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Medievalista
versão On-line ISSN 1646-740X
Med_on no.15 Lisboa jan. 2014
APRESENTAÇÃO DE TESE
Paisagem e povoamento: da representação documental à materialidade do espaço no território da diocese de Braga (séculos IX a XI). Ensaio metodológico.
André Evangelista Marques*
* Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Estudos Medievais - FCSH-UNL, 1069-061 Lisboa, Portugal. E-mail: andre.omarques@gmail.com
Tese de Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dezembro 2013. Orientação do Professor Doutor Luís Carlos Amaral (U. Porto) e coorientação do Professor Doutor José Ángel García de Cortázar (U. Cantábria) 1
1. Tema. Esta tese foi concebida como a segunda peça de um programa de investigação que vinha de trás e deveria prolongar-se para além dela. Sucede a um primeiro trabalho, restrito à análise de uma unidade específica de organização social do espaço (o casal), que procurava a um mesmo tempo: (i) desenvolver nos planos semântico e morfológico uma metodologia de análise desse tipo de unidades rurais e aplicá-la a um espaço-tempo concreto (o Entre-Douro-e-Lima, entre os séculos X e XII); e (ii) estudar uma unidade de base familiar que assumiu, logo no século XII, um papel central na ordenação da paisagem e do povoamento rurais do Entre-Douro-e-Minho2. Constituía-se assim este primeiro ensaio como uma sondagem à organização social do espaço minhoto, cujo estudo global exigia nova e mais alargada investigação3.
A presente dissertação propôs-se, de acordo com o plano inicial, desenvolver esse estudo global. Mas rapidamente o curso da investigação se encarregou de demonstrar que havia um conjunto de problemas prévios que importava estudar de forma aprofundada, sob pena de a construção do edifício assentar em fundações demasiado frágeis. Não pareceu possível avançar para a análise dos processos de apropriação, organização e articulação do território minhoto até ao século XII sem antes atentar em duas questões principais, que vieram a corporizar o objecto do trabalho: (i) os modelos discursivos de base e as circunstâncias conjunturais de transmissão que moldaram a representação documental do espaço no conjunto das fontes escritas conservadas (um corpus que estava – e continua, em boa parte – por estudar4; e (ii) a morfologia propriamente dita do espaço organizado (paisagem) e articulado (território), analisada dentro dos constrangimentos impostos pelo registo escrito ao estudo das diversas unidades espaciais cuja tipologia os redactores distinguiram nos seus textos.
Neste sentido, a necessidade de aprofundar o inquérito nos planos semântico e morfológico, que ficara bem patente naquele primeiro trabalho sobre o casal, redimensionou-se neste segundo. E obrigou a recentrar a análise num conjunto de problemas relacionados com a representação documental e a concretização material do espaço. Percebe-se assim que o objecto deste trabalho se construa num duplo plano, sintetizado no título. No horizonte esteve sempre um objecto global: a paisagem e o povoamento, que entendemos como bases materiais do processo de organização social do espaço na região e cronologia escolhidas. Mas o essencial da investigação foi dominado por um objecto imediato: o arco que vai da representação documental à materialidade do espaço.
2. Programa. Há, portanto, nesta tese uma função exploratória e instrumental que a transforma num ensaio metodológico, cujo programa se distingue por um duplo objetivo: (i) apresentar uma metodologia para o estudo da morfologia das diversas unidades espaciais referidas na documentação altimedieval; e (ii), como primeiro passo dessa metodologia, desenvolver uma reflexão sobre as potencialidades das fontes escritas para o conhecimento da materialidade do espaço. Estes dois objetivos estão na origem das duas partes da dissertação: a primeira dedicada à justificação teórica e apresentação da metodologia proposta e a segunda aos problemas que a representação documental levanta ao conhecimento da materialidade do espaço no corpus documental selecionado em função de um caso concreto: o território da diocese de Braga, entre os séculos IX e XI.
Note-se, contudo, que esta selecção não foi um mero resultado dessas coordenadas espácio-temporais, mas está de alguma forma na sua origem. Sucedendo imediatamente ao regresso das fontes diplomáticas (na década de 970), a cronologia escolhida acompanha um momento essencial na afirmação da escrita e na formação das estruturas senhoriais neste território. Os séculos IX a XI constituem um período decisivo na hora de avaliar a interacção entre uma nova estrutura social de poder e os modelos de organização da paisagem e do povoamento rurais. Já a exacta delimitação do espaço em análise define-se sobretudo em função de uma geografia documental e reduz-se, em última instância, ao conjunto dos lugares e zonas mencionados na documentação produzida e conservada. Enquadrado no território da diocese de Braga, o espaço efectivamente em análise é determinado pela cobertura geográfica dos dois cartulários produzidos pelas duas principais instituições da região: a Sé de Braga (Liber Fidei) e o mosteiro de Guimarães (Livro de Mumadona Dias). Explica-se assim a concentração dos dados disponíveis na zona central da diocese, melhor organizada e sobretudo documentada. O que implicou a conversão de um quadro supra-regional de partida (o território diocesano) num quadro infra-regional, correspondente grosso modo ao Entre-Lima-e-Ave, e com extensões pontuais aos territórios transmontanos de Chaves e Vila Real.
