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Medievalista

versión On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.8 Lisboa dic. 2010  Epub 31-Dic-2010

https://doi.org/10.4000/medievalista.462 

Artigos

Mulheres Sobrenaturais no Nobiliário Português - a Dama Pé de Cabra e a Dona Marinha.

Irene Freire Nunes1 

1 Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - UNL, Portugal


Resumo

Vamos comentar algumas breves narrativas que figuram no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro e que nos remetem para figuras sobrenaturais que estariam na origem de certas famílias nobres. Veremos como elas se ligam a um imaginário comum occidental que nos faz remontar do extremo ocidente português, através do mundo hispânico e da França, até à longínqua Bretanha e à sua “matéria”.

Mulheres Sobrenaturais no Nobiliário Português - a Dama Pé de Cabra e a Dona Marinha

Monarquias feudais no Occidente medieval

A formação das monarquias feudais no Ocidente medieval trouxe consigo uma revisão e reformulação do problema das origens históricas das forças políticas em presença.

À organização do passado do Ocidente levado a cabo pelas crónicas da alta nobreza, que implicava a ideia de uma Cristandade una e ecuménica sob a direcção conjunta do papado e do Império, herdeiros do carácter providencial assinalado ao antigo império romano e da concepção (hebraica) de povo eleito, segue-se a procura, por parte das monarquias feudais, da afirmação de um passado autónomo, o qual, a longo prazo, dará origem às crónicas nacionais que pretendem anexar à memória dos diversos reinos a herança histórica comum a toda a Cristandade.

Para fazer frente às pretensões teocráticas do Papado e à tutela imperial, os reis e príncipes fomentam, a partir do séc. XII, a elaboração de novas crónicas dinásticas e de genealogias que os apresentem como descendentes de heróis independentes desses poderes que pretendem contestar.

Assim se incorporam ao passado das famílias (através do clérigos ao seu serviço) ou dos reinos por elas detidos, os heróis do ciclo troiano, carolíngio e bretão. Sendo aproveitados para o efeito materiais eruditos que o gosto pela Antiguidade, trazido pela descoberta e releitura dos textos clássicos (Thèbes, Troie, Enéas) no âmbito do renascimento do séc.XII, e materiais folclóricos, colhidos na crescente produção literária "cortesã" em língua vulgar, sobretudo a produção épica que a empresa occidental das Cruzadas incentivava e que recriava temas tradicionais que até então circulavam por via oral. As crónicas, genealogias, gestas e romances produzidos nas cortes régias e principescas do Ocidente Medieval vão reflectir o desejo de subordinar a memória de feitos heroicos passados à memória familiar de reis e príncipes então reinantes e servir de meio de transmissão de uma ética cavaleiresca destinada a incrementar os laços de fidelidade e dependência pessoal em relação à corte e seus dirigentes.

Este procedimento (e a ideologia cavaleiresca subjacente) é pouco a pouco seguido nas cortes condais e senhoriais num lento processo de difusão cultural.(1)

As aristocracias nobiliárquicas do Ocidente vão promover a exaltação da linhagem, o que conduzirá à fixação e mesmo à criação de um passado familiar cheio de acções e personagens cujo mérito e fama deve igualar ou mesmo ofuscar o dos reis, príncipes e nobres rivais.

Esta rivalidade coincide com a consolidação de novas estruturas de parentesco onde se joga a salvaguarda do património familiar e a valorização da função militar no quadro crescente dos conflitos que opunham entre si as diversas monarquias feudais e da cristianização da actividade bélica na sequência das cruzadas contra o Islão.

A nobreza condal e senhorial

Há uma afirmação agressiva contra os reis que começam, a partir do séc. XII, o percurso da centralização do poder, contrário ao aumento e à consolidação dos senhores territoriais hereditários.

Por intermédio de clérigos, trovadores e jograis, a nobreza condal e senhorial procura fixar por escrito, ou criar integralmente, textos que procurem reproduzir as origens familiares e encontrar o tempo mítico da fundação. Tão longínquo quanto possível, tão insólito e fantástico que se retenha na memória e suscite admiração, reverência e terror. Em qualquer dos casos exprime o desejo de uma ancestralidade que justifique direitos e privilégios no presente, faz-se alarde do poder de um grupo familiar "por cujo sangue perpassam os carismas definidores do estado de nobre" (2).

Elucida-se por um jogo de vaticínios e profecias premonitórios, o êxito e decadência da família, salvaguardando uma memória que podera’ ser partilhada por linhagens aparentadas.

Os clérigos eram oriundos muitas vezes de instituições religiosas protegidas pela linhagem (porque nelas se localizava o respectivo túmulo) que retribuiam e aumentavam as doações a elas concedidas.

Os trovadores, muitas vezes pertencendo a ramos secundários da família, ao louvar o passado de uma linhagem a que também pertenciam, solicitavam favores do senhor e cultivavam a nostalgia de um antigo poder contrastando com a modéstia da sua actual condição.

Os jograis, errantes, colocando-se ao serviço dos poderosos, mobilizavam, na sua intenção laudatória, um repertório de conhecimentos que a par de uma cultura erudita e livresca incluiam a cultura folclórica e oral.

Se algumas famílias situam as suas origens num parentesco (real ou fictício) com membros das casas imperiais ou régias do Ocidente, em tempos anteriores à fundação das linhagens reinantes, com o propósito de a elas se sobreporem em antiguidade e poder, outras recorrem a um processo de mitificação dos heróis históricos: o da historização de figuras míticas recolhidas em lendas e contos de origem folclórica que adaptam às suas novas funções.

