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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.7 Lisboa dez. 2009  Epub 31-Dez-2009

 

Recensão

Recensão: Sacerdocio y reino en la España medieval. Iglesia y poder político en el Occidente peninsular, siglos VII-XII.

José Mattoso1 

1 Director da Medievalista, Instituto de Estudos Medievais- Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

Ayala Martínez, Carlos de. -, Sacerdocio y reino en la España medieval. Iglesia y poder político en el Occidente peninsular, siglos VII-XII. ., Madrid: :, Silex ediciones, ,, 2008.


Os investigadores que se dedicam ao estudo dos primeiros séculos da Idade Média peninsular podem estar francamente gratos ao Prof. Carlos Ayala Martínez pela sua importante síntese acerca das relações entre o poder sagrado e o poder político no território que corresponde ao reino de Leão e Astúrias (incluindo, portanto, Castela, Galiza e Portugal) desde o fim do século VI até ao fim do reinado de D. Urraca, ou seja durante a maior parte do período que até há pouco tempo era designado como Reconquista, termo cómodo outrora usado sem problemas, mas cuja pertinência vem sendo, com razão, posta em dúvida.

Gratos, sem dúvida, em primeiro lugar, porque se trata de um período semeado de dificuldades, obstáculos e lacunas de informação, decorrentes de problemas de carácter crítico (autenticidade, datação e interpretação textual dos documentos e fontes narrativas da época); em segundo lugar, por causa da fragmentação institucional e da descontinuidade cronológica da produção documental; depois, em virtude da obscuridade das categorias mentais subjacentes aos escritos da época; e finalmente pela espessura da interpretação historiográfica que desde o século XVI tem sido acumulada sobre as fontes, ocultando muitas vezes o seu verdadeiro significado. Depois das monumentais construções interpretativas de Sánchez Albornoz, Menéndez Pelayo e Gomez Moreno, muitos pormenores factológicos foram revistos, muitas críticas de autenticidade alteradas, muitos estudos sobre conceitos culturais e mentais produzidos, muitas reconstituições hipotéticas modificadas ou postas em dúvida. Além disso, cresceu exponencialmente o volume da documentação original impressa e apareceram numerosas edições críticas de fontes narrativas que antes tínhamos de consultar em publicações defeituosas. Enfim, publicaram-se muitas centenas, ou mesmo milhares, de artigos eruditos sobre determinados documentos, datas críticas, fórmulas, conceitos, lugares, instituições, acontecimentos, personagens ou manuscritos, sem que tenha havido, muitas vezes, o cuidado de conciliar entre si as respectivas conclusões.

Para se avaliar até que ponto era necessária uma revisão de todo este material, basta ter em conta que ainda recentemente J. A. García de Cortázar calculava que só a Colecção «Fuentes y Estudios de la Historia Leonesa» publicou durante os últimos vinte e cinco anos quase setenta volumes de documentos, muitos deles inéditos, e que a maioria dos 180.000 documentos espanhóis e portugueses dos séculos VIII a XV recenseados pelo catálogo Codiphis até 1996, foi publicada durante o mesmo período. 1 A base documental sobre a qual tem de se edificar a reconstituição histórica alterou-se, assim, de forma radical. Os estudos monográficos sobre o ocidente hispânico alto-medieval também se multiplicaram. Com efeito, o próprio Prof. Ayala regista na lista bibliográfica da obra que aqui recenseamos nada menos do que uns 1.000 títulos de livros e artigos de revistas. Torna-se, portanto, extremamente útil uma síntese capaz de coordenar todo esse material acumulado nos últimos vinte ou trinta anos. Por isso dizemos que os investigadores que se interessam pelo primeiro período da história do reino astur-leonês podem estar francamente gratos ao autor de uma obra que lhes poderá servir de guia seguro se quiserem penetrar em tão densa floresta.

Como é evidente a obra do Prof. Ayala Martínez estuda apenas um aspecto da matéria em causa: as relações entre o poder político e o poder sagrado. Trata-se, porém, de um problema indiscutivelmente fulcral. Em primeiro lugar, porque a produção documental de que dispomos é maioritariamente de origem eclesiástica e se relaciona quase sempre, de maneira directa ou indirecta, com o exercício do poder temporal ou espiritual do clero ou com a legitimação ideológica do poder temporal e a definição dos seus limites e das suas funções. O conhecimento seguro das questões pressupostas por estes temas constitui, pois, uma condicionante fundamental para qualquer investigação de um tema situado dentro dos mesmos parâmetros cronológicos e espaciais.

