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Angiologia e Cirurgia Vascular

Print version ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.16 no.3 Lisboa Sept. 2020

 

EDITORIAL

Apocalipse now, regresso ao futuro e outros filmes de ação. Cirurgia vascular no Hospital Garcia de Orta em tempos de pandemia

Apocalypse now, return to the future and other action movies. Vascular surgery in Garcia de Orta Hospital in pandemic time

M José Ferreira Barbas1

1 Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular; Hospital Garcia da Orta; Alamada

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Antes da declaração de pandemia pelo COVID 19, o Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular procurava da melhor forma desenvolver a sua missão de prestação de cuidados aos doentes de toda a península de Setúbal, lutando com as dificuldades habituais dos Serviços de Cirurgia Vascular. Procurávamos equilibrar os LICs e LEcs e encontrar as melhores soluções terapêuticas para os nossos doentes entre greves “cirúrgicas”, falta de anestesistas ou outros contratempos. Procurámos desenvolver áreas específicas que consideramos de referência e as nossas ameaças biológicas mais temíveis eram os MRSA ou os KPC.

Com a pandemia, tudo mudou e, em dias, foi-nos pedido um plano de contingência do Serviço, que rapidamente efetuámos, tendo como linhas de orientação as caraterísticas do serviço e da especialidade, assim como as orientações das sociedades cientificas nacionais e internacionais de referência, compartilhadas em mail do nosso Secretário-geral, Dr. Frederico Fernandes, que muito nos auxiliou. Estranhámos não haver um plano diretor comum, que integrasse o tratamento dos doentes vasculares, nomeadamente a urgência da especialidade da região em caso de muitos profissionais ausentes por doença ou risco.

Mas como nos foi solicitado, fizemos o nosso plano do serviço e os princípios que orientaram as nossas decisões procuraram responder aos seguintes aspetos: minimizar os riscos de propagação do vírus para os doentes, profissionais de saúde e sociedade, mas evitar danos colaterais de não tratar atempadamente os doentes da nossa especialidade, em relação aos quais nos sentimos responsáveis.

Mas, de um dia para o outro, as alterações no Hospital impostas pela ameaça da avalanche de casos e necessidade de criar zonas de isolamento e circuitos independentes, sobrepôs-se aos planos sectoriais. O habitual frenesim do Hospital parou subitamente, os corredores, as salas de espera, o refeitório, ficaram vazios. E verificou-se ainda um fenómeno não previsível: durante as primeiras semanas, poucos doentes procuravam os serviços e, os que apareciam vinham já com situações muito críticas, que exigiam cuidados integrados mais complexos que habitualmente, numa altura em que uma parte significativa das estruturas do hospital enfrentava um inimigo mais ameaçador pois era desconhecido, potencialmente letal e muito contagioso, além de mediático. A morosidade dos testes atrasava ainda o acesso a exames e à decisão clínica. A título de exemplo, registámos um incremento de 49 % da taxa de amputação major no Hospital no período de Março a Maio comparativamente ao período homólogo de 2019.

Alguns dos doentes que tratámos estavam em risco de perda de membro ou de vida e um dos pontos que considero mais negativo e difícil de lidar foi a impossibilidade de poderem ter visitas para conforto, situação que ainda se mantém Também para os profissionais, esta falta de contato com os familiares tinha como consequência múltiplos telefonemas em horários dispares, por vezes durante períodos críticos de prestação de cuidados mas que todos procuraram responder da melhor maneira de modo a minimizar a angústia.

Foi interessante ver como todo um Hospital se remodelou para criar os circuitos e separar os doentes em poucos dias e como se foi alterando diariamente conforme a situação ia evoluindo, pois desconhecia-se a dimensão da ameaça, nomeadamente ao nível de cuidados intensivos. Penso que a nível nacional e local, um ponto positivo, foi permitir investir e dotar o SNS de mais camas de cuidados intensivos, aproximando-se o ratio por 100000 de outros países da Europa, que o envelhecimento da população e a evolução das patologias faz prever serem necessárias. Foi também muito positivo, ter sido possível preparar as estruturas que não existiam de raiz, obtermos os EPIs com a generosidade e o desenrascanço desajeitado mas eficaz dos portugueses, e, sobretudo, ter sido possível conter esta pandemia longe dos números de países tão próximos como a Espanha. Ou foi apenas sorte…

Nas primeiras semanas de confinamento, o acesso ao Bloco Operatório de rotina ficou restrito a uma sala por cada quinze dias para doentes eletivados que tivessem entrado pelo serviço de urgência, que utilizámos também de acordo com as orientações da Sociedade Europeia e a Americana de Cirurgia vascular. No entanto, foram reforçadas as equipas de urgência de anestesia e de enfermagem do bloco de forma a poderem ser operados os doentes de todas as especialidades que necessitassem. Da nossa parte, reforçamos a equipa de urgência diária para permitir disponibilidade para operar doentes que habitualmente colocávamos em rotina, tentando ainda que os profissionais de saúde mantivessem escala fixa, evitando contagiar o serviço todo.