Relatos genealógicos

Estão neste caso uma série de relatos genealógicos cujo esquema narrativo repousa no que se convencionou chamar contos melusinianos: (3) um ser sobrenatural une-se a um mortal e concede-lhe o seu amor em troca da promessa de respeitar um interdito, levando a respectiva transgressão ao desaparecimento do ser superior.

Largamente atestados na cultura folclórica universal, estes contos aparecem registados na literatura do Ocidente medieval entre 1170-1210, nomeadamente em obras produzidas por autores associados à corte plantageneta, corte em que se forma um vasto corpus literário onde, através do lirismo provençal e da matéria de Bretanha se passa a valorizar a temática amorosa e o maravilhoso pagão proporcionando a incorporação

de temas e motivos próprios da cultura popular, negligenciados até então por uma cultura marcada pelos modelos de origem clerical.

A figura mítica da fada que irrompe no romance medieval tem como antecedente as "fatae" da alta Idade Média que associam às Parcas antigas os atributos das deusas-mães célticas, ligadas ao culto da abundância e da fertilidade.

" Sobreviventes de um panteão desaparecido, as fadas ocuparam um lugar num outro sistema mítico: o do imaginário erótico da Idade Média" (4).

Sobre o poder das fatae nas crenças medievais os testemunhos das autoridades religiosas sao eloquentes. Martim de Braga, por exemplo, em De correctione rusticorum, após ter estigmatizado os deuses pagãos como sendo diferentes formas do Diabo e dos demónios expulsos do céu, que se mostram aos homens para os enganar, acrescenta:

"Além disso, de entre os demónios que foram expulsos do céu, numerosos são os que moram no mar, nos rios, nas fontes ou nas florestas; os homens ignorantes de Deus honram-nos como se fossem deuses e oferecem-lhes sacrifícios. No mar invocam Neptuno, nos rios as Lâmias, nas fontes as Ninfas, nas florestas as Dianas que outra coisa não são senão demónios e espíritos malignos, que atormentam e acabrunham os homens sem fé que não sabem defender-se pelo sinal da cruz"(5)

Isidoro de Sevilha fala das três Parcas como de três "Destinées": uma para urdir a vida do homam, a segunda para a tecer e a terceira para a romper.

“Parcas Κατ'αvτίψρασιv appellatas, quod minime parcant. Quas tres esse voluerunt: unam, quae vitam hominis ordiatur; alteram, quae contexat; tertiam, quae rumpat.” (6).

Quanto às ninfas são apresentadas como divinidades ligadas ao culto das águas, das florestas, das montanhas.

Os traços sobrepostos das Parcas antigas (vindas da cultura erudita) e das amantes sobrenaturais dos contos maravilhosos, dever-se-iam a um encontro entre cultura erudita e cultura popular. Há documentos que atestam, nas crenças populares, "agrestes feminae quas sylvaticas vocant" que "se mostram quando querem aos seus amantes, tomam com eles o seu prazer e (sempre quando querem) escondem-se e desaparecem"; outros evocam as cavalgadas nocturnas de Diana, como o Canon episcopi que enumera as práticas mais correntes de feitiçaria por volta do ano 900.(7)

Por outro lado a epopeia irlandesa é rica em dados sobre o mundo feérico. O ciclo mitológico, respeitante aos antepasados míticos da Irlanda, contém viagens ao país das fadas (Viagem de Bran, Navegação de Mael-duin,etc.) onde estão presentes a nave mágica, a amante sobrenatural, o animal-guia, o interdito, o dom maravilhoso, a fuga sobrenatural do tempo.

Estes elementos encontram-se nos lais bretões onde se detecta o tema da fada amante para além da influência do romance cortês. O tema da união da mulher sobrenatural e de um mortal impõe-se na literatura do séc.XII em que a cultura erudita se apropria das figuras do imaginário colectivo, fazendo entrar no mundo do escrito uma nova visão da fada. A literatura opera a fusão entre duas figuras veiculadas pelo folclore: a da fada madrinha e a da fada amante, segundo os termos de L. Harf-Lancner, cujos traços se confundem. Dois esquemas narrativos põem em cena fadas, que ela qualifica respectivamente de "melusiniano" e de "morganiano". No primeiro uma fada apaixona-se por um humano, desposa-o impondo um interdito e regressa ao Outro Mundo quando o esposo transgride o pacto. No segundo, a fada atrai-o para o Outro Mundo (lugar da imortalidade) impondo-lhe um interdito, condição do seu regresso ao mundo dos humanos (reino do Tempo e da Morte).

Narrativas feéricas

A primeira narrativa é introduzida desde o séc.XII em De Nugis Curialium (1181-1193) de Gautier Map, nas Otia Imperialia (1209-1213) de Gervais de Tibury e no Super Apocalypsim (1187-1194) de Geoffroi d'Auxerre (V.L. Harf-Lancner, op. cit., p.90).

Mas o nome de Mélusine surge só dois séculos mais tarde, pela pena de Jean d'Arras (1387) e de Couldrette (entre 1404 e 1405) que fazem de Mélusine a antepassada da linhagem de Lusignan. (8)

A segunda narrativa estende-se a todo o ciclo bretão (a través, nomeadamente, do tema da viagem ao Outro mundo e do "topos" da caça ao Cervo Branco, animal-guia que conduz ao Além) e domina a Continuation Perceval e o Bel Inconnu.

Os traços ambivalentes da fada vão dissociar-se nos romances do séc. XIII a través da oposição Morgane - Dame du Lac (magia branca contra magia negra).

