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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.8 Lisboa dez. 2010  Epub 31-Dez-2010

https://doi.org/10.4000/medievalista.470 

Apresentação de Tese

Apresentação de Tese: O limiar da tradição no moçarabismo conimbricense: os “Anais de Lorvão” e a memória monástica do território de fronteira (séc. IX-XII).

Mário de Gouveia1 

1 Bolseiro de Investigação Científica da FCT/MCTES, ao abrigo do Programa Operacional «Ciência, Tecnologia, Inovação» (POCTI - Formar e Qualificar); Membro do IEM, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa.Portugal


Advertência prévia

Apresenta-se seguidamente a lição proferida pelo signatário no âmbito da prestação de provas públicas para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em História, na Área de Especialização em História Medieval, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

A apresentação da lição, seguida da arguência da tese, teve lugar a 3 de Junho de 2008, perante júri constituído pelos Professores Doutor Bernardo Vasconcelos e Sousa, Professor Associado da FCSH-UNL (Presidente); Doutor Luís Carlos Amaral, Professor Auxiliar da FL-UP (Arguente); Doutor José Mattoso, Professor Catedrático Aposentado da FCSH-UNL (Orientador); Doutor Manuel Justino Maciel, Professor Associado da FCSH-UNL (Vogal); e Doutora Maria de Lurdes Rosa, Professora Auxiliar da FCSH-UNL (Vogal).

Resumo

Na produção memorialística com origens na Hispânia medieval cristã, de que os anais redigidos nos séculos XI e XII nos mosteiros de St.º Tirso de Riba de Ave, S. Salvador de Grijó e St.ª Cruz de Coimbra constituem apenas alguns exemplos, os Anais de S. Mamede de Lorvão não ocupam um lugar secundário1.

Para que possamos compreender os anais laurbanenses como expressão de uma cultura letrada florescente num contexto de profundas transformações religiosas, devemos lê-lo e analisá-lo à luz da conjuntura que assistiu à fixação do texto no respectivo suporte material, o verso do fólio de guarda do Livro dos testamentos - também conhecido como Liber testamentorum coenobii laurbanensis, a sua designação latina original -, concebido como códice diplomático no quadro da restauração da autonomia institucional do mosteiro de S. Mamede de Lorvão, em 1116, em circunstâncias relacionadas com a construção de um imaginário monástico moçárabe sobre o passado da fronteira ocidental do reino de Astúrias-Leão, sobretudo desde 878, data da presúria de Coimbra por Hermenegildo Guterres, presor e repovoador do Entre-Douro-e-Mondego no tempo de Afonso III (866-910) e ascendente do ramo principal da família condal conimbricense.

Segundo uma lógica comemorativa característica das fontes da época, a leitura monástica do passado hispânico traduziu-se na produção e fixação, por volta de 1118, de um escrito composto por seis ementas analísticas relativas ao período decorrente de 866 a 1110 ([1109]), antecedidas de uma listagem contendo nomes de três reis leoneses - Ramiro II (931-951), Sancho I (956-966) e Bermudo II (982-999), na secção que designámos como Nomina regum ([NR]) -, tal como de outra alusiva a dez abades que tiveram a seu cargo o governo da congregação religiosa, de Justo a Eusébio, possivelmente desde as últimas décadas do século IX às primeiras do XII, na secção que designámos como Nomina abbatum ([NA]). A elaboração dos anais parece ter sido tributária da consulta dos instrumentos transcritos e reunidos, sob a forma de cópias, no códice diplomático. Este facto, ao contrário do sucedido com os restantes anais com origem na fronteira ocidental do reino, condicionou a integração do texto nos circuitos de transmissão da historiografia portucalense nos séculos XII e XIII, reveladora de uma consciência de identidade ligada à actividade cultural em desenvolvimento nos scriptoria dos mosteiros de St.ª Cruz de Coimbra e St.ª Maria de Alcobaça.

