uma citação de um de seus entrevistados: “vou mudar o meu comportamento para conseguir mais pontos, para as empresas pensarem melhor sobre mim e eu ganhar descontos melhores” (2016, p. 11).

O principal argumento de Turow é que o comércio de vigilância em formação está a reconfigurar a arquitetura do mercado ocidental do século XXI. A reformulação combina novas características que o distanciam do comércio centrado nas massas, que dominou o século XX, enquanto a erosão de alguns pilares fundamentais do que significava comprar e vender na esfera pública está a trazer de volta ao mercado elementos da era ambulante (modelo vigente antes de 1840). A tecnologia está a contribuir para a mudança social, já que o comércio centrado em dados está a abandonar a tradição da cultura democrática ocidental da privacidade individual - adicionando novas camadas de atividades de vigilância de rotina a outras já em curso nas sociedades contemporâneas - e do tratamento igualitário, discriminando os clientes.

Tal como mencionado no início deste artigo, usamos o modelo abstrato de Rosa et al. (2017) sobre a estabilização dinâmica do capitalismo para discutir a reformulação em curso do comércio a retalho para sustentarmos o argumento de que a mediatização é uma "componente" essencial para a aceleração efetiva do capitalismo. Importa recordar que para Rosa et al., a estabilização dinâmica do capitalismo é inseparável de três motores que impulsionam a escalada do capitalismo: apropriação, aceleração e ativação.

No mundo interconectado, as experiências digitais e físicas estão a tornar-se cada vez mais integradas e a linha entre ambas tende a tornar-se cada vez mais ténue à medida que as lojas estão cada vez mais aptas a seguir os indivíduos através de dispositivos, espaços e esferas da vida. Este emaranhado de informações potencia a extração de uma ampla variedade de dados sobre os indivíduos, muitas vezes para além da sua percepção (e a capacidade de rastrear irá ainda mais longe com a expansão da internet das coisas).

Como sistema expansionista que é, o capitalismo não se pode reproduzir exclusivamente a partir de dentro.

O desenvolvimento capitalista ocorre num “complexo movimento interno-externo” (Rosa et al., 2017, p. 56), envolvendo a “integração de fatores externos” (p. 56) por meio da apropriação. Neste sentido, processos renovados de apropriação estão a ocorrer via mediatização, ao permitir a expansão para sucessivos ambientes como “esferas da vida e formas de atividade humana que ainda não foram sujeitas a trocas no mercado” (p. 57). As empresas têm oportunidades cada vez maiores e sem precedentes para alcançarem as dimensões mais privadas da vida quotidiana. Mesmo nas esferas íntimas, as corporações aprenderam onde e como capturar, armazenar e analisar dados. Isto significa que, na nova arquitetura técnico- económica, ao mesmo tempo em que erodem códigos e fronteiras éticas, a tecnologia está a ser usada para conquistar novos recursos e mercados.

Na era digital, o uso de tecnologias que realizam análises quantitativas complexas, em poucos segundos, a fim de prever futuros comportamentos de compra dos indivíduos, juntamente com a capacidade de comunicar instantaneamente com os compradores, está a acelerar a possibilidade de interferência no processo de decisão de compras. O acesso ao fluxo da vida quotidiana em tempo real para influenciar o comportamento ilustra fenómenos de aceleração, com a mediatização a contribuir para uma nova temporalidade na sociedade atual de alta velocidade (Wajcman, 2015). A interferência em tempo real mostra como a mediatização também é um terreno fértil para processos renovados de aceleração em benefício do comércio de vigilância.

Este processo renovado de aceleração é inseparável do de ativação. Tal como instituições políticas e o mercado de trabalho, o comércio físico também está a instigar os indivíduos a trabalharem ativamente em suas identidades e a aprenderem a apresentar as suas personalidades - ou seja, o seu perfil de cliente - da maneira mais benéfica possível para atingirem determinados objetivos. O “cidadão ativo” (Rosa et al., 2017, p. 7) ressoa com o processo de individualização descrito por Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim (2002). Como riscos e contradições continuam a ser produzidos socialmente, é o dever e a necessidade de lidar com esses mesmos riscos que estão a ser individualizados numa sociedade onde as instituições se estão a reconfigurar e a transferir algumas das suas responsabilidades para os cidadãos.