Porque concebida especificamente a partir de fontes diplomáticas altimedievais, a metodologia apresentada acarreta uma reivindicação heurística da relevância, mas também das limitações, deste tipo de fontes para o estudo do espaço. O que tem implicações epistemológicas no debate sobre os espaços de cruzamento/ruptura entre a história e a arqueologia. Trata-se, portanto, de uma metodologia historiográfica, por oposição a metodologias outras, de base arqueológica (tanto ligadas à escavação estratigráfica como à prospecção), geográfica, paleoambiental, etc. A generalidade destas abordagens, e desde logo as que se aproximam mais das ciências naturais, assenta num instrumental técnico complexo e bem definido. E nisto contrastam com o impressionismo e o sincretismo dos métodos que tradicionalmente guiam os historiadores do espaço na leitura das fontes escritas altimedievais: uma leitura que não passa muitas vezes disso mesmo, sem sequer atingir grande complexidade no plano estritamente hermenêutico. Percebe-se assim a necessidade de avançar na concepção de metodologias especificamente desenhadas para o estudo deste tema, cronologia e realidade documental específicos.
3. Estrutura. A tal objectivo responde a Parte I do trabalho. Formular uma proposta de análise que se pretende capaz de abrir pistas de investigação implica mais do que a apresentação de uma metodologia em sentido estrito (um conjunto articulado de ferramentas analíticas). Obriga a um trabalho prévio de elaboração teórica, definindo o campo a que uma tal metodologia pode ser aplicada e os limites dessa aplicação. Esta primeira parte começa assim por explicitar um conjunto de definições inerentes à problemática historiográfica que enquadra a concepção da metodologia proposta (Parte I, §1) e à natureza do seu objecto, com vista a uma clara definição do seu exacto campo de aplicação: a representação documental do espaço (§2). Segue-se a apresentação da metodologia propriamente dita, cujas semelhanças operativas (mas não substantivas) com o método prosopográfico nos levaram a adoptar a designação de “prosopografia do espaço”(§3); e uma referência ao quadro mais alargado de fontes que se impõe a uma metodologia desenhada para a análise da documentação diplomática mas inequivocamente preocupada em contribuir para o quadro interdisciplinar que o estudo do espaço exige (§4). Percebe-se assim que a formulação de uma tal proposta tivesse atingido dimensão suficiente para ocupar uma parte autónoma do trabalho.
Do mesmo modo, cremos que se justifica também dedicar toda a Parte II à crítica das fontes e ao estudo da terminologia espacial. Num trabalho que pretende avaliar as possibilidades (e limitações) oferecidas pelos textos para o estudo da realidade material, é indispensável conhecer, e delimitar bem, a sua capacidade para representarem uma realidade que os transcende. É esta a melhor forma de superar a encruzilhada a que conduziu o pensamento pós-modernista mais radical, ao pretender que os textos só poderiam falar de si mesmos. Percebe-se então que, antes de passar à análise propriamente dita de um qualquer problema relacionado com a materialidade do espaço, seja necessário considerar três aspectos que funcionam como poderosos filtros da informação que este tipo de fontes pode fornecer (Parte II, §1): (i) as circunstâncias que ditaram a génese e transmissão do corpus documental disponível (§1.1.), (ii) as tipologias e o discurso diplomáticos que marcam a escrituração da realidade espacial (§1.2.) e (iii) o léxico que suporta a representação documental do espaço propriamente dita, mediante a utilização, por parte dos redactores, de uma terminologia específica para designarem as múltiplas unidades espaciais a que se referiam (§1.3. e §2).
4. Problemática. A definição da problemática que subjaz à proposta metodológica apresentada na primeira parte do trabalho obrigou a uma revisão da literatura em torno da paisagem, do povoamento e do espaço na Alta Idade Média. Depois de uma panorâmica sobre a construção do binómio espaço-sociedade no quadro da história rural europeia (Parte I, §1.1.), procurou-se sintetizar as diversas linhas de investigação que promoveram (e questionaram) o estudo do povoamento enquanto “fóssil-director” da evolução social (§1.2.) e as várias correntes mais recentes que corporizam a (re)emergência da paisagem, entre os estudos paleoambientais e os da sua representação simbólica (§1.3.). Esta revisão, que deve ser entendida como um itinerário entre muitos possíveis, não pretende ser um balanço exaustivo, mesmo no campo da história tout court, e muito menos nos domínios da arqueologia, da geografia, das ciências paleoambientais e de outras disciplinas que foram chamadas à colação. Procurou apenas sinalizar as linhas de reflexão teórica e de trabalho empírico que contribuíram mais directamente para a génese da nossa proposta metodológica. Só então foi possível definir o objecto a que se aplica esta proposta, na complexidade da trilogia que o caracteriza, entre a base material, a organização social e a representação documental do espaço.
5. Objecto. Nesta trilogia, assume particular importância o jogo de interacção entre os pólos essenciais que são a base material e a organização social (Parte I, §2.1.). No entanto, a representação discursiva do espaço não constitui apenas uma realidade mental (autónoma) em que convergem a base material e a organização social (através sobretudo da mediação do léxico espacial, que investe realidades materiais de um significado social), mas assume também o papel de mediadora entre estes dois pólos da realidade histórica, por um lado, e o historiador que a eles acede através dos documentos, por outro. Devemos assim atentar no papel que a representação documental do espaço desempenha na criação de um objecto especificamente historiográfico como é o da metodologia aqui proposta (§2.2.). Construído com base em fontes escritas, logo situado, de acordo com a dicotomia tradicional, do lado das apropriações sociais e das representações mentais do espaço, este trabalho procura precisamente superar essa dicotomia, prestando uma atenção particular à informação que é possível retirar dos textos sobre a materialidade do espaço.