Desde a sua fixação no suporte material que o conservou até à actualidade, os anais constituem um relato que acompanha o acto de produção do códice diplomático - complementar testemunho da historiografia patrimonial do mosteiro - e no qual se reúnem os títulos jurídicos com um valor probatório dos direitos adquiridos pela congregação religiosa em termos dominiais e senhoriais. É por este motivo que o texto possui um carácter institucional, enquadrado numa dinâmica de apropriação e instrumentalização de efemérides relacionadas predominantemente com o passado régio e condal da fronteira ocidental do reino, fundadora da sua própria autonomia política. Nestas circunstâncias, os anais resgatam a memória de um passado distante e que não tem actualidade social no momento em que são fixados no respectivo suporte material. O predomínio de notícias relativas ao século IX - como a morte de Ordonho I das Astúrias e a unção de Afonso III como rei no dia de Pentecostes, em 866 ([1]); as presúrias de Portucale e de Coimbra por Vímara Peres e o conde Hermenegildo [Guterres], em 868 ([2]) e 878 ([4]); ou a deslocação de Afonso III a Bama e a morte do presor de Portucale, em 873, seis dias após a chegada do monarca ([3]) - configura um quadro de sustentação política da narrativa relacionado com o momento em que, sob a protecção régia e condal, se assiste à fundação da primeira congregação religiosa, na observância da normativa consignada no codex regularum e, sob a inspiração do monaquismo frutuosiano, segundo um espírito de estreita vinculação dos monges a uma hierarquia religiosa encimada pelo abade, pai espiritual da comunidade. O texto não nos remete para nenhum acontecimento ocorrido durante o século X, lacuna que é colmatada pelos títulos jurídicos reunidos no Livro dos testamentos, maioritariamente datados ou datáveis criticamente desta época, os quais exprimem a dinâmica que a congregação religiosa manteve com diversos reis leoneses, entre os quais Ordonho II (914-924), Ramiro II (931-951), Ordonho III (951-956), Sancho I (956-966), Ramiro III (966-985) e Bermudo II (982-999), que, a par de outras figuras da hierarquia política e eclesiástica coeva, como os condes conimbricenses e portucalenses, tal como os bispos de Coimbra, Iria, Lamego, Leão, Lugo, Mondonhedo-Dume, Porto, Tui, Viseu e Zamora, acompanharam a formação do património comunitário. Não obstante, o texto identifica a transição do século XI para o XII com a refundação cristã de Coimbra, ocorrida no reinado de Fernando I, e o óbito do seu filho e sucessor, Afonso VI, em cujo governo a congregação religiosa é temporariamente extinta, e a igreja monástica, integrada no padroado da Sé de Coimbra, alegadamente para cobrir as necessidades materiais do bispo Gonçalo Pais e da canónica de St.ª Maria.

Ao longo deste trabalho, procurámos compreender os anais numa dupla dimensão. Por um lado, procedemos à caracterização do processo que levou à fundação e posterior extinção da congregação religiosa, das presúrias de Afonso III na fronteira ocidental do reino, entre 868 e 878, à criação de uma nova entidade política resultante da fusão dos antigos condados portucalense e conimbricense, em 1096. Para o efeito, determinámos as características globais do género analístico, analisando-as e compreendendo-as tendo como base o complexo narrativo a que Pierre David (1947) veio a atribuir a designação, hoje clássica, de Anais portucalenses velhos (Annales portucalenses ueteres); e, por outro, salientámos os aspectos que conferem especificidade à interpretação laurbanense do passado regional, contextualizando-os à luz da difusão de cláusulas diplomáticas de aferição cronológica com base no ciclo lunar, reveladoras da prática do cômputo pascal, bem como de um provável hábito de fixação de apontamentos historiográficos, de teor analístico, nos mosteiros de S. Pedro de Pedroso, S. Vicente de Vacariça e S. Salvador de Leça, tal como na igreja de St.ª Maria da Sé de Coimbra, entre 1081 e 1097, ou seja, nos episcopados de Paterno e Crescónio.

Neste quadro letrado, evidenciámos a singularidade dos anais mediante o estudo das condições sociais de estratificação da memória monástica e de inserção do texto nas redes de transmissão da analística portucalense. A análise do primeiro tópico foi feita a par da caracterização diacrónica do passado regional, numa leitura sequencial, de longa duração, a três tempos: a conjuntura de fundação da identidade comunitária, em relação com a expansão dos interesses políticos da monarquia asturiano-leonesa e o estabelecimento da nobreza condal na fronteira do Mondego, sob o protagonismo de Hermenegildo Guterres e seus descendentes, entre 878 e 987; a conjuntura de afirmação do mosteiro, como resultado da sua aproximação a Gonçalo Moniz, interveniente na vida política do reino - de que o envenenamento de Sancho I e a sublevação que culminará com a entronização de Bermudo II são um exemplo, até pelo facto de serem acontecimentos contemporâneos da crise atravessada pela monarquia face ao recrudescimento da ameaça muçulmana, como resultado da pressão militar exercida pelo hājib omíada Muhammad ibn Abī ‘Āmīr al-Mansūr no território fronteiriço, entre 987 e 1037 -; e, por fim, a conjuntura de transformação dos paradigmas de religiosidade moçárabes a que a comunidade se encontrava simbolicamente vinculada, depois da ascensão de um representante da Casa de Navarra ao trono de Leão, em 1037; da conquista de Coimbra por Fernando I, em 1064; e do concomitante estabelecimento das autoridades cristãs, leonesas e francesas, na fronteira do Mondego, despoletando um processo de reorganização administrativa do território reconquistado a cargo de uma hierarquia consular representada por Sesnando Davides, no decurso do qual, restaurada a diocese vacante, surgirão os primeiros indícios da penetração da reforma religiosa que Roma e Cluny, com o apoio de Leão, procuravam difundir no seguimento das deliberações tomadas no Concílio de Burgos, em 1080.

