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Medievalista

On-line version ISSN 1646-740X

Medievalista  no.7 Lisboa Dec. 2009  Epub Dec 31, 2009

 

Recensão

Recensão: Liber testamentorum coenobii laurbanensis (estúdios).

José Mattoso1 

1 Director da Medievalista, Instituto de Estudos Medievais- Universidade Nova de Lisboa, Portugal.

Nascimento, Aires A.; Fernández Catón, José M.. (eds.) -, Liber testamentorum coenobii laurbanensis (estúdios). ., , León: :, Centro de Estudios e Investigación «San Isidoro», ,, 2008. (= col. Fuentes y estúdios de historia leonesa,, nº. 125), 792 pp.


Não foi sem surpresa que me chegou às mãos o 125º volume da monumental colecção das «Fuentes y estudios de historia leonesa», não tanto pelo facto respeitável de representar o notável feito de manter um projecto iniciado há precisamente 50 anos, mas por ter como conteúdo o conhecido cartulário do mosteiro de Lorvão onde foram copiados os mais antigos documentos produzidos em território português actualmente existentes. Pensando bem, a publicação é lógica: os documentos registados no cartulário referem-se a uma região pertencente ao reino de Leão até à independência portuguesa em meados do século XII; entre eles encontra-se um certo número de actos outorgados ou confirmados por soberanos leoneses. O cartulário tem, pois, um lugar lógico e, até, relevante, entre as fontes da história do reino de Leão. Como é também uma importantíssima fonte documental para o território português, a iniciativa só podia merecer a aprovação e o interesse dos nossos investigadores. Tanto mais que o seu resultado constitui um excelente exemplo de cooperação internacional, pois associa numa só equipa alguns dos mais prestigiados autores de ambos os países. Com efeito, a publicação do texto do cartulário, com todos os requisitos da crítica moderna, é acompanhada por um amplo conjunto de estudos históricos, filológicos, codicológicos, paleográficos, diplomáticos, e ainda por uma regesta completa de todos os documentos de Lorvão conhecidos até hoje, entre os quais um número considerável de originais e cópias conservadas nos arquivos portugueses, com a análise crítica do ponto de vista da autenticidade. É o resultado de um projecto que obteve o empenhado apoio do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, que ofereceu aos autores especiais condições de trabalho.

Todos estes estudos foram confiados a especialistas. Eis os seus nomes: Maria João Branco, história geral; Aires Nascimento, história monástica e institucional, codicologia; J. M. Ruiz Asencio, paleografia; M. Herrero de la Fuente e J. A. Fernández Flórez, diplomática; M. A. Rodrigues, cartulários portugueses; A. Tavares Simões Capão e Aires Nascimento, onomástica; Paulo F. Alberto e Aires Nascimento, léxico; José R. Morala, língua; J. M. Fernández Catón, regesta documental. Enfim, última surpresa, o volume de estudos e transcrição de documentos aparece juntamente com um facsímile perfeitíssimo do célebre Liber testamentorum coenobii laurbanensis praticamente igual ao original.

Habituados como estamos à estreiteza e timidez da publicação de fontes medievais portuguesas, não se pode deixar de prestar homenagem aos responsáveis e colaboradoras desta obra exemplar, à qualidade dos seus estudos, e ao imenso conjunto de dados recolhidos para atribuir o pleno valor a tão importante conjunto documental. O códice já tinha há séculos chamado a atenção de historiadores e eruditos, com especial relevo para Fr. Manuel da Rocha (1730). Uma grande parte dos seus documentos foi publicada pelos Portugaliae Monumenta Historica. Constituíram a base de um estudo pioneiro e bem conhecido de Ruy de Azevedo (1932). Mas as evidentes dificuldades de interpretação resultantes de problemas levantados pela crítica de autenticidade atemorizaram a maioria dos investigadores modernos que tentaram servir-se dele. Foi, afinal, com a ajuda de especialistas espanhóis que veio a ser publicado com todos os cuidados necessários ao seu aproveitamento histórico.

Trata-se de um de uma solução definitiva das dúvidas suscitadas pelo cartulário, ou pelo menos da maioria delas? Parece ter sido esse um dos principais objectivos dos editores, a julgar pelo que diz o seu principal colaborador, o Professor Aires do Nascimento, a propósito do supostamente mais antigo documento: «Os editores não têm tomado decisões firmes que permitam resolver os problemas: procuraram interpretar e corrigir, mas deixaram a questão em suspenso» (p. 83). Ora acontece que também a este respeito os colaboradores da obra não conseguiram chegar a acordo entre si. Enquanto A. Nascimento defende a correcção do evidente erro de data do referido documento de 777 para 857, Fernández Catón considera esta opinião impossível e propõe 907 ou 917, mas inclina-se mais para 917 (pp. 467-475). Todavia A. do Nascimento está tão certo da sua solução que em vários passos dos artigos por ele assinados aponta o ano de 857 como data segura, e só em alguns casos a indica sob reserva. Serve-lhe de argumento para considerar o mosteiro de Lorvão como instituição fundada antes desse ano, ou seja antes da ocupação de Coimbra pelo conde Hermenigildo Guterres (878).

