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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Med_on  no.13 Lisboa jun. 2013

 

VARIA

Resposta a SILVA, Maria João Oliveira e – «Recensão» – "MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa – A Sé de Coimbra: A Instituição e a Chancelaria (1080-1318)"

Maria do Rosário Barbosa Morujão*

 

* Centro de História da Sociedade e da Cultura, Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra; Centro de Estudos de História Religiosa, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Portugal. E-mail: rmorujao@gmail.com

 

Partamos da definição de recensão dada por uma qualquer enciclopédia: “apreciação e juízo crítico sobre um trabalho”, que “implica uma análise e uma crítica” e através da qual “devemos ficar com a noção exacta do que está a ser objecto de apreciação”1.

Porque a recensão de Maria João Oliveira e Silva à minha dissertação de doutoramento, publicada no último número da revista Medievalista, em meu entender, não transmite ao leitor a “noção exacta” da obra em causa, faço uso do direito de resposta que me assiste para corrigir algumas das imprecisões que essa recensão contém e para explicar certos princípios de ordem metodológica que nela são questionados.

Como qualquer obra humana, a minha tem necessariamente defeitos e erros, que sou a primeira a reconhecer. Mas também, sem falsas modéstias, sei quais os seus méritos e o que de importante trouxe para o conhecimento da realidade estudada; não vejo, contudo, nenhum desses aspectos espelhado nesta recensão, bem pelo contrário.

Analisemos, pois, o que é dito. O trabalho em causa divide-se em duas grandes partes, a primeira dedicada a uma análise de carácter institucional, a segunda à chancelaria da Sé de Coimbra. Sobretudo no que toca à primeira parte, a Autora da recensão tende a colocar a tónica das suas apreciações ora no acessório, ora no que a minha dissertação não é nem nunca pretendeu ser, usando de uma superficialidade deveras desconcertante, de que é exemplo a forma como é apreciado o 2º capítulo. Centrado no estudo dos bispos da diocese, nele apresento um episcopológio rigoroso, identifico e biografo os prelados de Coimbra e analiso a sua acção à frente do bispado. A respeito deste capítulo, diz Maria João Silva que nele se corrigem erros e confusões na identificação dos prelados (o que, sendo verdade, além de redutor, não justificaria as quase 120 páginas que ocupa no conjunto da obra). Salienta ainda a Autora que eu não me senti “obrigada a citar todos os trabalhos já realizados sobre este assunto, nem de confirmar ou refutar os dados neles contidos”, afirmação que não deixará de levar o leitor que não conheça a obra a pensar, erradamente, que fiz tábua rasa de tudo o que antes foi escrito e investigado sobre a matéria. Na verdade, a frase citada corresponde, grosso modo, à parte final da nota 1 da p. 76, na qual elenco todos os trabalhos sobre o episcopológio conimbricense compulsados para a elaboração desse capítulo e advirto que não lhes farei menção constante no decurso do capítulo (para não o sobrecarregar ainda mais com notas de rodapé), o que é substancialmente diferente do que é explanado nesta recensão.

O mesmo capítulo mereceu ainda duas outras observações, qualquer delas a menos relevante. Na primeira, a propósito das reproduções das subscrições episcopais apresentadas, alvitra a Autora que “talvez fosse aconselhável ter feito a [sua] transcrição”, dada a dificuldade “de leitura das mesmas por um público não especializado” – esta é uma obra que se destina, antes de mais, a um público especializado, e as dificuldades de leitura destes excertos não diferem das levantadas por todos os outros que são reproduzidos no livro; além disso, a própria Maria João Silva, nas suas dissertações de mestrado e doutoramento, dedicadas, também elas, ao estudo de uma chancelaria episcopal, a do Porto2, não fez transcrições nem das subscrições episcopais, nem de qualquer outro excerto. Igualmente irrelevante é a enfatizada chamada de atenção para a legenda das genealogias, que contém dois símbolos nem sempre presentes nos esquemas apresentados, “deixando os leitores na dúvida”; ora a legenda apresentada é, intencionalmente, igual em todos os casos, e não creio que provoque qualquer dúvida no leitor, como não criou junto do júri que leu, criticou e aprovou esta dissertação.

Os exemplos que acabei de apresentar comprovam o incompreensível relevo dado ao acessório em detrimento do essencial. Outros, que me escuso de assinalar, para não ocupar demasiado espaço com esta resposta e me centrar no mais importante, mostram como se fez incidir sistematicamente a tónica da apreciação no carácter introdutório da abordagem efectuada (a que também se chama “provisório” e “lacunar”), nunca reconhecendo que, não sendo objectivo desta primeira parte do estudo fazer a história da diocese de Coimbra, mas sim estabelecer o enquadramento histórico e institucional que permitiria o estudo da chancelaria da Sé (como desde o primeiro momento tive o cuidado de frisar), esta investigação lança bases solidamente alicerçadas para essa história se poder, a partir dela, elaborar. No máximo, a Autora concede (referindo-se ao 3º capítulo, sobre o cabido conimbricense) que “não deixa de analisar vários dados históricos”, frase que, por falta de fundamentação, não se percebe muito bem o que possa significar.