Ao longo deste trabalho, procurámos também caracterizar a composição do discurso analístico, compreendendo o texto no respectivo contexto de produção e recepção e, sobretudo, analisando-o à luz do que considerámos serem os quatro vectores temáticos que determinaram a sua compilação: a revitalização do passado distante, a interacção entre reino e fronteira, o protagonismo régio e condal e o poder semântico dos ritos. Estabelecidas as bases para a contextualização diacrónica das efemérides mencionadas no texto, procedemos à leitura individual de cada notícia numa perspectiva sincrónica, salientando os aspectos que considerámos como denominadores comuns a outros textos de idêntica tipologia e, consequentemente, salientando aqueles em que cada obra parece diferir das restantes. Neste passo, procedemos à decomposição e comparação do texto com os elementos estruturais da analística portucalense, como o esquema cronológico da história gótica, a relação incompleta dos reis asturianos, de Pelágio a Afonso II, e as efemérides históricas propriamente ditas, numa cronologia que abrange globalmente o período de 987 a 1111. Feita esta caracterização, analisámos o conteúdo das listagens régia ([NR]) e abacial ([NA]), propondo a identificação das figuras aí citadas com base na análise dos actos da prática conservados no códice diplomático, o que nos permitiu entrever os critérios de selecção do compilador como expressão da dimensão institucional e garantia de coesão da comunidade. Com base neste método, verificámos que o compilador dos anais não se limitou a registar apontamentos históricos, procurando também inscrevê-los numa leitura interpretativa do tempo passado cujo discurso seguiu propósitos edificantes, construídos com uma finalidade comemorativa e segundo uma linguagem própria da sua condição religiosa.

Estes aspectos levam-nos a dizer que a compreensão das efemérides registadas nos anais não depende apenas do entendimento do protagonismo que os reis e os condes tiveram na ideologia política de libertação da Hispânia, mas também da consideração de que estas figuras eram vistas como agentes ao serviço de uma ordem transcendente e interventiva nos acontecimentos terrenos. A sua relação com a eternidade de Deus e o tempo particular da Igreja reflecte-se na postura que o compilador parece adoptar perante o sucesso das empresas militares conduzidas pela realeza e a nobreza na fronteira ocidental do reino, de que as presúrias de Vímara Peres e Hermenegildo Guterres são um exemplo, e a tomada de Coimbra por Fernando I - acontecimento sintomaticamente associado à festa litúrgica do mártir S. Cristóvão -, o paradigma de referência. Com esta nota, o compilador dos anais chamou a atenção da congregação religiosa para o sentido transcendental da história, inscrevendo a memória guerreira da «Reconquista» cristã hispânica no plano das comemorações litúrgicas da Igreja.

A compreensão dos anais passou igualmente pela sua contextualização à luz do processo de difusão da ideologia política representada pela monarquia leonesa, ancorada no apoio providencial que o apóstolo S. Tiago teria dado a Fernando I como agente mediador na empresa de libertação da Hispânia - nomeadamente durante a conquista de Coimbra, nos termos em que o acontecimento veio a ser fixado na História silense, primeiro; no Códice calixtino, depois; bem como na Crónica najerense e nas mais tardias narrativas cronísticas de Lucas de Tui e Rodrigo de Toledo, por fim. Nas duas primeiras obras, o suposto evangelizador da Hispânia surge montado num cavalo branco e, de chaves nas mãos, entrega a cidade a um monarca piedoso, que se deslocara previamente à basílica apostólica de Compostela para solicitar auxílio ao Salvador e à Divina Majestade, aí regressando, já vitorioso, para agradecer a intercessão do apóstolo S. Tiago e doar extensos bens aos clérigos compostelanos. Uma tradição posterior, de finais do século XII, recuperada na centúria seguinte na obra de Rodrigo de Toledo, chega a fazer dos monges laurbanenses agentes coadjuvantes da empresa militar.