Assimilados que estão hoje os contributos relevantes da reflexão pós-moderna nos planos epistemológico, heurístico e hermenêutico, e em face de uma crescente consolidação disciplinar da arqueologia e das restantes ciências históricas das materialidades, parece chegado o momento de reequacionar a importância e o papel da história – aqui entendida em sentido restrito, como disciplina encarregada de produzir conhecimento sobre o passado a partir de fontes escritas – no estudo desta secção do real. Certamente não numa perspectiva unilateral, ignorando a relevância (primazia, mesmo) do registo material e dos dados e interpretações produzidos pela arqueologia; mas consciente, ao mesmo tempo, da importância do registo escrito e do contributo importante que a sua análise pode dar tanto no plano da produção de informação como no da interpretação.
A principal força das fontes escritas reside no facto de permitirem investir a informação fornecida sobre a morfologia das unidades espaciais de: (i) uma localização cronológica exacta, sustentando o desenho da sua evolução (pelo contrário, são as fontes arqueológicas que proporcionam localizações espaciais exactas); (ii) um contexto social, que define o lugar de cada unidade no quadro de um determinado modelo (ou conjunto de modelos) de organização social do espaço; (iii) um significado cultural, no quadro de esquemas articulados de percepção e representação do espaço, que são ao mesmo tempo um produto das estruturas sociais que organizam o espaço e um factor do próprio processo de organização, já que a acção sobre o espaço implica sempre uma representação prévia; isto para não insistir no papel central destes esquemas de percepção e representação na génese da imagem que nos é dado construir, hoje, do espaço altimedieval. As fontes escritas levantam, assim, problemas que ultrapassam largamente o da simples materialidade, dadas as suas implicações nos planos económico (dos “modos de vida”), sociopolítico (no quadro global de poderes exercidos sobre uma população e um território) e cultural (no horizonte amplo das práticas e das representação espaciais). No entanto, também é verdade que uma correcta apreensão do significado que uma determinada unidade espacial assume em cada um destes planos implica necessariamente o seu fundamento “objectivo”, e portanto a caracterização tão rigorosa quanto possível da sua morfologia física.
É indiscutível o impacto dos avanços recentes da arqueologia neste domínio, que veio confrontar a investigação histórica com um conjunto muito amplo (e novo) de dados empíricos e mesmo de propostas interpretativas que esta tarda efectivamente em acompanhar. No entanto, parece-nos igualmente importante reconhecer que as fontes escritas – e os historiadores – estão em boa posição para avaliar a interacção espaço-sociedade, e em particular o que designámos por bases materiais da organização social do espaço. Isso implica, todavia, superar uma certa dificuldade em desenvolver metodologias específicas que sejam também capazes de uma análise igualmente renovada e mais detalhada das fontes escritas para o estudo da paisagem e do povoamento.
6. Metodologia. Procurando responder a este conjunto de perspectivas de análise de um objecto que definimos como a representação documental de uma realidade material socialmente construída, a metodologia proposta (Parte I, §3) orienta-se por dois objectivos principais: (i) o levantamento sistemático das distribuições cronológica e espacial das menções documentais às diversas unidades de organização do espaço num dado território e (ii) o estudo morfológico destas unidades e da sua evolução. É evidente o interesse de um inquérito construído em torno das unidades de organização do espaço definidas pelos próprios redactores dos documentos, com recurso a um léxico classificatório que se constrói na intersecção entre os planos material e jurídico e que responde a esquemas sociais de organização e a esquemas mentais de representação do espaço. Combinando a base material com a dimensão representacional, este léxico não se limita a descrever meras unidades espaciais, com uma tradução material e geográfica exacta, mas permite concretizar o jogo de interacção que se estabelece entre um determinado espaço e a sociedade que o organiza. Ficam assim abertas vias para o estudo relacional de ambas as realidades (materiais e sociais/mentais) e para conhecer as implicações propriamente físicas daquela organização.
