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Medievalista

versión On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.8 Lisboa dic. 2010  Epub 31-Dic-2010

https://doi.org/10.4000/medievalista.466 

Recensão

Recensão: Anselmo e a Astúcia da Razão.

Helena Costa1 

1 Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal.

COSTA MACEDO, J. M.. Anselmo e a Astúcia da Razão. ., Porto Alegre: Est Edições, 2009. 208 ppp.


A obra Anselmo e a Astúcia da Razão1 é uma edição actualizada de um dos trabalhos que integravam as “Provas de aptidão científica e capacidade pedagógica” que J. M. Costa Macedo, antigo professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, defendeu em 1995 nesta mesma Universidade. Nela procura delinear com a maior exactidão possível a importância da autonomia da razão na obra de S. Anselmo. Partindo das obras Cur Deus Homo, Monologion e Proslogion, cujo ‘argumento ontológico’ será a base para se perceber os limites da razão e a sua abertura a um absoluto, Costa Macedo, sempre apoiado dos textos originais em latim, pretende mostrar como a razão emerge e se torna autónoma no pensamento de S. Anselmo. Sendo Anselmo um autor subordinado à fé e tendo, quase sempre, o seu pensamento sido apresentado como um fides quarens intelectum, Costa Macedo vai apresentar a posição anselmiana virada para uma razão que tenta erguer-se para lá do humano, como uma exaltação que supõe uma concepção aberta e optimista, racionalmente virada para a fé.

A Primeira Parte da obra intitula-se “Razão e Fé Fora do Proslogion”. Onde o autor pretende mostrar que em toda a obra de S. Anselmo a razão se destaca e se autonomiza. As obras que mostram isto mesmo, que tratam as questões sola ratione prescindindo da Revelação, são o Cur Deus Homo e o Monologion. Costa Macedo trabalha sobre aquilo que Anselmo chamará de razões de fé, rationes fidei, para explicar as coincidências entre fé e razão e mostrar que existem deduções racionais que por coincidirem com a fé são pro fide (Anselmo as chamará de rationes fidei) que não passam nem pela fé nem pela Revelação, mas são razões que partem da própria razão, isto é, existe uma faculdade humana (ratio), própria da mente racional que devidamente orientada encontra por via natural parte do que foi apresentado por via sobrenatural (pela via da Revelação). Com isto S. Anselmo estabelece um princípio de orientação pessoal que vai mostrar ser possível chegar por via racional a conclusões que contrariem princípios de fé. (pp. 20 -22). Esta sola ratione vai tratar da existência de Deus, da autonomia de Deus e a subordinação a Ele pelas suas criaturas criadas a partir do nada, de Deus como cognoscível, da predicação dos atributos e a sua concepção, e da abordagem das pessoas da trindade.

Tendo sempre como apoio as duas obras de Anselmo e após provar através da razão a existência de Deus e dos seus atributos e, ainda, definido o homem como imagem de Deus destinada a admira-lo, Costa Macedo vai apresentar a razão com o “dever” de encontrar a fé, de “encontrar a urgência de ter fé”. Estabelece uma via razão-fé que define o carácter desta ratio como uma condição necessária para a realização do amor e da esperança, realização estabelecida pela razão, mas justificada racionalmente pela fé. A fé apresentar-se-á como uma consequência racional, como uma oposição entre ‘fé morta’ e ‘fé viva’, uma fides rationalis. (pp. 54-58)