Morgane

O primeiro texto francês que faz alusão a Morgane é o roman de Thèbes, datado de 1150, nomeadamente no episódio da "vieille à l'énigme", esfinge terrible atràs da qual prepasa a lembrança do poder da fada:

"une tour i ot grant et lee / que jadis fut Morgan la fee"

Aparece também no roman de Troie, escrito entre 1155 e 1160, um dos modelos de Erec et Enide de Chrétien de Troyes (entre 1165 e 1170).

Neste romance o nome de "Morgant la fée" surge asociado à ilha de Avalon, a través de Guingamars, o seu senhor, que vem às bodas de Erec.

Atribuem-se a Morgane os mais requintados talentos em matéria de bordado e tecelagem, talentos que fazem parte das atribuições das fadas, sempre apresentadas como fiandeiras e bordadoras ( o que remete para divinidades como Minerva ou Atena). Mas o texto destaca ainda outro poder mais secreto e mais profundo, a capacidade de curar, a través do ungüento administrado a Erec, cujas virtudes são largamente enumeradas. Este poder é também atestado no Chevalier au Lion, onde a loucura de Yvain é curada com a ajuda de um ungüento preparado por "Morgane la sage", irmã do rei Artur.

Chrétien de Troyes deixa entrever uma Morgane generosa e benfazeja, mesmo se opera um "détournement" dos seus poderes feéricos em proveito da fé cristã ( a casula sumptuosa destinada ao seu amante que a rainha obtém por "ruse" para pôr na sua capela).

Vê-se já esboçada a oposição entre a fada e a dama, assim como o que será o retrato de Morgane nos romances posteriores: o seu afastamento em relação ao mundo da corte, os seus poderes feéricos, a sua conexão com a ilha de Avalon; o Val Périlleux que vai ter um papel determinante no romance de Lancelot em prosa, sob os aspectos de Val des Faux Amants ou Val sans Retour, e que sublinha o seu isolamento; a sua qualidade de amie que contrasta neste romance do casamento integrador, assim como a sua dissociação do culto praticado na corte, sacerdotisa que é de outro culto, afastado, "refoulé" para as margens inacessíveis.

É à ilha de Avallo que Artur, mortalmente ferido, é levado para ser tratado, segundo a Historia Regum Britanniae de Geoffroi de Monmouth, e o personagem de Gingamars figura noutras histórias designando um mortal apaixonado por uma fada, que a segue ao país das fadas (ao Outro Mundo) e não volta. Pode supor-se que este mortal se torna, pela sua ligação com a fada, senhor da ilha. A relacionar com o heroi do lai Guiguemar de Marie de France, analisado por L.Harf-Lancner e classificado entre os "contos morganianos" cujo ascendente sobre a imaginação na Idade Média é largamente demonstrado (op. cit., p.335-369).

A Morgue de Chrétien é sem dúvida a Morgen da Vita Merlín (c. 1148) de Geoffroi de Monmouth. A Insula Pomorum ou Fortunata, identificada com Avalon, é uma ilha afortunada governada por nove irmãs entre as quais, Morgen, a mais velha, se distingue pela arte de curar e suplanta em beleza todas as outras - estudou as virtudes medicinais de todas as plantas, conhece também a arte da metamorfose, sabe voar através dos ares e ensinou a adivinhação às irmãs - e a mais nova é excelente na arte da cítara.

Por detrás destas nove ninfas (nimpharum) que evocam as nove musas antigas, estariam, segundo Faral, as nove virgens da Ilha de Sein que Pomponius Mela descreve em De situ orbis (III,16), nove sacerdotisas votadas a uma divindade galesa e ao seu oráculo, chamadas Gallicenas, cujos atributos são a capacidade de agir sobre ventos e marés pelo canto, a metamorfose, a arte de curar e a adivinhação.

Loomis supõe uma identidade entre Morgue e Modron, divindade galesa representada nos Mabinogion. O mabinogi de Owein dá como mãe de Owein, filho de Urien, Modron, filha d'Awwallach.

À Anu (e Danu) irlandesa, mãe dos deuses, e à Don galesa, ligadas ao bem estar da humanidade, respondem numerosas deusas locais, conotadas com a terra e a fertilidade.

A lenda de Morgane foi certamente influenciada pelo culto da deusa irlandesa Morrigan (grande rainha) a quem está asociado o heroi Cuchulainn. Esta pertence a um trio guerreiro que intervem nas batallas pela magia e o terror. Divinidades da guerra e da fertilidade como as suas correspondentes galesas, combinam sexualidade e maternidade. Mas é a magia e a metamorfose tal como a força física e a pugnacidade guerreira que tornam terríveis estas divinidades arcaicas. Alguns dos seus traços encontram-se na personagem de Morgane.

Mélusine

Quanto a Melusina, embora o seu nome só apareça depois de 1387, como já vimos, os textos pré-melusinianos já citados derivam da existência de uma tradição oral multi-secular espalhada por toda a Eurásia e testemunham da existência de uma tradição mítica da fada muito anterior ao seu aparecimento ligado à família poitevina de Lusignan. Tratar-se-ia da "grande deusa do neolítico"(9), ou seja de uma antiga deusa da fecundidade e da prosperidade. Na Idade Média, o mito de Melusina corresponde sobretudo a uma etapa da história do Ocidente em que o imaginário da mulher, sob a pressão do Cristianismo, sofre profundas modificações no domínio jurídico, económico e cultural.

O mito de Melusina conta um rito de possessão de uma filha do céu por um filho da terra

A ambiguidade fundamental da mulher-animal reside na sua naturaza meio divina, meio humana. Ela consagra a separação entre a ordem humana e a ordem divina mas mantém o seu laço com o Outro Mundo. É ela que no casal fundador testemunha de poderes divinos, como o da geração. Aproxima-se das divinidades que, como Hera ou Juno na mitologia clássica, presidem aos partos. Marca os filhos da sua hereditariedade sobrenatural, pois quase todos recebem uma disformidade animal, possuindo ao mesmo tempo dons excepcionais, guerreiros sobretudo, que lhes vêm da netureza feérica da sua progenitora.