Como se percebe, a metodologia de análise espacial proposta é, no essencial, um subproduto da metodologia proposta por J. Á. García de Cortázar para o estudo da organização social do espaço. Destaca-se apenas por dois movimentos de sentido contrário: (i) a tentativa de alargar o leque de unidades (e escalas) espaciais em análise, para lá das unidades centrais de “organização” e “articulação” do espaço privilegiadas pelo autor; e (ii) a restrição do questionário de análise à morfologia física desse conjunto mais amplo e heterogéneo de unidades espaciais, associadas aos mais diversos sectores da paisagem rural (incluindo o habitat). Claramente inspirada no método prosopográfico, esta metodologia toma como base da análise todas as unidades de organização do espaço que é possível identificar (e localizar) na documentação, desde as mais pequenas parcelas de organização do espaço agrário até às grandes unidades de articulação política do território. E procura congregar toda a informação sobre a morfologia de cada uma dessas unidades, dispersa pelos vários documentos (e datas) em que elas aparecem referidas. Criou-se para isso uma base de dados que permite organizar a informação através de três procedimentos básicos:
A) numprimeiro módulo (Documentos), são seriadas todas as unidades mencionadas num mesmo documento, através de uma ficha de que consta a informação identificativa de cada escritura (cota arquivística, datação, classificação diplomática, publicações, crítica, sumário, etc.) e uma lista detalhada de todas essas unidades, com a indicação do respectivo tipo morfológico e designação, recolhendo rigorosamente (e apenas) a informação veiculada pelo redactor do documento;
B) em seguida, num segundo módulo (Elementos), é recolhida numa ficha individual toda a informação que o documento fornece sobre a morfologia de cada uma das unidades nele referidas, cobrindo aspectos tão variados como a identificação, a fragmentação e delimitação da unidade, o sistema de localização utilizado para a situar no território, as relações espaciais (efectivas ou formulares) com outras unidades que o documento lhe aponta, e os indicadores da sua atribuição social (pela dupla via das transmissões de que foi objecto a sua propriedade e dos tributos que sobre ela impendem);
C) finalmente, num terceiro módulo (Unidades), são seriados todos os elementos relativos a cada unidade numa ficha de que constam não apenas a lista das menções documentais à unidade (com a respectiva data), mas também a indicação dos seus tipo morfológico e designação normativos, os quais resultam já do cruzamento da informação (nem sempre coincidente) veiculada pelas diversas menções documentais. Percebe-se assim que este processo de “consolidação” de elementos não seja automático, mas resulte de operações de identificação feitas caso a caso, recorrendo sobretudo às informações sobre a designação, a titularidade e a localização das várias unidades.
Tais operações levantam, naturalmente, vários problemas interpretativos. Como, de resto, a identificação toponímica de unidades que aparecem localizadas na documentação com recurso a uma malha espacial estruturalmente diversa daquela a que hoje recorremos para as localizar (e cartografar). No entanto, o problema maior que se levanta é o da classificação morfológica, uma vez que o questionário subjacente à base de dados coloca no centro da análise os diversos tipos de unidades de organização do espaço definidos pelos redactores dos documentos. Optámos por agrupar estes diversos tipos de unidades em cinco categorias. As duas primeiras resultam directamente da distinção (e definições) avançada por J. Á. García de Cortázar: (i) as “unidades de articulação social do espaço”, com funções eminentemente administrativas, e (ii) as “unidades de organização social do espaço”, dominadas antes por funções de enquadramento sociopolítico e económico. As restantes categorias incluem unidades espaciais com uma relevância (tanto territorial como social) tendencialmente menor, mas que interessam sobremaneira a um estudo preocupado com a materialidade do espaço: (iii) as “unidades eclesiásticas”, categoria em que integrámos ecclesiae, mosteiros, ermidas e outros templos, mas não as diversas circunscrições territoriais que compõem a malha eclesiástica (da paróquia à província metropolitana) – preferimos antes classificá-las como “unidades de articulação social do espaço”, à semelhança do que fez García de Cortázar (com as paróquias e dioceses apenas); (iv) a imensa mole de unidades de paisagem referida na documentação, sem margem para dúvida a categoria em que a materialidade do espaço mais claramente se evidencia; e (v) as “formas de propriedade”, categoria que alberga um conjunto variado de unidades cuja designação decorre em primeiro lugar da respectiva titularidade (ou mesmo do tipo de transacção a que foram sujeitas), e que oscilam entre a condição de unidades com uma tradução espacial concreta e conjuntos abstractos de bens que só tomados isoladamente têm essa tangibilidade, ou mesmo de meros direitos formais sobre espaços todavia concretos.
Uma vez recolhida a informação nos três módulos referidos, a base de dados contempla um conjunto de mecanismos analíticos que procuram viabilizar quatro objectivos instrumentais: (i) análise quantitativa: para assegurar a exaustividade da análise, a base permite a recolha e tratamento sistemáticos de toda a informação relevante, em moldes tão quantitativos quanto possível, e foi dotada de um sistema de indexação temática dos documentos que facilita a análise qualitativa; (ii) integração dos dados num SIG:para assegurar a rigorosa georreferenciação de toda a informação espacial, as listas de lugares e freguesias que servem de base à identificação toponímica das unidades foram dotadas das respectivas coordenadas geográficas, possibilitando desde logo a produção de cartografia automática e a análise espacial; (iii) crítica de fontes: para assegurar o estudo aprofundado das fontes analisadas e do léxico espacial documentado, a base de dados foi dotada de um conjunto de campos que procuram sistematizar a informação relativa a estes problemas e estrutura-se em função das categorias classificatórias utilizadas pelos próprios redactores para designar as unidades espaciais, que estão na base da tipologia de unidades utilizada; (iv) interdisciplinaridade: para assegurar a possibilidade de integração entre os dados (escritos) e os dados materiais (arqueológicos, sobretudo), foi atribuída especial importância à escala local em que estes últimos dados adquirem pleno sentido e aquela integração é possível (donde o considerável esforço de identificação toponímica tão rigorosa quanto possível das unidades mencionadas nos textos).