A Segunda Parte tem o título de “Fé e Razão no Proslogion - Liber Apologeticus”. Aqui a razão é perspectivada de maneira diferente. Costa Macedo divide esta segunda parte da sua obra em quatro capítulos. O primeiro capítulo, “Especificidade do Discurso Racional no Proslogion”, baseia-se na análise do argumento e nas suas derivações a partir da fé. O autor pretende mostrar que o Proslogion é a continuação do Monologion e ressalva que embora o primeiro tenha uma escrita mais fideísta a estrutura racional do Proslogion está salvaguardada. Apresenta a novidade do desejo (desideo) e mostra como S. Anselmo introduziu o argumento racional numa dinâmica de desejo que traz as dificuldades que é erguer-se à contemplação de Deus e que traz também os inconvenientes desse mesmo desejo, quando se perde consciência da distância e não se reconhece o desejo autentico. “À razão será dado descortinar os caminhos do desejo simultaneamente ao caminhar dedutivo sobre a natureza de Deus.” No que concerne à metodologia, o desejo passa a ocupar o lugar da fé (p. 67). O segundo capítulo começa a ser introduzido por Costa Macedo quando analisa as objecções ao argumento ontológico, “aliquid quo majus cogitari nequit”, que pretendem ver, no texto anselmiano, uma subordinação à fé (sendo elas: o lugar de encontro da forma aliquid quo nihil majus cogitari potest, pp. 81-89; o apelo à fé por Gaunilo logo no capítulo 1 do Liber Apologeticus, pp. 89-91; referência à doutrina de S. Paulo acerca do nosso conhecimento de Deus a partir das coisas visíveis, igualmente no Liber Apologeticus, p. 92). Procurando estabelecer uma tese da racionalidade metodológica total em que coloca o Proslogion ao mesmo nível das obras sola ratione, o autor analisa o problema da origem da ‘ideia’ do argumento. Sempre com uma perspectiva racionalista vai responder à pergunta “Qual a origem da noção aliquid quo majus cogitari nequit? Inata ou adquirida?” Entre as “disputas” de Anselmo com Gaunilo acerca da consistência do argumento, Costa Macedo vai responder que aliquid quo majus cogitari nequit (“um ser em comparação ao qual não se pode conceber outro maior”) é adquirido quer como uma definição encontrada pela crença, quer como uma frase que se usa perante alguém que negue a existência de Deus, pois dize-la significa que quem a ouve capta o sentido e percebe o seu significado (pp. 93-97). Surgirá a hipótese destas duas noções apontarem para um não inatismo, o que seria algo não explícito em S. Anselmo e talvez até anterior a ele, mas tal não é totalmente explicitado (pp. 97-99), pelo que, por outro lado, Costa Macedo, a partir duma conclusão vista através do criacionismo, afirma que o argumento pode ser entendido como inato (pp. 99-106). Recorrendo ao Monologion, com base na relação mente-realidade o sentido do argumento pode adquirir-se também activamente, de acordo com um dinamismo que resulta racionalmente da relação básica entre mente-realidade (pp. 107-111). O terceiro capítulo apresenta a interpretação racional do Livro Apologético, é um estudo do método da construção ou da criação desta obra, ou um estudo da própria estrutura dos raciocínios que a compõem (trata da arquitectónica, estuda o argumento que leva à radicalidade com que todos os argumentos do Proslogion devem ser lidos, interpreta a problemática dos argumentos ‘ent’ (acerca da existência) e trata ainda a problemática in re para in intellectu, afirmando que Anselmo usa as provas da existência de Deus para provar o argumento como existente no intelecto, esse in intellectu). O último capítulo, “Majus”, procura mostrar que tipo de teísmo podemos encontrar a partir do Proslogion e do Liber Apologeticus. Costa Macedo vai dizer (pp. 173-179) ser o teísmo e o ateísmo radicais duas fortes possibilidades no pensamento anselmiano, mas esta será uma temática só trabalhada após responder às suas duas questões: “O argumento prova algo ou não, dentro da epistemologia de S. Anselmo? E se prova, que prova?” (pp. 153-162 e 183-190) e “Com que legitimidade se passa do puro existir já provado para os atributos em geral?” (pp. 163-172). De referir ainda que, segundo o autor, S. Anselmo ao prosseguir na análise do argumento, quando afirma “qua penitus nihil est melius”, já supõe provada a existência da ‘Suma Essência’. Veremos também que será entre a comparação dos termos ‘majus’ e ‘melius’ que irá surgir a pertinente questão sobre os atributos entitativos.

Costa Macedo volta a explicar, no final da sua obra, que o seu primordial objectivo foi mostrar, tal como S. Anselmo com o seu argumento, que não se pode desperdiçar em nada o contributo da razão. Afirma também que S. Anselmo se demarca de todo o pensamento anterior com a criação do argumento: “O Proslogion, quanto ao argumento da existência, quanto à pretensão de provar com o mesmo argumento essa existência e atributos e, finalmente, quanto à desejada auto-suficiência desse mesmo argumento, ultrapassa todas as linhas anteriores de pensamento.” (p. 181) Talvez por isto mesmo, Costa Macedo volte a evidenciar a importância deste mesmo argumento. Começa por mostrar a sua validade e “defende” o sentido do próprio argumento das críticas que se lhe seguiram (por exemplo: Gaunilo e S. Tomás de Aquino) e explica que seja qual for a validade de aliquid quo nihil majus cogitare nequit, a grande consequência foi autonomizar a razão da fé. Esta autonomização da razão permite pensar o nascimento duma ontologia que pode significar um “desvelamento” do Deus da filosofia e um caminhar para a “noção de Ser sola ratione”. Esta autonomia da razão vem também redescobrir o homem como natura rationalis, trazendo um novo respeito pelo corpo e pelos sentidos, lembrando que o homem é imagem de Deus e criando um desejo de se assemelhar a Ele e de se subordinar à Sua vontade.

Assistimos então, pela obra Anselmo e a Astúcia da Razão, a uma reconstituição do pensamento anselmiano por uma via racionalista. Somos levados ao encontro dum conhecimento sola ratione onde a procura de algo superior à própria a razão a faz sobressair. Conhecemos a autonomia da razão perante a fé e percebemos uma vontade de percorrer os mesmos caminhos rumo ao Absoluto. Com a fundamentação do argumento aliquid quo nihil majus cogitare nequit percebemos que esse mesmo percurso está descrito na própria análise de S. Anselmo. Posto isto, estamos em condições de afirmar que a obra de J. M. Costa Macedo é uma análise minuciosa do pensamento anselmiano, focado numa perspectiva racionalista, mas que é, principalmente, uma homenagem à razão em si.

Referência

COSTA MACEDO, J. M. - Anselmo e a Astúcia da Razão. Porto Alegre: Est Edições, 2009. 208 pp [ Links ]

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