O mito de Melusina conserva a herança da antiga potência reconhecida primitivamente à Deusa-Mãe. Trata-se naturalmente de um mito anterior ao cristianismo e a Idade Média cristã não cessará de combater, através de todas as fadas, a ideia de domínio do homem pela mulher. O mito melusiniano assenta na aceitação por parte do homem da supremacia de um poder feminino de direito divino. A transgressão deliberadamente cometida pelo marido implica a violação do segredo que funda a sua superioridade divina e provoca o desaparecimento da fada.

É no sermão do monge cistercence Geoffroy d'Auxerre ( Super Apocalypsim , sermo XV, datado de 1188-1194) que aparece por escrito, pela primeira vez, uma lenda verdadeiramente melusiniana: um nobre da diocese de Langres encontra na floresta uma bela jovem por quem se apaixona e com quem casa, embora ignore completamente a sua origem, e de quem tem muitos filhos. A dama banha-se frequentemente, não suportando que a vejam nua. A curiosidade de uma serva leva-a a olhar por um buraco na parede e a ver no banho uma serpente. Alertado pela serva, o marido surpreende a dama/serpente que desaparece para sempre.

A mesma história é retomada por Vincent de Beauvais (1200-1264) no Speculum Naturale (II,127) e surge depois num contexto geográfico diferente nos contadores do séc.XIII, como Gervais de Tilbury (Otia Imperialia, I, 15).

Um cavaleiro da província de Aix-en-Provence encontra uma jovem junto de um rio. Amam-se e o cavaleiro propõe-lhe casamento que ela aceita na condição de o marido não tentar nunca vê-la nua. O cavaleiro aceita e o casal vive em grande prosperidade. Mas um dia o marido esquece a sua promessa e tenta vê-la no banho. Imediatamente ela se transforma em serpente e desaparece na água.

O mito é quase idêntico em Gautier Map ( 1181-1193) ( De nugis curialum, IX) em que um personagem desposa uma bela desconhecida que lhe dá numerosa descendência. A mãe deste observa a sua ausência frecuente à missa onde evita a água benta e a comunhão. Um dia dá-se conta que a jovem esposa se banha sob a forma de um dragão e que só pode recuperar a sua forma humana após ter esfrangalhado um manto novo com os dentes. Com a ajuda do padre, o marido asperge a mulher de água benta. Imediatamente ela desaparece nos ares lançando um grito lancinante.

O motivo encontra-se igualmente nos lais em que a noiva feérica impõe ao futuro esposo um tabu: não revelar o segredo. Quando há transgressão a fada desaparece, arrastando, nalguns casos, o esposo no Outro Mundo. É o caso do lai de Lanval de Marie de France.

“Lanval, fet ele, beus amis,

Pur vus vienc jeo fors ma tere;

De luinz vus sui venue quere.

Se vus estes oruz e curteis,

Emperere ne quens ne reis

N’ot unkes tant joie ne bien;

Kar jo vus aim sur tute rien.”

“ Ami, fet ele, or vus chasti,

Si vos comant e si vos pri,

Ne vus descovrez a nul humme!

De ceo vus dirai ja la summe:

A tuz jurs m’avrïez perdue,

Se ceste amur esteit seüe;

Jamés ne me purriez veeir

Ne de mun cors seisine aveir.”

Il li respunt que bien tendra

Ceo que ele li comaundera.

Lanval promete guardar o segredo. No entanto perante a exigência da rainha que, tendo solicitado o seu amor, o insulta pela sua recusa, ele não se contém:

"Dame, dist il, de cel Messier

Ne sai jeo nïent aidier;

Mes jo aim, e si sui amis

Cele ke deit aver le pris

Sur tutes celes que jeo sai.

E une chose vus dirai,

Bien le sachez a descovert:

Une de celes ke la sert,

Tute la plus povre meschine,

Vaut meuz de vus, dame reïne,

De cors, de vis e de beauté,

D'enseignement e de bunté." (10)

E a amada nunca mais é vista a não ser para o salvar da condenação à morte pela sua presença e pelo seu saber. Ele segue-a a caminho de Avalon.

O esquema narrativo é simples: uma mulher sobrenatural ama um humano e segue-o ao mundo dos mortais impondo-lhe um interdito. A quebra do pacto provoca o desaparecimento daquela que deixa, no entanto, no mundo humano uma progenitura ilustre. A prosperidade do casal é ligada ao respeito desse interdito.

O carácter fundador de Melusina aparece no romance em prosa de Jean d'Arras (terminado c.1392), escrito a pedido de Jean de Berry, conde de Poitou e de Auvergne.

Elinas, rei de Escócia, desposa a fada Présine depois de ter prometido que não asistiria ao parto dos seus filhos. O interdito é transgredido e Présine desaparece com as suas três filhas ( Mélusine, Mélior e Palestrine, triade clássica das Deusas-Mães) que, tomando o partido da mãe, encerram o pai numa montanha. Mas Mélusine não aprova e castiga as filhas: Mélusine é condenada a transformar-se em serpente todos os sábados. Se um humano casar com ela, continuará humana; mas se descubrir o seu segredo, regressará definitivamente à forma de serpente. Casa com Raimondin (com a condição de não a ver aos sábados) e dá-lhe dez filhos, todos marcados de estranhas disformidades, mas que serão todos reis graças a casamentos ilustres ( o mais velho, desposando a rainha de Chipre, será o antepassado de Pierre de Lusignan). Mas um dia, traindo a promessa, Raimondin surpreende Mélusine um sábado no banho. A partir da cintura ela tem a forma de uma serpente. O casamento rompe-se e Mélusine foge sob a forma de uma serpente alada.