Ao centrar a análise não em unidades espaciais em sentido estrito, necessariamente identificadas em função da realidade espacial actual (lugares), mas em unidades de organização do espaço, tal como os redactores as definem (que depois se procura traduzir na realidade espacial actual, nos casos em que essas unidades sejam efectivamente indexáveis a um lugar), o nosso questionário respeita a heterogeneidade da dimensão espacial das unidades que compunham a realidade (física como mental) coeva. Obedece assim ao jogo de escalas como recurso analítico imprescindível para captar diferentes sectores da realidade.
Não por acaso designamos esta metodologia com recurso ao conceito de ‘prosopografia’. Com efeito, uma análise assim conduzida oferece-nos a possibilidade de indexar um conjunto alargado de informações de vária natureza e rigorosamente datadas (elementos) a uma realidade espacialmente circunscrita (a unidade espacial) e, acima de tudo, descrita morfologicamente por meio de um sistema de classificação que, com todas as suas ambiguidades e opacidades para o historiador, e apesar da oscilação entre os planos material e jurídico, tem a imensa vantagem de ser coevo da realidade espacial que procura representar (mais do que propriamente descrever). Ora, é precisamente na especificidade da informação assim produzida que reside o potencial heurístico e interdisciplinar da metodologia aqui apresentada. Superando (sem as anular) dicotomias como as que opõem os planos da representação vs. materialidade do espaço, ou a análise qualitativa de realidades concretas vs. análise quantitativa de agregados abstractos, o carácter individual (prosopográfico) das unidades espaciais erigidas em unidades de análise garante a possibilidade de ancorar a abstração das palavras no terreno e de contrastar as tendências e ordens de grandeza estatísticas com o caso singular. Num movimento de permanente vai-e-vém, estes vários tipos de análises contrafortam-se uns aos outros.
7. Fontes. Embora a base de dados apresentada tenha sido desenhada especificamente para a análise de fontes diplomáticas, as perspectivas interdisciplinares abertas por esta metodologia obrigam a considerar um quadro bem mais amplo de fontes, cuja informação espacial a nossa base de dados deverá ser igualmente capaz de recolher e tratar (Parte I, §4). A paisagem histórica (medieval como de qualquer outro período) é um objecto mediatizado, ao qual poderemos chegar sobretudo através: (i) dos textos, que lhe fixaram determinadas representações mentais (sem esquecer formas outras de representação não-textual: cartográficas, pictóricas, etc.); (ii) da toponímia, que constitui uma forma particularmente eficaz, porque directa e circunscrita, de semantização do espaço; (iii) do registo arqueológico (incluindo os “ecofactos”), que fossilizou uma série de fragmentos materiais,nos sucessivos estádios evolutivos de uma determinada paisagem, sendo que o processo é aqui mais importante do que as diversas fases (difíceis de individualizar claramente muitas vezes); e (iv) através dos traços que persistem na paisagem actual, captados pela cartografia moderna, pela fotografia aérea e por diversos outros tipos de fontes geográficas. Mesmo que nesta fase da investigação não tenhamos utilizado outras fontes para além das diplomáticas (que não esgotam sequer o espectro das fontes textuais), não poderíamos deixar de nos referir brevemente aos diversos corpora que é possível reunir para o território da diocese de Braga entre os séculos IX e XI. A panorâmica oferecida, que marca a entrada no estudo de caso, serve como ilustração do amplo leque de fontes a que a prosopografia do espaço deverá aplicar-se no momento em que a metodologia for plenamente desenvolvida.
8. Representação documental do espaço. A análise tão detalhada quanto possível das fontes escritas constitui a etapa primeira e uma condição prévia da metodologia de análise espacial proposta. A segunda parte do trabalho, dedicada a avaliar as possibilidades que o corpus documental analisado oferece para o conhecimento da materialidade do espaço, não podia deixar de atentar, logo a abrir, nos já referidos três filtros da informação que este tipo de fontes pode fornecer sobre a morfologia das diversas unidades espaciais documentadas. Na impossibilidade de estudar esses filtros em detalhe, optámos por aludir brevemente a alguns dos problemas que cada um levanta ao estudo do espaço, para nos concentrarmos depois na análise exaustiva do léxico espacial que foi possível identificar na documentação analisada.
Num primeiro momento, referimo-nos aos problemas que enquadram a construção dos corpora documentais, por via do duplo processo de génese e transmissão das escrituras, para depois expormos os critérios que estão na base do corpusutilizado, destacando o peso avassalador dos dois cartulários analisados na transmissão dos documentos de que hoje dispomos para o estudo do território bracarense antes do século XII (Parte I, §1.1). De seguida, aludimos brevemente à distinção fundamental no discurso diplomático entre partes “livres” e “formulares”, a que são tradicionalmente associados níveis muito diversos de objectivação (§1.2.). Finalmente, tecemos algumas considerações gerais sobre o condicionamento que a terminologia, mais do que qualquer outro filtro, impõe à nossa apreensão do espaço documentalmente representado (§1.3.). Ao assumirem o papel de primeiro intermediário entre a realidade material e a representação documental que os redactores dela construíram, as palavras desempenham um lugar verdadeiramente central no arco que definimos como o objecto imediato deste trabalho: da representação documental à materialidade do espaço.