Este pormenor mostra que apesar de todos os cuidados e das análises mais minuciosas não se conseguiu chegar às «decisões firmes» que constituíam o ideal e, decerto, as legítimas esperanças do Professor Aires do Nascimento e dos seus colaboradores. Longe de mim contestar a seriedade e o rigor técnico do empreendimento. Não tenho a mínima dúvida que os pontos discutíveis foram devidamente identificados e analisados, os dados seguros postos em relevo, as informações complementares efectivamente produzidas, e o contexto seriamente descrito, ao menos quanto aos seus elementos mais importantes. Duvido, no entanto, que não seja possível ir mais longe em termos históricos, incluindo o próprio problema da época aproximada em que o mosteiro foi fundado, dado essencial para interpretar o papel que desempenhou na época da ocupação cristã de Coimbra até à conquista de Almansor e, depois, até à sua extinção e substituição por uma comunidade cisterciense feminina no princípio do século XIII.

Com efeito, esgotados, porventura os recursos analíticos, creio ser ainda possível avançar de alguma maneira o conhecimento histórico que é, afinal, o objectivo fundamental da abordagem das fontes enquanto testemunhos do passado. Ou seja, na minha opinião, é preciso ainda - e isso, apesar dos dois primeiros estudos desta colectânea serem consagrados ao contexto histórico-político e à história institucional da comunidade lorvanense - proceder a um encontro entre os dados fornecidos pela análise, não com objecto de si mesma, mas como indicadores de factos significativos em termos históricos. Quero-me referir aos factos políticos, nomeadamente a actuação na região de entre Douro e Mondego, por um lado, dos reis leoneses e dos condes conimbricenses, portucalenses e galegos, e, por outro lado, dos agentes do califado e outros poderes muçulmanos; e, em segundo lugar, aos factos da história monástica, nomeadamente a identificação e datação das correntes institucionais em presença e da sua actuação regional, aos factos da história religiosa como resultado da actuação dos bispos, e finalmente à história da ocupação humana do território. Estou persuadido que os progressos realizados nos últimos anos pelo medievalismo espanhol em todas estas matérias, nomeadamente em termos de história religiosa (diocesana e monástica) podem fornecer pontos de apoio para interpretações mais interessantes do que as fornecidas nesta obra pelos seus dois primeiros autores. Com efeito, a síntese não é apenas o resultado da conjugação de dados fornecidos pela análise, mas um passo mais no processo de conhecimento global do passado, pois convida a verificar, num segundo tempo da análise, interrogações que a comparação dos dados sugere e que podem ou não confirmar as hipóteses nascidas da própria comparação. A propósito do que aqui pretendemos dizer, e permanecendo no âmbito da história leonesa dos séculos IX a XII, podemos apresentar, como exemplo claro deste processo de relação entre análise e síntese, a obra Sacerdocio y reino en la España altomedieval. Iglesia y poder político en el Occidente peninsular, siglos VII-XII, de Carlos de Ayala Martínez (Madrid, Sílex, 2008). Mesmo que não se concorde com a tese subjacente, tem de se reconhecer que constitui uma proposta interpretativa que permite, ao longo de todas as situações históricas da relação entre poder temporal e poder espiritual, em nome de uma certa coerência dos dados, propor soluções credíveis para casos de sentido controverso. Este procedimento é particularmente importante para uma época e uma região em que os casos controversos abundam e se podem adoptar soluções diferentes. Com efeito, uma vez dada uma certa interpretação a um caso duvidoso, manda a coerência que a hipótese escolhida acarrete a preferência por uma determinada hipótese para solucionar um caso conexo e igualmente controverso. Cremos que o caso do diploma datado de 777 é um exemplo simples: a correcção para 857, correcta do ponto de vista paleográfico e diplomático, opõe-se ao que sabemos da história política acerca da intervenção dos reis de Leão na área de Coimbra. Por isso foi considerada inadmissível por Fernández Catón.