Na época em que estes escritos foram elaborados, a intervenção providencial do apóstolo S. Tiago durante a conquista de Coimbra era vista como um vaticínio salvífico, traduzindo a identificação do santo não apenas como o santo dos peregrinos, mas também como o santo cavaleiro que teria levado à miraculosa libertação da cidade do domínio muçulmano. Se tivermos em conta que este tópico resultou de uma concepção própria dos letrados do reino, é provável que a invenção da narrativa - baseada na convergência da data associada no calendário romano à festa litúrgica do mártir S. Cristóvão, que a tradição local identificava com o dia da entrada dos exércitos cristãos na cidade, com a do apóstolo S. Tiago, ao contrário do que se verificava no calendário hispânico, em que os dois santos eram cultuados em dias diferentes - tenha sido motivada pela eliminação do foco de resistência da população local à monarquia leonesa e, consequentemente, à difusão da ideologia santiaguista num meio ainda fortemente alicerçado nas suas ancestrais tradições moçárabes.

Uma vez que a congregação religiosa, na observância da regra de S. Bento pelo menos desde 1085, atravessou a crise conjuntural dos finais do século XI e inícios do XII como uma instituição que procurou resistir e sobreviver às sistemáticas investidas dos poderes políticos e eclesiásticos, a fixação do texto no respectivo suporte material deve ter sido encarada como uma das manifestações de uma estratégia comemorativa, criada com o objectivo de enaltecer a restauração da autonomia institucional do mosteiro, bem como de comemorar a ordenação de Eusébio como seu novo abade, em 1116, após uma longa e nem sempre benéfica sucessão de acontecimentos: a temporária extinção da congregação, em 1109; a sublevação da comunidade moçárabe de Coimbra, em 1111 - motivo do diálogo que a população se viu obrigada a manter com Henrique de Borgonha e os seus representantes, visando o restabelecimento da ordem na cidade, e que culminou com cedências de ambas as partes, de resto bem patentes na concessão de um foral a Coimbra e nos ecos que a questão surtiu na Cúria Romana, testemunhados pelas exortações que Pascoal II dirigiu ao clero e aos vizinhos da cidade -; a resistência ao processo de Romanização desenvolvido pela hierarquia catedralícia durante o episcopado de Gonçalo Pais, acompanhando a recuperação dos direitos da congregação religiosa numa frente de combate contemporânea de novos ataques almorávidas na fronteira do Mondego, sob a liderança do almorávida ‘Ali ibn Yūsuf, entre 1116 e 1117, nomeadamente contra Coimbra, durante o governo de Teresa de Leão; e, por fim, as controvérsias provocadas pelo debate sobre a restauração dos direitos metropolitanos de Mérida, antiga capital da província eclesiástica da Lusitânia, sobre as dioceses do Entre-Douro-e-Mondego, num quadro de acesa polémica e rivalidade entre as sedes de Braga e Santiago de Compostela que terminará com a integração de Coimbra na esfera de jurisdição da sede galega, em 1120.

Nesta conjuntura, a congregação religiosa procurou recuperar no passado distante memórias que evidenciavam a sua forte consciência de status, apresentando-se desta maneira como uma comunidade cuja coesão assentava no respeito pela tradição instituída pelos seus antepassados, num quadro de acesas controvérsias com as autoridades régia e condal. Se tivermos em conta estes pressupostos, compreendemos facilmente por que razão os anais não se limitaram a actualizar o passado fixado pelas comunidades de St.º Tirso de Riba de Ave e S. Salvador de Grijó entre 1079 e 1111, de acordo com uma ideologia letrada sustentada em actos fundadores e legitimadores da autonomia do futuro reino medieval português, em termos recuperados ainda pelos cónegos regrantes de St.º Agostinho, do mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra, em 1169. Como epifenómeno de uma cultura em crise - e, nessa qualidade, adoptando uma postura muito pouco isenta em relação a um presente desfavorável -, o compilador dos anais, seguindo uma lógica selectiva, parece ter reinventado um passado modelar susceptível de dar corpo às reivindicações da congregação religiosa, de acordo com uma leitura da história em que, com base num discurso de oposição à política leonesa, comprometida com a ideologia apostólica compostelana, se tinha tornado necessário recuperar os privilégios perdidos décadas antes: se o passado distante testemunhava um tempo em que o colectivo dos monges se colocara à sombra dos reis asturianos e da nobreza condal, beneficiando largamente do seu apoio e protecção, o tempo presente não podia deixar de reflectir uma continuada política de protecção ao mosteiro, ao contrário do que a conjuntura da época parecia apontar.