Não resta outro caminho ao historiador da paisagem e do povoamento altimedievais, senão o de um estudo atento da linguagem das fontes escritas. A própria natureza destas fontes conduz o historiador ao domínio das representações verbais e obriga-o a precaver-se das muitas “armadilhas” que o vocabulário das fontes lhe monta. Aquele estudo deve, portanto, compulsar séries de dados o mais amplas possíveis (tanto no tempo como no espaço) por forma a tentar verificar continuidades e descontinuidades de sentido que, dado o carácter fragmentário da documentação altimedieval, são sempre difíceis de estabelecer. E não deve esquecer nunca que a compreensão isolada das palavras e conceitos utilizados pelo discurso documental estará sempre condicionada ao estudo dos “sistemas de sentido”, que constituem afinal a maior garantia da possibilidade de compreensão de discursos passados.
Numa segunda fase, esse inquérito deverá ser cotejado (em jeito de contra-prova) com análises circunstanciadas da realidade material em espaços necessariamente circunscritos (micro-regionais, locais), aos quais possa ser atribuído um certo valor paradigmático, sem nunca cair em generalizações abusivas. Trata-se, no fundo, de tentar ultrapassar a análise semântica e o domínio restrito da representação e dos signos, a que o pensamento pós-moderno procurou confinar o conhecimento histórico, para o confrontar com os traços (certamente fragmentários também) do que consensualmente se chama a realidade material. Mas aqui já não devem ser as fontes textuais as únicas utilizadas: é chegada a vez de recorrer ao registo material, nas suas mais diversas manifestações: arqueológica, paleoambiental, paleobiológica, etc. O que ultrapassa manifestamente o âmbito do nosso trabalho, embora constitua um horizonte de interdisciplinaridade que ele não deixou nunca de ter em conta e para o qual procura contribuir.
9. Léxico espacial. Dando sequência ao símile da prosopografia do espaço, a função identificadora que o nome e o estatuto social desempenham para o indivíduo é assumida, no caso das unidades espaciais, pelo amplíssimo conjunto de nomes próprios (topónimos propriamente ditos) que podem identificar cada unidade em particular, e pelo conjunto (bem mais restrito) de nomes comuns com que os redactores procuram classificá-las morfologicamente. Uns e outros compõem aquilo a que chamámos o léxico toponímico e espacial, respectivamente. A metodologia apresentada na primeira parte do trabalho preconiza uma análise dessas unidades conduzida de acordo com a taxonomia definida por este léxico espacial utilizado no discurso diplomático. O essencial da segunda parte não podia deixar de aprofundar o inquérito nos planos semântico e morfológico e de, simultaneamente, apresentar os primeiros resultados a que conduziu a análise prosopográfica das unidades espaciais identificadas. A melhor solução para concretizar este duplo objectivo pareceu-nos ser a elaboração de um léxico dos vários termos usados pelos redactores da nossa documentação para designar e classificar morfologicamente as unidades espaciais a que se referiam (Parte II, §2).
Pretendeu-se assim constituir um dossier que recolhe a informação básica sobre os diversos tipos de unidades, com os riscos e artificialidade que implica a compartimentação de uma informação que os documentos constroem – e nos apresentam – de forma contextual e não isoladamente. Este léxico funcionará como uma espécie de vocabulário técnico que suporte ab initio as análises que poderão vir a ser feitas a partir da informação recolhida na base de dados e aqui sumariada. Note-se, contudo, que não se encontrará aqui uma lista completa do vocabulário a que os redactores recorreram para nomear o espaço, o que implicaria a análise do léxico toponímico. Sendo certamente importante, esta análise ultrapassa largamente o âmbito de um trabalho que não tem propósitos lexicográficos nem se move no quadro disciplinar da linguística histórica, em que os estudos topononímicos devem ser integrados.
A opção de incluir neste léxico não apenas o quadro geral de significados atribuíveis a cada termo mas também a representação cartográfica das distribuições espaciais dos diversos tipos de unidades identificados no corpus estudado, bem como alguma informação recolhida neste corpus sobre a morfologia de cada tipo, transformam-no em mais (e menos, ao mesmo tempo) do que um apartado de índole lexicográfica. O conjunto de verbetes relativos aos diversos termos que compõem o universo lexical estudado corresponde, de facto, ao primeiro estádio, ainda embrionário, de tratamento da informação reunida na nossa base de dados. Recordemos os números: num total de 366 documentos analisados, foi possível identificar 3073 unidades espaciais, a que correspondem 4937 menções documentais, entre as quais foi possível estabelecer um total de 11516 relações espaciais5. Na impossibilidade de um tratamento sistemático do imenso corpo de dados reunido, que no limite conduziria a um conjunto de extensos trabalhos monográficos, este apartado aparece assim como um mero esboço das potencialidades da metodologia proposta.
No total, integram este léxico 184 termos, agregados para efeitos analíticos em mais de 70 tipos diferentes, por sua vez reunidos em cinco grandes categorias tipológicas, já referidas. Para cada termo redigiu-se um verbete de que consta um conjunto variável de informação, mais ou menos desenvolvida, consoante a natureza do exacto tipo de unidades em causa, e que podemos agrupar em quatro items: (i) lema e respectivas variantes formais; (ii) número e natureza das ocorrências de cada tipo e respectivos limites cronológicos no corpus analisado; (iii) definição: quadro geral de significados possíveis de cada termo, capaz de se constituir como um espectro amplo de possibilidades, do qual deverá partir a análise morfológica das unidades assim designadas no corpus estudado; (iv) breve caracterização morfológica de cada tipo de unidades, a partir dos dados recolhidos especificamente no corpus estudado, com o objectivo (exclusivo) de corroborar ou infirmar os sentidos gerais arrolados.