Mas apesar da evocação, pelo Cristianismo, de Eva e da Serpente do Génesis, o carácter ofidiano de Melusina não resulta de uma influência bíblica.

Testemunha antes de uma mitologia arcaica da serpente, criatura ctónica iniciada ao mistério do conhecimento e do devir, que faz de Melusina uma anunciadora do destino. Concepção pagã que o Cristianismo recusa. Daí o trabalho destrutivo que realiza sobre o velho mito pré-cristão da Deusa-Mãe.

Para Jacques le Goff (11) Mélusine representa a caução imaginária de uma grande família. Legitima a supremacia de uma linhagem e as suas pretensões hegemónicas. Reconhecida como a antepassada mítica dos Lusignan, representa, de maneira antropomórfica, a soberania da terra.

A apropriação genealógica das "damas da floresta" e a sua inserção na memória linhagística das familias senhoriais do País de Gales, Normandia, Marne e Provença, recolhida na literatura dos séculos XII e XIII implica, portanto, uma tentativa de vincular essas familias aos poderes benéficos, fertilizantes e regenerativos das fadas. Reconhecendo invulgares qualidades de coragem e ousadia, são elas que concedem a cavaleiros eleitos o mais alto dom: senhorio e descendência que perpetue o seu domínio. Um senhorio independente, predestinado por seres imortais, de uma ancestralidade anterior à cristã.

Esta apropriação carcteriza as linhagens recentes, tomadas à custa da progressiva senhorialização de determinadas regiões, que não podia competir com a memória genealógica de reis e príncipes, detentores leigos do saber escrito, de ascendência milenária e função sacralizada pelo clero e impregnada de maravilloso cristão. A estes se opunham os direitos estabelecidos sobre um território que de estéril, marginal e oculto se desvendou e prosperou na descendência fadada de um herói (12).

Entradas no património genealógico da nobreza medieval, as lendas de formação de tipo melusiniano vão sendo sucesivamente retomadas como origem de linhagens cuja construção da memória familiar obedece à necessidade de acentuar o carácter insólito do seu rápido sucesso e a profunda ligação a um determinado espaço geo-económico cuja posse se pretende associar a direitos de conquista, à margem das instituições monárquicas existentes.

( Mas este processo vai ser depois utilizado contra os seus detentores. Explorado por clérigos ao serviço das cortes régias e principescas, o relato fundacional melusiniano de uma linhagem vai servir para explicar a sua decadência com base na denúncia de um pacto diabólico que, fora da protecção divina, é responsavel pela sua queda e fim trágico.) (13)

Segundo Harf-Lancner, a identificação da fada-demónio desenvolve-se no séc. XIII e é responsavel pela adopção de variantes significativas ao conto melusiniano clássico: a natureza da fada revela-se quer pela sua recusa em assistir à missa dominical (a da hóstia) quer pela natureza do interdito imposto ao esposo, o qual consiste na proibição de este se benzer ou praticar actos litúrgicos próprios do cristão (14).

Associada ao demónio pelos clérigos, a fada podia contaminar a memória de uma família, servindo de pretexto para a sua condenação político-social. As crónicas inglesas do séc.XIII e XV, atribuindo a Leonor de Aquitânia e a seu marido Henrique II Plantageneta uma origem melusiniana, nela encontram a razão dos grandes conflitos e discórdias protagonizados pela disnastia inglesa (por ex., o assassinato sacrílego de Tomás Becket pelo rei) ou o fim trágico de Balduino IX, conde de Flandres, castigado pelo seu casamento com uma fada demoníaca.

Repudiadas pela cultura erudita como vestígios dos tempos bárbaros, renegadas pelas genealogias nobiliárquicas europeias (passada a época das monarquias feudais), satanizadas pelos clérigos, as fadas regressam à cultura folclórica. No entanto, isto não impede que reapareçam na literatura escrita, como já vimos, invocando os seus direitos aristocráticos e a sua conotação com a prosperidade e a abundância.

Os Haros da Biscaia

Como é o caso na Península Ibérica, onde a dispensadora da abundância surge no Livro de Linhagens do conde D. Pedro de Barcelos, composto entre 1340-44, sob o nome de Dama Pé de Cabra. E a antepassada mítica da linhagem dos Haros da Biscaia.

A filiação da Dama Pé de Cabra na literatura melusiniana já tinha sido apontada por J. Mattoso (15).

Um conjunto de narrativas se desenvolvem no sentido de alicerçar esta linhagem no sobrenatural, a través de episódios como o do Cavalo Pardalo, animal fadado, ligado à actividade guerreira, veloz, forte, que não necessita de alimento e pertence innegablemente ao mundo das forças vitais e regeneradoras.

Uma vez assumida pelos Haros míticos a soberania de um senhorio, domadas e apropriadas as forças da naturaza, adquirida a força guerreira, a linhagem incorpora todo um passado fundador que durará enguanto durarem os dons oferecidos pela dama.

Constituindo uma das mais poderosas famílias nobres castelhanas, os Haros têm representantes da linhagem na casa real portuguesa: D. Mécia Lopes de Haro, mulher de Sancho II, é filha de Lopo Dias, Cabeça Brava.

