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Angiologia e Cirurgia Vascular

Print version ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.16 no.4 Lisboa Dec. 2020  Epub Jan 31, 2021

 

Carta ao Editor

Vidas e membros: acesso à prevenção secundária com AAS e rivaroxabano em indivíduos com doença arterial periférica sintomática

Lifes and limbs: access to secondary prevention with AAS and rivaroxaban in patients with symptomatic peripheral arterial disease

Frederico Bastos Gonçalves1  2 

Hugo Dias Valentim3 

1 Hospital de Santa Marta, Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, Lisboa, Portugal

2 NOVA Medical School, Universidade NOVA de Lisboa, Lisboa Portugal.

3 Hospital da CUF Descobertas, Lisboa, Portugal.


Caro Editor,

A doença arterial periférica (DAP), uma das expressões clínicas da doença aterosclerótica, afeta uma proporção muito significativa da população e tem aumentado em prevalência devido ao envelhecimento da população e ao aumento dos seus fatores de risco, como a diabetes, a hipertensão arterial e a dislipidemia. Estima-se hoje que afete mais de 200 milhões de indivíduos em todo o mundo.(1) Os doentes com DAP têm um risco reconhecidamente elevado de eventos cardiovasculares major, mas também de eventos relacionados com os membros, como amputação ou necessidade de revascularização, de que pode resultar uma grande incapacidade.

Hoje, a prevenção secundária do doente com DAP sintomática consiste em terapêutica com inibidores da enzima HMG-CoA redutase, comprovadamente eficaz, e na antiagregação plaquetária, tipicamente realizada com ácido acetil-salicílico em dose de 100 a 150mg ou em alternativa com clopidogrel 75mg. A evidência mais contemporânea, se bem que resulte essencialmente de estudos observacionais, é que tanto a aspirina como o clopidogrel ficam aquém do desejável na proteção cardiovascular destes doentes, parecendo até ter pouco ou nenhum benefício na prevenção de eventos isquémicos relacionados com os membros.(2) Claramente, a antiagregação com os agentes habituais em doentes com DAP apresenta uma eficácia inferior à verificada em doentes com aterosclerose nos territórios cérebro-vascular ou coronário. Outros antiagregantes e regimes antitrombóticos foram também já investigados, mas sem sucesso na prevenção secundária da DAP. Existe assim uma necessidade que, até à data, não tinha a adequada correspondência. Para piorar a situação, todos reconhecemos que a DAP é o “parente pobre” da doença aterosclerótica, sendo frequentemente não diagnosticada ou desvalorizada pelos profissionais de saúde e desconhecida ou encarada com resignação pelos doentes.(3)

Recentemente, dois importantes estudos randomizados levaram um ressurgimento no interesse em proporcionar uma melhor prevenção secundária (e terciária) para o doente com DAP. Ambos testaram a eficácia e segurança de um regime combinado de ácido acetil-salicílico numa dose de 100mg e rivaroxabano na dose 2,5mg bid, comparado com apenas ácido acetil-salicílico, na prevenção de eventos cardiovasculares major e eventos major relacionados com os membros. O estudo COMPASS(4) incluiu uma população de PAD estável, enquanto o estudo VOYAGER-PAD(5) incluiu uma população clinicamente mais severa - doentes com necessidade de revascularização. O primeiro foi interrompido cerca de 1 ano antes do previsto pois as análises intercalares realizadas demonstraram uma vantagem irrefutável para o braço de terapêutica combinada. Os resultados foram particularmente relevantes na população de PAD, demonstrando uma redução significativa tanto nos eventos cardiovasculares major (onde a redução do risco foi de 28%) como nos eventos relacionados com os membros inferiores (onde a redução foi de 46%). Se repartimos o endpoint relacionado com eventos major dos membros, existe uma redução no risco relativo de 44% para isquemia aguda, de 33% para isquemia crítica, e uma esmagadora redução de 70% no risco de amputação major.

O segundo estudo (VOYAGER-PAD), exclusivo para doentes com PAD e revascularização recente, demonstrou uma redução de eventos cardiovasculares major, isquemia aguda ou amputação de causa vascular de 15%, em que o componente que mais pesou este endpoint combinado foi claramente na redução de eventos isquémicos agudos dos membros, em que a redução foi de 33%. Após uma revascularização periférica, existe um rápido aumento inicial de eventos relacionados com o membro. Seguidamente, esta taxa de eventos abranda apesar de continuar a aumentar após o primeiro ano, enquanto para eventos isquémicos cardíacos ou cerebrovasculares este aumento é mais linear.(6) Este padrão parece enquadrar-se com os resultados tanto do VOYAGER PAD como do COMPASS. Portanto, é adequada a interpretação de que uma terapêutica combinada de rivaroxabano 2,5mg bid e ácido acetil-salicílico reduz o risco de eventos adversos major relacionados com o membro e também o risco de eventos cardiovasculares de um modo geral, desde a fase aguda pós intervenção (sustentada pelos resultados do VOYAGER PAD) até ao longo prazo (resultados do COMPASS).

Dois aspetos importam salientar. O primeiro prende-se com o perfil de segurança. Uma terapêutica anti-trombótica mais agressiva poderia levar a um maior número de eventos hemorrágicos, perdendo assim o benefício. Ao contrário do esperado, no estudo VOYAGER PAD não se demonstrou um aumento significativo de hemorragias major, ao contrário do COMPASS em que isso se verificou, mas em ambos estudos estas hemorragias não envolveram órgão crítico ou foram fatais, o que revela um perfil de segurança aceitável nesta população de doentes. Não obstante, é necessário critério na seleção de doentes, evitando-a naqueles que possam ter pior perfil de risco hemorrágico.