É neste quadro que se atesta o inusitado silêncio do texto relativamente ao Islão e, ao invés, se sublinha a relação de proximidade da congregação religiosa à Cristandade asturiana, provavelmente de forma a se sublinhar o clima de oposição que caracterizava a história do mosteiro nos finais do século XI e inícios do XII. Em nosso entender, a actualização de um passado de resistência contra o Islão em que o Islão não chega sequer a ser mencionado deve ser vista como um reflexo da necessidade sentida pela congregação religiosa de criar ou revigorar um ideal de resistência aos poderes dominantes. A perspectiva adoptada pela comunidade deve, pois, compreender-se num quadro de confrontos com a Cristandade reformadora, representada à época por Afonso VI de Leão e Henrique de Borgonha. Lida a documentação conservada no arquivo monástico, o compilador pôde associar a história individual do mosteiro à história global do reino, construindo um conciso relato em que deu provas da proximidade da congregação religiosa às duas forças que tinham vindo a assumir uma postura claramente desfavorável aos interesses monásticos. Recriou-se assim a imagem de uma realeza próxima da comunidade e pronta a defender os seus direitos.

É neste quadro que devemos compreender as referências aos três reis que fizeram doações à congregação religiosa. É também nesta linha de pensamento que devemos entender a necessidade que a comunidade sentiu de recuperar a memória abençoada dos dez abades que governaram o mosteiro, recordados nos anais em ementas que nos remetem para aniversários fúnebres ou até mesmo para cerimónias de ordenação: se as menções aos reis reflectem a prosperidade económica alcançada pelo mosteiro nos finais do século X, tal como a sua inserção nos mais privilegiados circuitos do poder político coevo, já as menções aos abades traduzem o ideal de estabilidade, simbolizado por uma ininterrupta sucessão abacial, que os monges procuraram garantir. A chamada de atenção para o antigo poder da congregação religiosa não passou pela recordação integral do passado, mas apenas dos factos, sumariados em seis curtas ementas, que tinham ajudado a ritmar positivamente o seu crescimento institucional, sob a forma de uns anais em que a história se cruzou com a memória.

Com base nestes pressupostos, podemos então afirmar que «o passado oferece à comunidade uma referência para as expectativas que ela própria guarda em relação ao futuro.». Tal como dissemos oportunamente, o passado «não encerra um sentido em si mesmo, ou seja, não é isento de uso. O que motiva e justifica o facto de ser comemorado é a convicção de que pode ser entendido como um referente para todos aqueles que compreendem o seu potencial simbólico, enquanto repositório de factos instrumentalizáveis ao serviço da causa. Neste processo, o que permite a sua utilização como referente dotado de coerência semântica é também o facto de o autor recorrer à escrita como forma de validação das pretensões comunitárias, decalcando sobre a durabilidade do pergaminho um projecto de construção e ritualização do passado ideal que ajuda a sustentar a estratégia monástica de oposição e resistência aos poderes dominantes.».

Quadro n.º1 Síntese da analística portucalense dos séculos XI e XII 

Síntese sobre a analística portucalense dos séculos XI e XII

O objectivo deste anexo é apresentar uma síntese, elaborada a partir da análise da edição crítica dos Anais portucalenses velhos (Annales portucalenses ueteres) da autoria de Pierre David (1947), sobre a transmissão dos textos da analística portucalense dos séculos XI e XII, com base em manuscritos provenientes dos mosteiros de St.ª Cruz de Coimbra (Sousa, Pina, Andrade e Santos, 2005, pp. 190-193) e St.ª Maria de Alcobaça (Sousa, Pina, Andrade e Santos, 2005, pp. 102-105).