Maria Dias de Haro, casada com o poderoso senhor de Lara, que será reconhecida senhora legítima do senhorio, após a anexão do território da Biscaia por Afonso XI que desenvolvera uma política decisivamente centralizadora mas necesitava agora do apoio político da linhagem dos Laras, é filha de Isabel Afonso de Portugal, neta de D. Afonso III de Portugal e de João Anes o Torto ( que o rei mandara assassinar a pretexto de uma antiga aliança com o antigo regente julgada ameaçadora para os interesses do jovem rei).

Toda a Lenda da Independência da Biscaia(16) aponta para uma mesma finalidade: a de apresentar o senhorio como não sujeito à coroa de Castela. Num momento marcado por fortes tensões entre os senhores de Haro e o rei castelhano (i.é., entre 1201-1205, no período dos confrontos travados entre Diogo Lopes e Afonso VIII de Castela). Narrativas e dados genealógicos apontam para uma mesma leitura: a de apresentar a origem dos Haros como anterior à dinastia real castelhana, inclusivamente na participação de alguns dos seus membros nas campanhas militares contra as hostes islâmicas chefiadas por Almançor.

Certamente relacionada com a independência da Biscaia, terá sido composta a Lenda da Dama Pé de Cabra. Tendo como protagonista um primitivo Diogo Lopes, homónimo do senhor biscainho de inícios do séc.XIII, e preocupada em explicar como da transgressão de um pacto ( a violação do interdito imposto ao heroi pela fada) resultou a grandeza da casa do vassalo rebelde, legitimava afinal o comportamento de Diogo Lopes histórico.

Deste é conhecido o bom acolhimento dado a jograis e trovadores, dos quais é objecto de louvores. Raimon Vidal de Besalù, como Aimeric de Peguilhan vêem na sua morte o fim de ume época caracterizada pela generosidade dos senhores, o tempo em que o mérito e a liberdade eram os instigadores máximos da criação literária.

É o topos do planh, a confrontar com o pranto de Joam, jograr morador em Leom, à morte de D. Dinis

Os namorados que trobam d’amor

todos deviam gram doo fazer

e nom tomar em si nem uu prazer,

por perderem tam boo senhor

como el rei dom Denis de Portugal,

de que nom pode dizer nem uu mal

homem, pero seja posfazador.

Os trobadores que pois ficarom

eno seu regno e no de Leom,

no de Castela, <e> no d’Aragom,

nunca pois de sa morte trobarom.

E dos jograres vos quero dizer:

nunca cobrarom panos nem aver

e o seu bem muito desejarom. (17)

que faz coincidir a morte de D. Dinis com a morte da poesia galego-portuguesa.

Nos finais do séc. XII, princípios do séc. XIII vivia-se um clima favorável ao desenvolvimento de uma literatura laica e cortês a través da qual circulavam temas e motivos provenientes de outras áreas culturais. Era constante a vinda à Península de jograis provençais, os trovadores encontraram acolhimento após o desmantelamento das cortes senhoriais occitânicas provocado pelas cruzadas contra os cátaros. E, dado considerável, desde 1170 era rainha de Castela uma filha de Leonor de Aquitânia e Henrique II Plantageneta, tanbém chamada Leonor, esposa de Afonso VIII, cujo cortejo nupcial era acompanhado por cavaleiros ingleses e franceses (no seu séquito vinham trovadores de mérito e toda uma pleiade de jograis brilhantes) (18) que favorecera certamente na corte o gosto pela temática de Bretanha e pela lírica narrativa dos lais. O que poderia explicar a filiação literária das lendas fundadoras dos Haros no ciclo dos contos melusinianos compostos nessa época em várias regiões do Ocidente feudal.

A própria Biscaia montanhosa, à beira do oceano, habitada por gentes que falavam uma língua estranha e única e prestavam culto a árvores e a divinidades silvestres e aquáticas, fornece o cenário ideal para um episódio sobrenatural. O protector dos bosques, Busgodu, é descrito como tendo o Corpo peludo e pernas terminadas como as das cabras, perseguidor de caçadores, raptor de mulheres devido a uma sensualidade selvagem (v. Merlin e o gigante do Mont Saint Michel) (19).

O autor da Lenda Pé de Cabra conhecia certamente os temas e motivos da literatura feérica assim como dos costumes e tradições folclóricas da Biscaia; e também das questões político-feudais em que o senhor de Haro estava envolvido. Pensou-se no trovador Rigaut de Barbezilh cuja vida conta que depois da morte da sua dama "s'en anet en Espaigna, al baron Don Diego; e lai visquet e lai mori". Mas Rigaut morre por volta de 1163. A lenda teria sido refundida entre 1201-1202. A versão que nos chegou poderia ser de Rodrigo Dias de Cameros, genro de D. Diego, protagonista de questões feudais semelhantes, também protector de trovadores e jograis provençais e que compôs poemas em galaico-português.

E a opinião de Luis Krus ( op. cit., p.28, n.65) (20).

Dado o seu perfil político e literário seria verosímil autor ou refundidor das lendas fundadoras da linhagem a que se unira por casamento.

De qualquer modo os trovadores e jograis que desempenhavam um papel socio-cultural imprescindível, criadores de imagens de fama e prestígio, eram indispensáveis à política dos grandes senhores feudais. E D. Diego foi um protector de trovadores e jograis, como já vimos. Esta protecção continuou com o seu filho Lopo Dias, à morte do qual o trovador galego-português Pero da Ponte dedica um pranto elogioso.

A lenda, que fora conservada no património simbólico da linhagem, é retomada no séc. XIV, num contexto totalmente diferente, marcado pela crise da familia senhorial e pelo aumento das tensões entre suzerano e vassalo, entre senhor e fidalgos. A falta de varonia dos senhores de Biscaia, as várias usurpações contrárias aos interesses da nobreza biscainha que culminam com o assassinato de João Anes, o Torto e no asumir do governo da Biscaia pelo soberano castellano, adepto da centralização monárquica, revelam a decadencia do poder da linhagem dirigente do senhorio.