No comércio a retalho isto traduz-se no instigar de um “eu-empreendedor” (Bröckling, 2015) e com a responsabilidade das desigualdades estruturais a serem transferidas para o indivíduo. Apesar de o mercado ser um espaço de dependência transacional, os consumidores estão a ser cultivados para considerarem que os preços que obtêm dependem cada vez mais do seu próprio esforço em se tornarem relevantes para os comerciantes. Na nova era da incerteza comercial em construção, o reconhecimento está continuamente em jogo, mas nunca é alcançado. Este mercado em emergência pode, assim, ser visto como um espaço de “dívida infinita” (Andrejevic, 2014). Esta (auto-) precariedade, instabilidade e vulnerabilidade serve os interesses de um determinado entendimento do capitalismo, pois a estabilidade dinâmica também depende da sua capacidade de gerar processos renovados de ativação. É por isso que o cidadão ativado pode ser encarado como“ um ator que se preocupa com ele, mas também com a reprodução económica e social do sistema” (Dörre et al., 2016, p. 8).

Notas finais

Este artigo constitui uma primeira tentativa de explorar teoricamente o papel da mediatização na estabilização dinâmica da modernidade capitalista. Ao olhar para o sector do comércio, e indiretamente para os consumidores, como um exemplo da interação entre mediatização e o capitalismo de vigilância, o artigo desenvolve uma abordagem que combina os níveis de análise macro, meso e micro.

No breve espaço deste artigo, argumentou-se que a mediatização desempenha um papel acelerador na escalada do capitalismo de vigilância, ao mesmo tempo que possibilita a sua estabilidade social. Neste contexto, o termo “acelerador” deve ser entendido como uma condição prévia funcional para uma aceleração contínua. Este argumento foi desenvolvido em duas etapas no texto. Num primeiro momento, o comércio a retalho baseado em dados foi debatido para ilustrar a interação entre a dinâmica do “capitalismo vigilante” e a mediatização. Esta subespécie emergente do capitalismo está relacionada com a transformação dos media que, por sua vez, é uma condição para a transformação da vida quotidiana, ou seja, a prática cultural das compras. De seguida, o segundo passo do argumento foi guiado pelo modelo de Rosa et al. (2017) para se defender que o comércio de vigilância em formação mostra como a sua estabilização dinâmica é inseparável de renovados processos de apropriação, aceleração e ativação ligados à mediatização.

Este argumento também articula o papel fundamental do capitalismo no condicionamento de mudanças dos media em direções favoráveis às necessidades de contínua expansão do próprio sistema capitalista. A dependência dos media para a contínua escalada do capitalismo impulsiona, pelo menos em parte, a dissociação entre o capitalismo e o projeto democrático da sociedade. O capitalismo de vigilância beneficia da falta de regulamentação na mineração de dados e na promoção contínua da datificação como prática social naturalizada à custa da estrutura democrática e de valores como a privacidade, a igualdade e a liberdade. Além disso, como os media também são infraestruturas físicas, o aumento da quantidade de produção, circulação e uso de dispositivos aumenta a necessidade de matérias-primas e recursos naturais. Este aspecto material da mediatização também intensifica os problemas relacionados com a escassez de recursos naturais e a crescente crise climática.

Em jeito de observação final ressalva-se que é incerto se estas tendências continuarão a acentuar-se ou se outras irão surgir. Um processo como este não acontece sem tensões e contradições. Este é um processo impulsionado por conflitos, com uma trajetória em aberto, e não é evidente o que pode acontecer no futuro. Dito isto, ao tornar o sistema imunológico do capitalismo mais forte - isto é, contribuindo para sua estabilização dinâmica -, pelo menos por enquanto, a mediatização parece estar, paradoxalmente, também implicada na desestabilização dinâmica das sociedades capitalistas modernas.

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Recebido: 20 de Janeiro de 2020; Aceito: 20 de Julho de 2020

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