Curiosamente, muitas das hemorragias minor verificadas levaram à identificação precoce de neoplasias gastro-intestinais, assunto que merecerá investigação no futuro.

O segundo aspeto prende-se com a escolha de ácido acetil-salicílico como comparador, ao invés de clopidogrel. É facto que o estudo CAPRIE, o único estudo randomizado que comparou estes dois regimes, demonstrou superioridade para o clopidogrel apenas na subpopulação de DAP. Podia assim argumentar-se que a terapêutica combinada deveria ser comparada com este e não com ácido acetil-salicílico. No entanto, o benefício demonstrado no estudo CAPRIE foi marginal sendo necessário tratar perto de 80 doentes para prevenir um evento. Nesse mesmo estudo, o benefício de clopidogrel em doentes diabéticos não foi demonstrada, o que é um fator muito relevante tendo em conta a crescente prevalência de diabéticos com DAP. Além disso, o estudo teve lugar há 3 décadas atrás, quando a prevenção secundária, nomeadamente com inibidores da enzima HMG-CoA redutase, estava longe de ser generalizada e otimizada, consequentemente tendo por base uma população que, de base, é dificilmente comparável com a atual. Por último, a dose de aspirina utilizada no CAPRIE foi de 325mg, o que se demonstrou ser igualmente eficaz que uma dose mais reduzida, mas com maior risco de eventos hemorrágicos. Assim, é expectável que a uma dose de clopidogrel de 75mg tenha um risco hemorrágico semelhante a uma dose de ácido acetil-salicílico de 325mg mas maior que uma dose de 100mg. A realidade é que é o ácido acetil-salicílico e não o clopidogrel o fármaco de escolha na DAP pela grande maioria dos médicos, conforme é demonstrado por diversas publicações baseadas em registos nacionais.(2) Assim sendo, a escolha do comparador para o estudo COMPASS e VOYAGER-PAD é lógica e justificada.

Podemos assim concluir que a terapêutica antitrombótica sinérgica associando ácido acetil-salicílico a rivaroxabano em dose “vascular”, representa um avanço muito significativo na terapêutica preventiva da DAP, com o potencial de salvar vidas assim como prevenir uma importante incapacidade (e consumo de recursos) decorrente de amputações ou necessidade de procedimentos de revascularização. Esta redução de risco é até superior ao verificado para outros territórios de aterosclerose sintomática, evidenciando que a sub-população de DAP apresenta o maior potencial benefício terapêutico utilizando este novo regime terapêutico. Esperamos com antecipação o reconhecimento da sua importância, a par da reconhecida para a doença cerebrovascular ou coronária, através da decisão de comparticipação pelas autoridades competentes. Sem esta, a acessibilidade ao tratamento estará seriamente comprometida, contribuindo negativamente para aliviar o sofrimento desta população e mitiga os esforços para corrigir a iniquidade relativa a uma patologia que, como nós clínicos bem sabemos, é tão devastadora para os nossos doentes.

Conflitos de interesse:

Os dois autores receberam honorários como palestrantes em iniciativas de formação promovidas pela Bayer

Referências

1. Song P, Rudan D, Zhu Y, Fowkes F, Rajimi K, Fowkes G. Global, regional, and national prevalence and risk factors for peripheral artery disease in 2015: an updated systematic review and analysis. Lancet. 2019 ;7(8):E1020-E1030 [ Links ]

2. Ambler GK, Wladron C-A, Contractor UB, Hinchliffe RJ, Twine CP. Umbrella review and meta-analysis of antiplatelet therapy for peripheral artery disease. Br J Surg. 2020;107(1):20-32 [ Links ]

3. Aboyans V, Ricco JB, Bartelink MEL et al. 2017 ESC guidelines on the diagnosis and treatment of peripheral arterial diseases, in collaboration with the European Society for 4. Vascular Surgery (ESVS): document covering atherosclerotic disease of extracranial carotid and vertebral, mesenteric, renal, upper and lower extremity arteries. Eur Heart J 2018;39:763-816. [ Links ]

5. Anand SS, Bosch J, Eikelboom JW et al. Rivaroxaban with or without aspirin in patients with stable peripheral or carotid artery disease: an international, randomised, double-blind, placebo-controlled trial. Lancet 2018;391:219-229. Bonaca MP, Bauersachs RM, Anand SS, et al. Rivaroxaban in Peripheral Artery Disease after Revascularization. N Engl J Med. 2020;382(21):1994-2004. [ Links ]

Bonaca MP, Bauersachs RM, Anand SS, et al. Rivaroxaban in Peripheral Artery Disease after Revascularization. N Engl J Med. 2020;382(21):1994-2004. [ Links ]

6. Hess CN, Wang TY, Fu JW, et al. Long-Term Outcomes and Associations With Major Adverse Limb Events After Peripheral Artery Revascularization. J Am Coll Cardiol. 2020;75(5):498-508 [ Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2021; Aceito: 05 de Janeiro de 2021

Autor para correspondência. Correio eletrónico: f.bastosgoncalves@nms.unl.pt (F. Gonçalves).

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