A Dama do Pé de Cabra manifestava a nostalgia pelos antigos senhores, o desejo de um povo eleito regenerador, um nobre associado aos Haros, capaz de enfrentar o monarca castelhano: o marido de Maria Dias de Haro, o senhor de Lara que, possuindo diversos senhorios dispersos pelo reino era um senhor mais aceitável para a fidalguia biscaínha que o rei centralizador, pois não punha em perigo as suas posições regionais porque lhe interessava o seu contributo militar para reforçar o seu prestígio de grande senhor castelhano. Podemos ver, como Luis Krus, na história da fada metamorfoseada um manifesto político da nobreza biscaínha a favor dos Laras a quem se oferecia um território marcado por uma vida política que decorria em assembleias abertas, reunidas sob a sombra tutelar de vetustos carvalhos, símbolos eles próprios de pactos senhoriais antigos.

Esta política teria em parte a sua consagração nos costumes que, em 1342, o senhor de Lara reconhece aos bicaínhos reunidos em assembleia geral de senhorio.

O Caderno de João Nunes de Lara significaria o reconhecimento de uma nova técnica na rivalidade com a administração e o poder régios: o documento e o arquivo, substitiundo-se à prática do direito oral anteriormente em vigor. Sendo também a memória do senhorio (21).

É natural que a versão das lendas fundacionais dos Haros conservada no Livro de Linhagens, em proveito dos Laras, fixada entre 1334 e 1342, tenha feito parte de uma compilação genealógica mais vasta, ligada a uma historiografia nobiliárquica que evocasse o prestígio e ancestralidade da velha nobreza (que a atmosfera criada pela batalla do Salado favorecia), no momento da sua progresiva decadencia e incapacidade de travar o movimento da centralização monárquica.

Seria através dessa compilação genealógica que as narrativas sobre a Biscaia teriam cegado ao conde de Barcelos que as podia ter recolhido junto do seu amigo João Nunes de Lara durante uma viagem que fez a Castela em 1340, após a batalla do Salado, altura em que esteve presente nas cortes castelhanas de Arena, sendo então recebido por Afonso XI.

É a hipótese de L.F. Lindley Cintra (22). Mas, segundo Luis Krus, não é de excluir um conhecimento anterior das lendas, dado o seu parentesco com os senhores de Haro ( era primo por afinidade de João Anes, o Torto) nem a possibilidade de ter recebido, entre 1334 e 1340 (antes da sua viagem a Castela) um manuscrito enviado por João Nunes de Lara que já contivesse a referida compilação genealógica feita a favor dos Laras.

Tratava-se para estes de se apresentarem como os sobreviventes dos tempos da fundação do reino, "ante que el-rei houvesse Castela"(23). Tal como o senhor de Berry em relação aos Lusignan, tratava-se de incorporar, revitalizando-as, as tradições mítico-heroicas de linhagens.

Ao conde de Barcelos, além da memória exaustiva dos nobres e puros, interessavam as lendas topográficas, o respeito pelo contrato vassálico, num tempo por ele visto de mentira e de falsas amizades, de intrigas palacianas, revoleas e traições, da ascensão política do dinheiro perante a impassibilidade cúmplice da realeza. Num tempo em tudo contrário à honra e heroicidade da antiga nobreza.

Ao contrário dos anteriores livros genealógicos medievais portugueses conservados, Livro Velho de Linhagens e Livro do Deão, que apenas abrangem as principias linhagens nobiliárquicqs galego-portuguesas, não recuñado além do reinado de Ramiro II das Astúrias, o livro do conde D. Pedro procura remontar, utilizando como fonte o Libro de las Generaciones ( importante refundição do Liber Regum, crónica genealógica da história universal e hispânica, redigida em Navarra antes de 1211) às origens bíblicas. Assim, as genealogias da nobreza contemporânea do conde D.Pedro são apresentadas como descendentes, ou na sequência, das linhagens bíblicas, imperiais e régias. É a opinião de Luis Krus (op. cit., p.33, n.83).

Dona Marinha

Quanto a Dona Marinha constatamos, como já notara José Mattoso (Narrativas dos Livros de Linhagens, p. 66, reformuladas em Obras completas, vol.5) “o interdito desapareceu”.

Um bom cavaleiro, caçador e monteiro, acompanhado por três escudeiros, achou um dia uma bela mulher que dormia junto ao mar. Quando os ouviu quis acolher-se ao mar mas eles chegaram a tempo de a “colher” o cavaleiro levou-a num cavalo para sua casa. Fê-la baptizar e teve dela seus filhos entre os quais D. Joham Froiaz Marinho. Porém ela não falava apesar do amor dos seus. Só falou quando o cavaleiro a assustou fingindo lançar à fogueira o filho querido de ambos. Querendo gritar lançou um pedaço de carne pela boca e a partir de então falou. E o cavaleiro desposou-a.