10. Conclusão. O longuíssimo périplo feito nesta segunda parte pelas centenas de palavras utilizadas na documentação para classificar unidades espaciais demonstra a enorme complexidade do “espaço documentado” no território da diocese de Braga entre os séculos IX e XI. Esse espaço constitui uma realidade particularmente intrincada, que definimos como uma abstracção entre a base material, a organização social e a representação discursiva. Captar tal complexidade é uma condição necessária para qualquer tipo de análise sectorial, que procure estudar aprofundadamente uma destas três dimensões, e ainda mais para um estudo global da organização social do espaço, obrigado a conjugá-las todas. Percebe-se então que, antes de avançar para esse estudo global, tenha sido necessário atentar detalhadamente num conjunto de problemas que definem o itinerário apontado como o objecto imediato da dissertação: da representação documental à materialidade do espaço. A aplicação do questionário subjacente à metodologia proposta, que procurou sistematizar a informação veiculada pelos documentos sobre a morfologia de cada tipo de unidade, veio demonstrar as possibilidades de uma análise assim conduzida para uma futura investigação sobre a paisagem e o povoamento do território bracarense entre os séculos IX e XI, entendida como etapa primeira (dedicada às bases materiais)de um estudo sobre a organização social do espaço.
Sem prejuízo da natureza e escala muito variáveis dos tipos de unidades definidos, esse questionário propõe uma grelha de análise que passa essencialmente por três apartados, em que agregámos um conjunto amplo de variáveis. No primeiro, cabem as distribuições cronológicas e espaciais do conjunto de unidades de cada tipo. E utilizamos o plural na medida em que a análise dessas distribuições deve ter em conta diferentes cortes cronológicos e escalas espaciais. No essencial, a análise deve atentar: (i) na longa duração e na escala regional, que permitem relacionar a distribuição global dessas unidades com factores propriamente geográficos e com a configuração estrutural do povoamento na região, o que explica em larga medida as manchas de maior e menor concentração; e (ii) no tempo curto e na escala micro-regional (ou mesmo local, nos casos em que a informação for suficientemente abundante para isso), que permitem relacionar a distribuição conjuntural dessas unidades com o duplo processo de organização do espaço e de construção da respectiva memória documental, que poderá ter sido dominado mas não foi certamente monopolizado pela iniciativa senhorial.
No segundo apartado, cabe um amplo conjunto de variáveis relacionadas com a morfologia das unidades. Partindo da análise semântica levada a cabo na segunda parte do trabalho, que permitiu definir o quadro amplo de significados de cada termo e a respectiva pragmática (com destaque para a sua utilização em contextos formulares ou não-formulares dos documentos), atentar-se-á: (i) nos elementos de designação das unidades de cada tipo (antroponímicos, toponímicos, hagiotoponímicos, topográficos, referências a proprietários/usufrutuários anteriores e/ou atuais, etc.), que dizem muito sobre a sua morfologia; (ii) na integração espacial dessas unidades, tanto do ponto de vista físico (em paisagens concretas) como social (no quadro de malhas territoriais, de cariz administrativo ou simplesmente de domínio); (iii) na estrutura interna das unidades, o que obriga a considerar o conjunto dos componentes que elas podem integrar (e não apenas do ponto de vista físico: por vezes a integração é estritamente funcional ou mesmo patrimonial), bem como as possibilidades de combinação entre os diferentes tipos de componentes e respectivos mecanismos de articulação (também espacial, funcional e patrimonial).
Por fim, num terceiro apartado, para o qual não recolhemos ainda dados nesta fase, cabem duas variáveis associadas à morfologia propriamente social das unidades e, em particular, à sua “atribuição social” (noção proposta por J. Á. García de Cortázar e aperfeiçoada por E. Peña Bocos6, que dá bem conta da imensa variedade de formas de domínio sobre o espaço): (i) a cadeia de transmissão da titularidade sobre as unidades espaciais e (ii) o conjunto de imposições que sobre elas recaíam.
A “densidade” da informação espacial recolhida segundo a metodologia aqui proposta, que abrange a totalidade das unidades espaciais documentadas e percorre toda a tessitura da escala espacial e morfológica (desde um mero marco físico de delimitação aos grandes territórios diocesanos), é suficiente para garantir a possibilidade de as referidas análises monográficas se conjugarem numa visão global capaz de superar a fragmentação a que uma metodologia tão exaustiva quanto possível de recolha de dados obrigou. Mas que, como contrapartida, devolve um manancial de informação sobre cada unidade que não é só abundante como tem a virtude de estar rigorosamente referenciado, tanto do ponto de vista cronológico (uma vez que todo e qualquer dado está indexado ao exato documento que o menciona) como geográfico (dentro, obviamente, das possibilidades de referenciação oferecidas pelos documentos). Será assim possível, a partir do momento em que esse manancial de informação tenha sido minimamente tratado e analisado numa perspetiva monográfica, avançar para o estudo global da organização da paisagem e do povoamento no quadro regional definido.