A luta para retomar mais tempos operatórios no bloco central tem sido difícil, por ser necessário manter salas de Bloco para doentes COVID ou emergências que não possam fazer teste, com circuitos separados, inviabilizando logo estruturas que eram habitualmente usadas para distribuir pelas diferentes especialidades.

As enfermarias sofreram também progressivas alterações de localização, de forma a criar os espaços preparados com fluxo laminar e só o nosso serviço mudou de localização 3 vezes, sendo que um doente esteve em 3 camas de pisos diferentes num dia. A principal dificuldade destas mudanças tem a ver com as mudanças de equipas de enfermagem, nem todas habituadas aos nossos doentes e à nossa patologia específica.

Algumas estratégias tiveram que se desenvolver de forma a garantir o acompanhamento possível aos nossos doentes mas não criar acumulação de pessoas, e neste ponto as consultas telefónicas têm tido um papel importante, sobretudo no follow pu de doentes, em que só se dirigem aos serviços para a realização dos exames. Estas consultas têm sido muito bem recebidas pelos utentes, pois também se sentem mais seguros e não gastam recursos económicos.

Seguindo orientações superiores, tem sido dado enfase à realização de cirurgia de ambulatório, com o objetivo de minimizar a ocupação de camas hospitalares pelos doentes cirúrgicos. Este ponto é para nós difícil de entender, pois custa-nos ocupar escassos anestesistas com rotinas de ambulatório em que são operadas varizes, enquanto temos doentes arteriais em espera para o Bloco Central e redução destes tempos. A nossa luta tem sido explicar que o acesso difícil ao bloco convencional aumenta a ocupação das camas pois as isquemias críticas continuam a entrar e o tempo que esperam por cirurgia nada contribui para diminuir os tempos de internamento, já que as lesões ficam mais extensas ou sobreinfectam. O incremento de cirurgia na suite de angiografia, que não carece de apoio anestésico, foi a grande solução para revascularizarmos os doentes durante todo o período de contingência. No entanto, faltava complementar as revascularizações com o tratamento das lesões tróficas e reinventou-se: desde pequenas cirurgias (desbridamentos, drenagens de abcessos…) na cama de enfermaria com o apoio da Medicina da Dor, amputações de dedos no Bloco do Ambulatório, a utilização de Pulsar em vez de desbridamentos cirúrgicos, tudo foi usado à medida das situações, justificadas com “em tempo de guerra”.

O Inverno a chegar traz nova vaga de COVID e não sabemos quando iremos parar outra vez a atividade assistencial, apesar de não termos ainda voltado à normalidade pre-covid. Os Hospitais não voltarão a ser iguais e atitudes mais pragmáticas nas decisões vão prevalecer, até porque o Hospital Garcia de Orta vai ficar como o Hospital de referencia para os doentes COVID da península de Setúbal.

Vão ser necessárias várias readaptações progressivas, para se encontrar a proporcionalidade correta entre os recursos que os doentes COVID precisam e todos os outros. E o desafio que se coloca aos Hospitais e também à tutela em termos de decisão é equilibrar com segurança esta proporcionalidade, pois só sabemos quantos doentes COVID temos hoje. Ainda nenhum matemático arriscou previsão para os próximos meses, pelo que até haver uma vacina eficaz, desconhecemos quantos poderão aparecer. Por outro lado, sabemos concretamente quantos são os outros doentes e quais a suas necessidades, que no caso do nosso Hospital sempre foram subestimadas.

Teria uma réstia de esperança, talvez ingénua, que o trabalho dos profissionais de saúde possa vir a ser mais valorizados na sociedade. Falando do futuro, gostaria de realçar o papel dos nossos internos, de todos os Hospitais e todas as áreas, que viram interrompidas formações, estágios e mesmo avaliações finais após meses de preparação para a colaborar nesta batalha, por vezes em áreas fora da sua zona de conforto. Nomeadamente os currículos dos internos cirúrgicos sofreu grandes repercussões negativas em todo este período e deveríamos em conjunto, encontrar em conjunto soluções para oferecer internatos adequados nas condições atuais, que não foram boas mas em que o futuro também é imprevisível.

Termino com o voto que esta situação nos torne mais unidos e que a classe médica saia reforçada, mais considerada e mais dignificada.

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Correio eletrónico: mjfbarbas@gmail.com (M. Barbas).

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