Segundo Luis Krus a estoria de Dona Marinha resulta da adaptação galega de um conto de tema melusiniano (J. Le Goff, E. Ladurie, 1971; C. Lecouteux, 1978, 1982; L.Harf-Lancner, 1984), sendo a chamada Lenda da Dama do pé de Cabra, um texto composto em intenção dos Haros da Biscaia entre 1201 e 1205 (L. Krus, 1985), o primeiro caso conhecido de utilização peninsular desse tipo de narrativa para a elaboração do relato fundacional de uma linhagem nobiliárquica peninsular. De uma forma geral, a lenda galega revela-se muito menos elaborada, preocupando-se, sobretudo, em evidenciar como o primeiro dos Marinhos conseguiu a total sujeição e captação linhagística de um ser sobrenatural que, na história dos Haros, acabara por se "rebelar" contra o seu esposo e senhor, parecendo, nesse aspecto, que a lenda de Dona Marinha não só teve em conta a narrativa da Dama do Pé de Cabra, como desejava atribuir aos Marinhos uma força de domínio sobre a natureza superior à que os Haros reivindicavam através do relato fundacional da sua linhagem. Por isso talvez se possa identificar o autor da estoria com Paio Gomes Charinho, almirante de Castela entre 1284 e 1286. Galego e descendente, por parte da mãe, dos Marinhos, frequentou as cortes de Afonso X e Sancho IV, onde, para além de feitos guerreiros, se celebrizou como trovador. Tendo perdido o favor de Sancho IV e regressado à corte em 1288. Teria sido a través dos Marinhos portugueses que o Livro de Linhagens conheceu a estoria de Dona Marinha.

Isabel Cardigos em “Dona Marinha: uma figura Melusínica?” (Universidade do Algarve) aponta a sua afinidade com a “Melusina siciliana”, sua possível fonte, apesar das diferenças que a separam do texto português: não é raptada contra vontade, não fala por opção e não por impedimento físico e abandona o marido quando obrigada a falar.

Mas outro conto, relatado por um judeu marroquino e registado nos “Israel Folklore Archives” de Haifa, menciona uma rainha emudecida de saudades que só começa a falar sob o medo, saindo-lhe da garganta um fio de erva, como um pedaço de carne saira da de Dona Marinha...Como “Julnar do Mar” das 1001 Noites.

Isabel Cardigos não exclui a influência árabe que se faz sentir na Sicília ao longo de toda a Idade Média a que junta o testemunho da tradição oral de Marrocos. Continua assim interrogada a verdadeira origem da nossa Dona Marinha.

Referência electrónica:

NUNES, Irene Freire - “Mulheres Sobrenaturais no Nobiliário Português - a Dama Pé de Cabra e a Dona Marinha”. Medievalista [Em linha]. Nº8, (Julho de 2010). [ Links ]

Notas

1V. Luis Krus, A Morte das Fadas: a lenda genealógica da Dama do Pé de Cabra (comun. apresentada no colóquio A Mulher na Sociedade Portuguesa, Coimbra, Maio, 1985; publicada em Ler História, N°6, 1985).

2A ideologia cavaleiresca foi estudada por Georges Duby, Les trois ordres et l’imaginaire du féodalisme, Paris, Gallimard, 1978).

3V. Luis Krus, op. cit.

4L. Harf-Lancner, Les fées au Moyen Age. Morgane et Melusine. La naissance des fées, Paris, Champion, 1984.

5 L. Harf-Lancner, Morgane et Mélusine. Les fées dans la littérature française du Moyen Age ( tese, dir. Dufournet, Paris III, 1982, p. 5).

6 ed. C.P.Caspari, Christiana, 1883, citada por L.H.-Lancner, Morgane et Mélusine, p.20-21, n.13).

7Etymologiarum VIII,93, ed. Bilingue preparada por Jose Oroz Reta y Manuel-A. Marcos Casquero, introducción general por Manuel C. Diaz y Diaz.

8V. Harf-Lancner, op. cit., p.627, n.4.

9O ciclo melusiniano construido em torno da figura de Godefroi de Bouillon foi estudado por Claude Lecouteux, Mélusine et le Chevalier au Cygne, Paris, Payot, 1978 (V. Luis Krus, op. cit., P.12).

10 V. La Grande Déesse Mère, Shahrukh Husai, Paris, Albin Michel, 1998.

11Marie de France. Lais, édition bilingue de par Philippe Walter, Paris, Gallimard, 2000.

12Jacques le Goff, Annales E.S.C., n° spécial: Histoire et Structure, mai-août 1971, p.597.

13 V. Luis Krus, op. cit., p.11

14 V. Luis Krus, op. cit., p.12.

15 V. Harf-Lancner, Les Fées au Moyen Age, p.390-409.

16 V. José Mattoso, “As fontes do Nobiliário do Conde D. Pedro”, in A Historiografia antes de Herculano, Lisboa, Imprensa Nacional, 1983, 65-71, e foi depois reformulada nas suas Obras Completas, 2001, vol.V, 215.

17 J. Mattoso, Narrativas dos Livros de Linhagens, Lisboa, Imprensa Nacional, 1983, 65-71, reformuladas nas suas Obras Completas, 2001, vol.V, 183-217.

18 V. A Lírica Galego-Portuguesa, Elsa Gonçalves e Maria Ana Ramos, Lisboa, Editorial Comunicação, 2ª ed., 1985.

19 V. Ramón Menéndez Pidal, Poesía Juglaresca y Juglares, 6ª edición,

20 V. Caro Baroja, "Culto a los arboles y mitos e divinidades arboreas", in Ritos y mitos equívocos, Madrid, Istmo, 1974, 339-351).

21 V. Carolina Michaëlis, Cancioneiro de Ajuda, II, Halle, 1904, 574- 579.Colleción Austral, Espasa-Calpe, Madrid, 1969.

22 V. Luis Krus, op. cit., p.24. Cita p. 30 o seu trabalho “Escrita e poder: as inquirições de Afonso III”, in Estudos Medievais, Porto, 1981, 59-79.

23 V. Crónica Geral de Espanha de 1344, I, CLXIII-CLXV.

Recebido: 01 de Julho de 2010; Aceito: 01 de Julho de 2010

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