Com efeito, a obra que aqui recenseamos constitui um amplo repositório de informações precisas acerca de factos, indivíduos, instituições e problemas críticos precisos, muitos deles controversos, mas acerca dos quais o Autor propõe as soluções mais coerentes de acordo com uma visão ampla, rigorosa e bem fundamentada da época, e, ao mesmo tempo coerente com a sua própria tese de conjunto acerca da relação entre o poder episcopal e a monarquia na alta Idade Média hispânica. A tese do Autor pode-se resumir da seguinte maneira: pouco depois da conversão de Recaredo ao catolicismo, o episcopado visigótico definiu os princípios sobre os quais se devia basear a relação entre o poder temporal da monarquia e o poder espiritual exercido pelo conjunto dos bispos da Hispânia. Estes princípios ficaram consignados nas actas do III concílio de Toledo (589): com a sua conversão o rei tinha-se tornado o instrumento de Deus para restaurar a ordem católica na Hispânia, mas os bispos tinham por missão consolidar essa tarefa por meio do seu magistério. A salvação de todos dependia da complementaridade das respectivas funções. O rei devia proclamar a sua fé e, pelo exemplo, velar pela crença dos súbditos; ao mesmo tempo, os bispos deviam, pelo seu magistério, orientar a reprodução que o povo devia fazer do modelo régio. Assim como o rei, com a sua conversão, tinha alcançado a justiça para o seu povo, competia aos bispos encaminhá-lo para a salvação por meio da ortodoxia do seu magistério acerca da conduta régia. C. Ayala procura verificar que influência exerceu este modelo durante a época da monarquia asturiana sem conseguir encontrar vestígios da sua reprodução, antes do princípio do século X, mesmo quando se impôs na cúria régia a ideia da «restauração da ordem gótica». Apesar disso, a monarquia leonesa parece dever aos bispos do reino um apoio ideológico que contribuiu para a consolidação do seu poder e para o papel que assumiu no combate contra o Islão, embora nem sempre se verifique grande harmonia entre certos reis e alguns bispos da época. Só a partir do século X se pode seguir o percurso de alguns bispos e a celebração de reuniões episcopais. Tendo sido, até essa época, recrutados frequentemente em meio monástico, passam, a partir de então, a ser nomeados pelo rei entre membros oriundos de famílias nobres, e conhecem-se com mais frequência as suas acções políticas. Não se descortina nenhum vestígio de qualquer intervenção da cúria pontifícia. Desde o princípio do século XI conhecem-se melhor os factos. O clero intervém para conseguir a paz social e apoia a dinastia navarra desde o princípio do reinado de Fernando Magno. A expressão mais evidente do acordo então estabelecido entre a monarquia e o episcopado surge no concílio de Coyanza de 1055, onde o propósito de restauração da ordem gótica se torna manifesto. Trata-se de um movimento reformista independente do que em breve se manifestou com a reforma «gregoriana» centrado e dirigido pelo papado. Durante o reinado de Afonso VI o rei tem de decidir entre a reforma de origem hispânica e a que lhe é proposta pelos monges de Cluny e pelo papado e ao mesmo tempo de conciliar ambas as propostas doutrinais com a justificação ideológica da luta anti-islâmica. A documentação relativa a esta época é abundante, mas as suas informações difíceis de conciliar em todos os seus pormenores. Muitas das lutas surdas ou abertas entre os partidários de um ou outro movimento só são conhecidas de forma indirecta devido à ocultação de factos anteriores pelas autoridades religiosas e políticas que vieram a triunfar. É neste período que se situam os mais importantes acontecimentos que antecederam a fundação do condado portucalense, e que, por isso nos interessam particularmente. Os nossos eruditos, sobretudo Herculano Pierre David, C. Erdmann e Torquato Soares, discutiram muitos deles sem chegarem a acordo acerca de uns tantos pormenores. Alguns continuam ainda a discutir-se. Ainda recentemente um jovem investigador2 pôs em causa alguns dados do problema acerca do qual parecia ter-se chegado a um certo consenso - o papel do moçarabismo conimbricense - e um estudioso argentino apresentou uma nova imagem do papel político da rainha D. Teresa.3 O investigador americano B. F. Reily tem desde o princípio dos anos 80, estabelecido uma revisão cuidadosa e muito completa de todos os acontecimentos dos reinados de D. Urraca, Afonso VI e Afonso VII.4 Os autores portugueses que trabalham sobre esta época não podem deixar de contar com estas obras, devido ao alargamento da documentação disponível e do melhor conhecimento da actuação do papado na Península Ibérica. Os dados estabelecidos por Erdmann com base nos documentos pontifícios que reuniu, importantíssimos testemunhos de acontecimentos decisivos nas transformações políticas, institucionais, culturais e sociais da segunda metade do século XI e do século XII, têm de ser revistos. Embora anterior à última obra de Raily, a síntese de Carlos Ayala pode servir de fio condutor para verificar os dados de pormenor relacionados com a história das origens da nossa nacionalidade.