Outros exemplos de falta de rigor existem ao longo de toda a recensão, de entre os quais se destaca o erro cometido a propósito do estudo dos selos que levei a cabo no 3º capítulo da 2ª parte. Sobre esse estudo de sigilografia, pioneiro em Portugal no tocante a uma catedral, afirma Maria João Silva que “foi dada atenção não só às espécies sigilográficas em si, nomeadamente às episcopais, do cabido e da cúria, como também às matrizes (neste caso capitulares)”. Em abono da verdade, a catedral de Coimbra seria a mais rica em matrizes de toda a cristandade e eu a mais afortunada investigadora interessada em selos se tivessem chegado até nós as seis matrizes medievais que se sabe terem sido usadas por este cabido durante o período estudado. Nem uma sequer existe, porém. Basta um pouco de atenção para se perceber que o estudo dos selos capitulares teve como base as impressões sigilares que nos chegaram e não as matrizes para o efeito utilizadas; estruturei a sua análise em várias alíneas, de acordo com cada matriz usada para imprimir os selos, e nos títulos dessas alíneas reside a origem da confusão entre selo-matriz e selo-impressão, o que constitui um erro crasso.

Até as observações pertinentes de Maria João Silva são feitas de uma forma imprecisa, não explicando as razões do que pretende efectivamente transmitir. Assim se passa quando chama a atenção para o facto de “audiência e cúria episcopal (…) surg[ir]em, aqui, como uma mesma entidade”, sem nada mais acrescentar. De facto, ao longo da cronologia por mim estudada, que não vai além de 1318, ambos os termos surgem como sinónimos na documentação, designando quer o tribunal episcopal quer a estrutura governamental que, ao longo do século XIII, se foi desenvolvendo; e como sinónimos os tomei. Na sua dissertação de doutoramento, Maria João Silva pôde verificar a evolução da cúria episcopal portuense durante todo o século XIV, o que lhe permitiu acompanhar o processo de desenvolvimento e de definição da sua estrutura, da qual a audiência emerge como órgão especificamente judicial3. Apesar de a distinção não ser fácil, e de outros Autores também não a fazerem, reconheço que será necessário reler os documentos de Coimbra à luz dessa diferenciação, buscando elementos que permitam verificar quando e de que maneira ela se foi estabelecendo. Como disse acima, sou a primeira a admitir as falhas que apontem ao meu trabalho, sempre que justificadas.

Não considero que o sejam, contudo, no que toca aos princípios metodológicos postos em causa pela Autora da recensão relativamente aos critérios de selecção do corpus documental que serviu de base para analisar a chancelaria da Sé conimbricense. Tenha-se em conta que, para efectuar o estudo de uma instância de escrita como esta, em tempos medievais, não dispomos de informações directas sobre o modo como se organizava e funcionava; só conseguimos chegar ao seu conhecimento (sempre, forçosamente, parcial e aproximado) a partir dos documentos nela produzidos que chegaram até nós. A questão em causa é saber que documentos, a priori, deveremos considerar como emanados de uma dada chancelaria. Sendo esta, por definição, a entidade ao serviço de uma instituição que lavra os actos escritos necessários a essa mesma instituição4, e seguindo o exemplo de Benoît-Michel Tock, no seu estudo pioneiro e modelar sobre a chancelaria episcopal de Arras no século XII5, circunscrevi a minha escolha aos diplomas outorgados pelos bispos (sozinhos ou em conjunto com outras entidades), pelo cabido e pela cúria ou audiência episcopal que não tivessem saído, comprovadamente, de outras escrivaninhas, como as oficinas de tabeliães. Maria João Silva defende, como é natural, outros critérios, os que ela própria seguiu, na senda de Maria Cristina de Almeida e Cunha6 e, em parte, de Saul António Gomes7, integrando no seu estudo não apenas os actos outorgados pelas instâncias referidas, mas também os que a elas se destinavam. Continuo a considerar a minha a opção mais correcta e prudente. Assim o pensei ao começar a investigação, pelas razões acima resumidas8; assim o penso depois do estudo feito, dado que este me mostrou que as características internas e externas dos actos escritos na chancelaria da Sé de Coimbra não são tão únicas e específicas que a distinção entre eles e outros seja clara e segura. Maria João Silva afirma, porém, que “a selecção documental parece comprometer, em parte, a análise das fórmulas da chancelaria, uma vez que foram excluídos alguns documentos, nomeadamente doações feitas à Sé, que incluem cláusulas que outros estudos provaram ser sui generis e, por isso, de grande interesse, em especial as arengas”. A meu ver, o argumento que usa demonstra exactamente o contrário: se as fórmulas são sui generis, o mais provável é que provenham de outras oficinas de escrita, e não de uma onde não se encontraram cláusulas semelhantes ou sequer parecidas.