I. Textos analísticos

1. As origens da tradição analística remontam ao século VIII e derivam de notícias anuais inscritas em tabelas de cômputo pascal, fixando a data móvel da Páscoa no calendário litúrgico cristão;

2. A mais antiga tradição, actualmente conservada, de textos analísticos de origem portucalense remonta aos séculos XI e XII e corresponde à primeira manifestação escrita de uma consciência letrada acerca da autonomia regional da fronteira ocidental do reino de Astúrias-Leão, no quadro geopolítico da Cristandade hispânica; é constituída por:

2.1. Uma primeira redacção, elaborada, segundo José Mattoso (2002, pp. 265-269), no mosteiro de St.º Tirso de Riba de Ave (conc. de St.º Tirso), contendo notícias datadas ou datáveis de 987 a 1079; transmitida parcialmente no Livro da Noa II e na primeira parte da Chronica Gothorum; hoje designada como Anais de St.º Tirso de Riba de Ave (David, 1947, pp. 255 e 288-289, alínea 1; Krus, 1998, pp. 2, 3 e 6-9);

2.2. Uma primeira continuação, elaborada, segundo José Mattoso (2002, pp. 265-269), no mosteiro de S. Salvador de Grijó (conc. de Vila Nova de Gaia), com notícias datadas ou datáveis de 1085 a 1111; transmitida no Homiliário de 1139 e na Summa chronicarum (Recensão breve) e na Chronica Gothorum (Recensão longa); hoje designada como Anais de S. Salvador de Grijó (David, 1947, pp. 255 e 289, alínea 2; Krus, 1998, pp. 2, 3 e 10-12);

2.3. Uma segunda continuação, elaborada, segundo José Mattoso (2002, pp. 265-269), no mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra (conc. de Coimbra), com notícias datadas ou datáveis de 1109 a 1169; transmitida no Livro da Noa I e nos Anais de Lamego (Recensão breve) e na Chronica Gothorum (Recensão longa); hoje designada como Anais de St.ª Cruz de Coimbra I (David, 1947, pp. 255 e 289, alínea 3; Krus, 1998, pp. 2, 4 e 12-15);

2.4. Um quarto texto, autónomo dos circuitos de produção e transmissão textual associados aos mosteiros de St.º Tirso de Riba de Ave, S. Salvador de Grijó e St.ª Cruz de Coimbra, elaborado no mosteiro de S. Mamede de Lorvão (conc. de Penacova), com notícias datadas ou datáveis de 866 a 1110 ([1109]); transmitido no códice diplomático conhecido pela designação de Livro dos testamentos (Liber testamentorum coenobii laurbanensis); hoje designado como Anais de S. Mamede de Lorvão (Krus, 1998, pp. 2, 3 e 9-10);

3. Os três primeiros textos analísticos são conhecidos através de manuscritos provenientes do mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra - exceptuando-se um exemplar do mosteiro de St.ª Maria de Alcobaça contendo uma cópia de um original crúzio -, embora anteriores à fundação do mosteiro coimbrão; os manuscritos de St.ª Cruz de Coimbra foram transferidos por Alexandre Herculano para a Biblioteca Pública Municipal do Porto, em 1834; o quarto texto analístico, por sua vez, é conhecido através de um manuscrito proveniente do mosteiro de S. Mamede de Lorvão, correspondendo, juntamente com o arquétipo de finais do século XII elaborado pelo cónego regrante de St.º Agostinho, do mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra, a um testemunho associado aos condicionalismos institucionais de fixação do texto;

4. Aos indícios que apontam para o exercício do cômputo pascal presentes na documentação do século XI, poderá estar subjacente uma prática de registo de apontamentos historiográficos, de teor analístico, noutras instituições religiosas do Entre-Douro-e-Mondego, como os mosteiros de S. Pedro de Pedroso (documentos de 1081, 1087 e 1090), S. Vicente de Vacariça (documento de 1095) e S. Salvador de Leça (documento de 1095), tal como na igreja de St.ª Maria da Sé de Coimbra (documentos de 1092, 1095 e 1097), contemporânea das produções analísticas conservadas no arquétipo de St.ª Cruz de Coimbra;

5. O complexo formado pelos três primeiros textos analísticos (AST, AG e ASC I), a que Pierre David (1947, pp. 257-340) atribuíu a designação de Anais portucalenses velhos (Annales portucalenses ueteres), encontra-se publicado numa edição crítica onde se distingue uma Recensão longa (1079), elaborada a partir do Livro da Noa II e da Chronica Gothorum (David, 1947, pp. 291-302); uma Recensão breve (1111), a partir do Homiliário de 1139 e da Summa chronicarum (David, 1947, pp. 303-305); e uma Recensão breve prolongada até 1168, a partir do Livro da Noa I e dos Anais de Lamego (David, 1947, pp. 306-310).