O enquadramento dos dados verificados pela análise é, portanto, fundamental. A esse propósito não podemos deixar de notar a estreiteza em que se move o estudo de Aires do Nascimento acerca da história monástica de Lorvão. As suas bases são manifestamente reduzidas ou inadequadas, como se pode ver consultando as notas de pé de página. A mais utilizada parece ser um conjunto de artigos de J. Pérez de Urbel publicados no Diccionario de Historia Eclesiástica de España nos anos 70. Trata-se de resumos da sua obra fundamental em dois volumes, Los monjes españoles en la Edad Media publicada sem data, em segunda edição, nos anos 50. Sendo o seu valor indiscutível para a época, não pode comparar-se com as obras muito mais rigorosa e amplamente documentadas de J. Orlandis, sobre a traditio corporis et animae (1954), os mosteiros familiares (1956), os mosteiros dúplices (1960), e as «congregações» monásticas (1964), reunidos em volume e novamente publicados em 1971. Apesar de já terem mais de trinta anos, representam a base a meu ver mais segura do conhecimento das instituições monásticas do noroeste peninsular; os estudos mais recentes apenas vieram, creio eu, acrescentar-lhe alguns complementos e mais pormenores. Tem de se mencionar entre eles a fundamental tese de doutoramento de A. Linage Conde sobre as origens do monacato beneditino na Península ibérica (1973), que veio confirmar, pelo que ao território português diz respeito, a minha tese de doutoramento sobre O monaquismo ibérico e Cluny (1968) (que Aires do Nascimento cita, mas praticamente não utiliza, ou só menciona para a contradizer, em pontos isolados e acidentais). Mencionem-se também as importantes contribuições de M. C. Díaz e Díaz para o conhecimento do monaquismo de Isidoro de Sevilha, de Frutuoso, de Valério de Bierzo, e de Rosendo, que Aires do Nascimento nunca utiliza. Infelizmente não posso mencionar com precisão os estudos mais recentes de autores galegos sobre o monaquismo desta região, mas também eles não podem ser esquecidos.

Uma das consequências da inadequação dos recursos bibliográficos adequados para tirar proveito dos indicadores documentais em termos históricos é a dificuldade neste artigo manifestada para resolver os problemas relativos ao tipo de observâncias monásticas adoptadas até ao fim do século XI, à recepção da regra de S. Bento, às relações do mosteiro com Cluny e com o bispo de Coimbra, à evolução institucional dos pequenos mosteiros na época de transição dos costumes hispânicos para novas formas de vida religiosa. Basta verificar os equívocos relativos ao significado do título de prior, à jurisdição episcopal e à isenção canónica dos mosteiros cluniacenses.

Como se pode verificar pela leitura do artigo de Aires do Nascimento, uma das questões fundamentais da história laurbanense é a relação entre a comunidade e os moçárabes, isto é, os habitantes de Coimbra de cultura árabe e os que tentaram permanecer fiéis à liturgia tradicional e resistiram à imposição do rito romano. Ora também a este respeito não posso deixar de estranhar que ele ignore o fundamental artigo de G. Pradalié sobre os documentos falsos da catedral de Coimbra (1974) que obriga a rever tudo o que até à data da sua publicação se dissera a tal respeito e que, na minha opinião, não foi ainda substituído por nenhum outro estudo histórico; mas será útil recorrer também aos estudos mais recentes de M. Real. Creio, pois, que as páginas que tratam desta questão terão igualmente de ser revistas.

Uma futura história do mosteiro de Lorvão não poderá deixar de procurar nestas obras informações susceptíveis de fornecer os indicadores documentais necessários para conseguir passar de uma acumulação informe de dados a uma história coerente. Seja como for, parece-me de todo inadequada a conclusão de Aires do Nascimento: «Estão, pois, envoltos em penumbra da lenda os primitivos elementos do mosteiro lorvanense. Longos anos e incertos, marcam a vida dessa instituição e raros ou tardios são os dados que a associam a outras instituições congéneres […] A situação de fronteira deve ter marcado a vida dos monges e feito deles sentinelas de uma Cristandade que avançava para a reconquista de Coimbra, de forma lenta, temerosa e por isso discreta. Ficam eles isolados no seu recanto, aparentemente sem contactos» (p. 130). Os Annales de Lorvão, os documentos em que intervêm os reis leoneses e os condes portugueses e galegos, a lenda da intervenção do mosteiro na conquista de Coimbra por Fernando Magno, a lenda do abade João de Montemor, a doação do mosteiro ao bispo de Coimbra pelo conde D. Henrique, a restauração da comunidade pelo próprio bispo, e até os manuscritos copiados em Lorvão, entre eles Apocalipse de Beatus, desmentem esta caracterização sumária. Os dados podem ser difíceis de conjugar, mas não há outro mosteiro português anterior à fundação de Santa Cruz que reúna um tal conjunto de documentos e que tenha desempenhado um papel tão importante no período anterior à fundação do reino. A síntese ensaiada pelo Professor Aires do Nascimento não me parece ter atingido o objectivo; em alguns pontos (sobretudo a relação com o monaquismo cluniacense e a posição quanto ao rito moçárabe) creio mesmo ter criado equívocos e pistas falsas. Não queria de modo algum extrapolar o que digo acerca desta parte da obra para o aplicar ao sue conjunto. Com efeito, o volume publicado pelo Instituto San Isidoro constitui um instrumento de trabalho indispensável para o aproveitamento não só do cartulário mas também de toda a documentação lorvanense e assim orientar futuras pesquisas e interpretações.

Referencias

Nascimento, Aires A. e Fernández Catón, José M. (eds.) - Liber testamentorum coenobii laurbanensis (estúdios). León: Centro de Estudios e Investigación «San Isidoro», 2008 (= col. Fuentes y estúdios de historia leonesa, nº. 125), 792 pp. [ Links ]

Recebido: 01 de Julho de 2009; Aceito: 01 de Julho de 2009

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