Uma outra forma possível de identificar os documentos de uma chancelaria tem como base os seus escribas: todos os actos lavrados por uma dada pessoa teriam saído da mesma escrivaninha. No entanto, também este critério é falível, em especial no que toca aos tempos mais antigos (no caso da Sé de Coimbra, desde 1080 até cerca de 1240), quando a maioria dos escribas se identificava apenas pelo nome próprio e pela ordem sacra que detinham. Quando só dispomos de cópias, como distinguir as homonímias? Se temos originais, como garantir que o exame das grafias não falha, num tempo em que a chamada forma histórica de escrever era a norma, e cada escriba procurava aproximar-se o mais possível do cânone gráfico vigente? E como estabelecer a ligação de cada um desses escribas (de quem apenas conhecemos, repito, o nome e a ordem sacra) a uma dada instituição, quando eles lavram documentos para várias? Tomemos um exemplo apenas, que mostra a complexidade de situações com que nos podemos deparar: o escriba Pedro Calvo escreveu três documentos incluídos no corpus que estudei; saíram da sua mão mais oito, destinados ao cabido, à Sé ou a cónegos, que também entrariam dentro do conjunto documental considerado se tivesse seguido o mesmo critério de Maria João Silva. Mas continuariam a não fazer parte do estudo outros 22, respeitantes a particulares, à chancelaria régia e aos mosteiros de Santa Cruz e de Lorvão9. Em que qualidade escreveu Pedro Calvo para tantas pessoas e entidades diferentes? O simples alargamento do critério de selecção documental não permitiria responder a esta questão; é necessário realizar um estudo de toda a produção deste escriba para a tentar resolver – mas tal ultrapassava, naturalmente, os objectivos que me tinha proposto. Tive, porém, o cuidado de indicar (tanto para Pedro Calvo como para todos os outros escribas que estudei) os actos identificados como tendo sido escritos pelas suas mãos que não faziam parte do corpus; assim, não se perderam nem ignoraram as informações fornecidas por outros documentos, para além dos efectivamente estudados.

Com estas sucintas reflexões de ordem metodológica finalizo a minha resposta. Poderia alongar-me mais nas observações à recensão, mas creio que o que pretendia demonstrar já ficou claro, estando certa de que, através destas palavras, os eventuais leitores terão ficado com uma noção mais maturada, rigorosa e correcta da obra recenseada, do seu efectivo conteúdo e da validade da metodologia que a enforma.

 

COMO CITAR ESTE ARTIGO

Referência electrónica:

MORUJÃO Rosário Barbosa – “Resposta a SILVA, Maria João Oliveira e – «Recensão» – "MORUJÃO, Maria do Rosário Barbosa – A Sé de Coimbra: A Instituição e a Chancelaria (1080-1318)”. Medievalista [Em linha]. Nº13, (Janeiro - Junho 2013). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA13/morujao1312.html        [ Links ]

 

Notas

1 Recensão. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2012. [Consult. 2012-11-01]. Disponível na www: http://www.infopedia.pt/$recensao.

2 Respectivamente, Scriptores et Notatores. A produção documental da Sé do Porto (1113-1247). Porto: Fio da Palavra, 2008; e A escrita na catedral: a chancelaria episcopal do Porto na Idade Média (estudo diplomático e paleográfico). Porto: FLUP, 2010 (policopiado).

3 A escrita na catedral…, pp. 16-17.

4 Veja-se a definição proposta pelo Vocabulaire international de la Diplomatique. Ed. María Milagros Cárcel Ortí. Valencia: Universidad de Valencia, 1994, pp. 69-70.

5 TOCK, Benoît-Michel – Une chancellerie épiscopale au XIIe siècle. Le cas d’Arras. Louvain-la-Neuve: Institut d'Études Médiévales, Université Catholique de Louvain, 1991, p. 13-14. A esses documentos somam-se ainda as cartas-missivas enviadas pelos bispos, cujo número em Coimbra é insignificante.

6 A chancelaria arquiepiscopal de Braga (1071-1244). Noia: Toxosoutos, 2005.

7 In limine conscriptionis. Documentos, chancelaria e cultura no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra: séculos XII a XIV. Viseu: Palimage, 2007.

8 Essas razões são devidamente desenvolvidas nas pp. 308-311 da minha dissertação.

9 Cf. MORUJÃO, Maria do Rosário – A Sé de Coimbra: a instituição e a chancelaria…, pp. 389-399 e pp. 472-474.

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