A caracterização de cada manuscrito é feita no ponto II deste anexo («Manuscritos dos textos analísticos»), por ordem cronológica de produção.

II. Manuscritos dos textos analísticos

Chronicon laurbanense (Anais de Lorvão)

Texto escrito no verso do fólio de guarda do códice diplomático do mosteiro de S. Mamede de Lorvão intitulado Livro dos testamentos (Liber testamentorum coenobii laurbanensis), nos finais da década de dez do século XII, por volta de 1118. É composto por duas partes, escritas, em Latim, por mãos de dois escribas em letra visigótica de transição: a primeira, contendo nomes de dez abades laurbanenses - de Justo a Eusébio (Nomina abbatum, [NA]) -; e a segunda, contendo nomes de três reis leoneses - Ramiro II (931-951), Sancho I (956-966) e Bermudo II (982-999) (Nomina regum, [NR]) -, seguida de um relato historiográfico composto por seis efemérides analísticas. Contém uma série de notícias datadas ou datáveis de 866 a 1110 ([1109]).

Encontra-se publicado em SS, vol. I, p. 20 (cf., para os nomina abaciais, Rocha, 1730, p. 147; e, para os nomina régios, seguidos das seis efemérides analísticas, Ribeiro, t. IV, parte I, 1819, p. 175, apênd. n.º II, sob o título «Chronicon laurbanense»; uma transcrição das quatro primeiras efemérides, com alterações de leitura paleográfica e reprodução parafraseada, em Português, foi publicada em Cácegas, 1923, pp. 277-278).

Bib.: David, 1947, p. 259; DHP, vol. I, 1981, s.v. «Anais» (A[velino] de J[esus da] C[osta]), p. 146.

Chronicon alcobacense ou Chronicon complutense

Texto transmitido em duas cópias: uma, da década de quarenta do século XII, no verso do fólio de guarda de um Homiliário do mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra, escrito em 1139; outra, do século XIII, no primeiro fólio de um manuscrito do mosteiro de St.ª Maria de Alcobaça, contendo uma colecção de crónicas designada como Summa chronicarum, posteriormente transferido para o colégio maior de St.º Ildefonso de Alcalá, onde, entre outras, se incluem obras da autoria de Eusébio de Cesareia, Jerónimo de Belém, Agostinho de Hipona, Sulpício Severo, Orósio de Braga, Próspero de Aquitânia, Hidácio de Chaves, Genádio de Marselha, Fulgêncio de Ruspe, Vítor de Tununa, João de Bíclaro, Isidoro de Sevilha, Ildefonso de Toledo e Isidoro de Beja, para além do relato da conquista de Coimbra por Fernando I, em 1064 (David, 1947, pp. 311-312)2. No seu conjunto, os códices de St.ª Cruz de Coimbra e St.ª Maria de Alcobaça contêm uma série de notícias datadas ou datáveis de 987 a 1111.

Encontra-se publicado em SS, vol. I, pp. 17-19.

Bib.: David, 1947, pp. 259, 261-266, 271, 276, 283, 286 e 289-290; DHP, vol. I, 1981, s.v. «Anais» (A[velino] de J[esus da] C[osta]), p. 145.

Chronicon lamecense (Anais de Lamego)

Texto escrito no fólio de guarda de um Martirológio-obituário da Sé de Lamego, em 1262. Contém uma série de notícias datadas ou datáveis de 987 a 1168.

Encontra-se publicado em SS, vol. I, pp. 19-20.

Bib.: David, 1947, pp. 259, 266, 273-275, 287 e 289-290; DHP, vol. I, 1981, s.v. «Anais» (A[velino] de J[esus da] C[osta]), p. 146.

Chronicon conimbricense, Livro da Noa, Livro das eras ou Saltério das eras

Texto transmitido num livro litúrgico contendo as horas canónicas de Noa, correspondente a uma miscelânea de notícias escritas, em várias épocas, nos três cadernos finais de um Saltério de horas diurnas, compiladas entre 1362 e 1365. Pela sua complexidade, Pierre David designa-o como Anais compilados de St.ª Cruz de Coimbra. Os fólios 5-12, do décimo terceiro caderno, e os fólios 13-17 e 18-23 r.º, do décimo quarto, representam a recolha copiada por um mesmo escriba, por volta de 1362; os fólios 23 v.º-26 r.º, do décimo quarto caderno, contêm as notas originais de 1369 a 1405. É composto por duas partes: a primeira, redigida em Latim, com notícias datadas ou datáveis de 987 a 1168; a segunda, redigida em Português, com notícias datadas ou datáveis de 1296 a 1405, à excepção das notícias das mortes de Inês de Castro (1355) e de Pedro I (1367), tal como da ascensão de Fernando I ao trono, neste último ano, redigidas ainda em Latim.