Carlos Ayala não considera a sua obra definitiva. Consciente de que existem ainda muitos problemas aparentemente sem solução ou de solução insegura, nem por isso deixa de propor aquela que lhe parece mais provável, seguindo o sábio critério de que é sempre necessário examinar os argumentos dos autores que trataram do mesmo tema e propor uma interpretação global. Não ignora que algumas das soluções que propõe podem ser aperfeiçoadas ou alteradas em virtude da aportação de novos dados entre outros os que vierem a ser carreados por uma investigação prosopográfica melhorada e por estudos críticos aprofundados sobre certos escritos particularmente importantes. Assim, se os numerosos estudos sobre a Historia Compostellana têm permitido, a pouco e pouco aproveitar com mais segurança as suas importantíssimas (apesar de distorcidas) informações, não acontece o mesmo com as de outras obras que guardam ainda, talvez, muitos segredos, como as de Pelaio de Oviedo e as de Lucas de Tuy. De qualquer maneira, os investigadores destas épocas podem recorrer a Carlos Ayala com bastante segurança. Creio ser sensato conhecer as fontes através das suas informações e só contrariar os seus dados quando a evidência documental o impuser.

Posto isto, não posso deixar de exprimir alguma dúvida sobre a aplicação da tese global subjacente a esta síntese a alguns pormenores concretos. Embora seja verosímil que o episcopado e o rei de Leão e Castela do século XI se tenham inspirado no modelo visigótico definido pelo III Concílio de Toledo e que, em termos, gerais, tenham procurado pô-lo em prática com uma efectiva coerência até à «invasão» cluniacense e gregoriana, creio que convém não esquecer que certas actuações episcopais eram pouco coerentes com ela, e que as estratégias individuais de muitos bispos se explicam mais pelo propósito de defender os seus interessas individuais do que pela fidelidade a qualquer espécie de doutrina. Parece-me ser frequentemente o caso no território português pelo menos até à nomeação de D. João Peculiar para a arquidiocese de Braga. Por outro lado, é preciso também não esquecer que o ideal da restauração gótica (e da «Reconquista») como justificação e legitimação da guerra santa e do papel da monarquia leonesa nessa luta, talvez não fosse tão unânime com pensavam os eruditos do século passado, em particular Sánchez Albornoz. Já Pierre David tinha encontrado nos Annales portucalenses veteres indícios de uma memória independente dessa ideia. As suas interpretações foram confirmadas e ampliadas recentemente por Luís Krus, em estudos infelizmente interrompidos por sua morte, mas retomados pelo jovem investigador Mário Gouveia.

Carvoeiro do Vouga, 24 de Outubro de 2009.

Referencias

Ayala Martínez, Carlos de, - Sacerdocio y reino en la España medieval. Iglesia y poder político en el Occidente peninsular, siglos VII-XII, Madrid: Silex ediciones, 2008 [ Links ]

1«La historiografia de tema medieval hispano: una reflexión sobre el oficio y la producción del medievalista en los años 1982 a 2007», Mariano Esteban de Veja (ed.), 25 años de historia. La revista Studia Historica en la historiografía española, Univ. de Salamanca, 2009, pp. 66.

2João Soalheiro, «Religião e poder no Portugal do século XII: a restauração das sedes episcopais», Arte, poder e religião nos tempos medievais. A identidade de Portugal em construção [Catálogo da Exposição no Museu Grão Vasco, Viseu, 14 de Agosto a 14 de Novembro, 2009], Câmara Municipal de Viseu, 2009, pp. 18-25.

3Marsilio Cassotti, D. Teresa. A primeira rainha de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2008.

4The Kingdom of León-Castilla under Queen Urraca, 1109-1226, Princeton Univ. Press, 1982; The Kingdom of León- Castilla under King Alfonso VI, 1065-1109, Princeton Univ. Press, 1988; The Kingdom of León-Castilla under King Alfonso VII, 1126-1157, The Univ. of Pennsylvania Press, 1998.

Recebido: 01 de Julho de 2009; Aceito: 01 de Julho de 2009

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