Encontra-se publicado parcialmente, sem a redacção portuguesa, em SS, vol. I, pp. 1-5.

Bib.: David, 1947, pp. 258-259, 265-279, 284-285 e 287-290; DHP, vol. I, 1981, s.v. «Anais» (A[velino] de J[esus da] C[osta]), p. 145.

Breve chronicon alcobacense

Texto escrito num Breviário do mosteiro de St.ª Maria de Alcobaça, no século XIV. É composto por duas partes: a primeira, redigida em Latim, designada como Chronicon alcobacense I; e a segunda, redigida em Português, seguindo a Crónica breve dita do Arquivo Nacional e as Crónicas breves e memórias avulsas do mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra.

Encontra-se publicado parcialmente, sem a redacção portuguesa, em SS, vol. I, pp. 20-22 (SS, vol. I, pp. 22-23, para a Crónica breve dita do Arquivo Nacional; e SS, vol. I, pp. 23-32, para as Crónicas breves e memórias avulsas do mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra).

Bib.: DHP, vol. I, 1981, s.v. «Anais» (A[velino] de J[esus da] C[osta]), p. 146.

Chronica Gothorum, Historia Gothorum ou Chronicon lusitanum

Texto resumido na compilação designada como Breuis chronica Gothorum ou Breuis historia Gothorum, um resumo efectuado por Gaspar Álvares de Lousada Machado, secretário do arcebispo de Braga Fr. Agostinho de Jesus, no século XVII.

Encontra-se publicado em SS, vol. I, pp. 8-17.

Bib.: David, 1947, pp. 258-259, 265, 277 e 280-290; DHP, vol. I, 1981, s.v. «Anais» (A[velino] de J[esus da] C[osta]), pp. 145-146.

Chronicon oliveirense (Anais de Oliveira)

Texto escrito nos fólios iniciais de um Martirológio pertencente à igreja de St.ª Maria de Oliveira, dependente do mosteiro de St.ª Cruz de Coimbra, e copiado por mão de Gaspar Álvares de Lousada Machado, secretário do arcebispo de Braga Fr. Agostinho de Jesus, no século XVII. Contém uma série de notícias datadas ou datáveis até 1245.

Encontra-se publicado em Feio, 1940, pp. 33-36 (cf. transcrição das efemérides analísticas em Abreu, 1989, pp. 101-102).

Bib.: David, 1947, pp. 275-276.

Referência

GOUVEIA, Mário - O limiar da tradição no moçarabismo conimbricense: os “Anais de Lorvão” e a memória monástica do território de fronteira (séc. IX-XII).Tese de Mestrado em História Medieval, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2008. Medievalista [Em linha]. Nº8, (Julho de 2010). [ Links ]

1Uma vez que a elaboração deste estudo1 teve lugar antes da recente publicação da edição integral do Livro dos testamentos do mosteiro de S. Mamede de Lorvão (Liber testamentorum coenobii laurbanensis (estudios), Leão, Centro de Estudios e Investigación «San Isidoro» - Caja España de Inversiones - Archivo Histórico Diocesano, 2008), todas as citações documentais relativas a este códice diplomático seguem as leituras paleográficas apresentadas por Alexandre Herculano (1856; 1867) e Rui de Azevedo (1932), nas respectivas edições parciais.

2Reproduzido, com variantes de leitura, por Pedro Álvares Nogueira, cónego da Sé de Coimbra no século XVI, no capítulo relativo ao bispo Paterno do Livro das vidas dos bispos da Sé de Coimbra (Pedro Álvares Nogueira, Livro das vidas dos bispos da Sé de Coimbra [Nova edição; coordenação de Manuel Augusto Rodrigues; transcrição de Maria Teresa Nobre Veloso], Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra - Gráfica de Coimbra, 2003, §1.º, p. 14); e por Fr. Manuel da Rocha, em Portugal renascido. Tratado historico-critico-chronologico, em que à luz da verdade se dão manifestos os successos de Portugal do seculo decimo depois do nascimento de Christo Senhor Nosso, Lisboa ocidental, Off. de Joseph Antonio da Sylva, 1730.

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