No que respeita ao povoamento, esse estudo poderá conduzir-se em dois planos, a que correspondem também duas escalas espaciais diferenciadas: (i) enquanto processo de ocupação e organização do território, o povoamento remete para as escalas regional e micro-regional, em que a informação recolhida permitirá analisar variáveis como: (a) a distribuição espacial dos núcleos de povoamento, os níveis de densidade dessa distribuição (definidos pelo rácio entre a quantidade de núcleos e a área pela qual se distribuem) e as áreas de maior e menor concentração (definidas pela combinação entre a quantidade, a localização e a densidade dos núcleos); e (b) as redes de povoamento e de ocupação/articulação do espaço (definidas pela distribuição/hierarquização espacial dos núcleos habitados em cada momento), o que inclui as malhas de enquadramento político-administrativo das populações; (ii) enquanto configuração espacial e morfológica do habitat (que é já, note-se, um sector da paisagem), o povoamento remete para duas escalas e duas variáveis distintas, que a informação compulsada poderá também ajudar a analisar, embora entremos aqui num domínio eminentemente material em que os dados colhidos na documentação escrita só adquirem pleno sentido quando reunidos com o registo arqueológico: (a) a primeira dessas variáveis a estudar, numa escala supralocal, são os padrões da distribuição espacial do habitat (dispersão, dispersão intercalar, aglomeração; modalidades de implantação topográfica dos núcleos, etc.), aquilo a que os arqueólogos chamam “padrões de povoamento/assentamento”; (b) a segunda, que se concretiza à escala local, prende-se com a morfologia interna dos núcleos de habitat e a respectiva inscrição na paisagem envolvente (núcleos aglomerados/alveolares/dispersos, abertos/fechados, de plano organizado/orgânico, etc.).
Por outro lado, a informação espacial recolhida segundo a metodologia proposta apresenta ainda consideráveis potencialidades para o estudo da paisagem, entendida como o produto material da interacção entre o meio-ambiente e a ação humana no tempo, um fenómeno que implica sobretudo uma análise à escala local (quando não mesmo micro-local), em que essa interacção afinal se concretiza. Neste sentido, e embora a abundante informação reunida sobre unidades de paisagem permita traçar algumas considerações – fragmentárias, é certo – sobre a prevalência deste ou daquele tipo de paisagem à escala regional ou micro-regional, o contributo essencial de uma informação “densa” como a que foi possível compilar verifica-se ao nível da reconstituição local de paisagens concretas, no quadro de estudos de caso. Este é, por excelência, o domínio da análise contextual, que obriga a integrar e cruzar todos os dados disponíveis sobre o conjunto das unidades (dos mais variados tipos) identificadas num determinado lugar. E implica, desde logo, a combinação da informação proveniente do registo escrito com a que resulta do registo arqueológico e paleoambiental, mas também com as perspetivas abertas pela geografia histórica, a partir sobretudo da análise regressiva de fontes escritas e cartográficas posteriores ao período em causa. Tudo com vista ao melhor conhecimento de uma realidade que é eminentemente material, e que os textos só parcialmente podem revelar.
Por último, e ultrapassando já o domínio das bases materiais da organização social do espaço, a informação espacial que foi possível recolher revela-se particularmente importante para o estudo da organização territorial, entendida aqui como processo de articulação sociopolítica do espaço. A conversão do espaço em território acontece precisamente por via da sua integração em malhas (e escalas) muito diversas de domínio, que se estendem entre a pequena unidade residencial e/ou de exploração, articulando um conjunto de parcelas agrárias e direitos de exploração sobre espaços incultos e outros recursos, até às grandes circunscrições integradas nas malhas eclesiásticas ou civis de administração do território. Passando obviamente pelas omnipresentes villae e outras unidades territoriais de âmbito local que enquadram a apropriação do espaço pelas comunidades de aldeia e constituem os marcos por excelência de articulação entre os setores-chave da paisagem rural: o habitat e o espaço agrário.
A preocupação dominante neste trabalho com as bases materiais da organização social do espaço explica, finalmente, a possibilidade de essa investigação sobre a paisagem e o povoamento do território bracarense aqui iniciada vir a utilizar os dados recolhidos sobre a morfologia das diversas unidades espaciais com vista ao desenho da evolução daqueles dois setores-chave da paisagem minhota: o espaço agrário e o habitat. Adoptando uma lógica mais selectiva de análise desses dados, que obriga a conjugar o tratamento quantitativo de algumas variáveis com o exame de determinados indicadores de natureza qualitativa, a investigação será assim conduzida a dois problemas maiores identificados pela historiografia europeia no período aqui em estudo: (i) o crescimento agrário e (ii) a cristalização de uma rede de aldeias, tendencialmente polinucleares no caso da região em análise. Para mais, estes problemas permitem superar um enfoque estritamente materialista, deslocado quando se toma como base exclusiva este tipo de fontes, para perspetivar as relações biunívocas que se estabelecem entre o espaço físico e as estruturas sociais de poder que o organizam, claramente o domínio do real que a documentação escrita melhor capta. Chegada a este ponto, a investigação terá atingido plenamente o patamar para o qual foi desenhada: o estudo das bases materiais da organização social do espaço.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Referência electrónica:
MARQUES, André Evangelista – “Apresentação de Tese / Thesis Presentation. Paisagem e povoamento: da representação documental à materialidade do espaço no território da diocese de Braga (séculos IX a XI). Ensaio metodológico. Tese de Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Dezembro 2013. Orientação do Professor Doutor Luís Carlos Amaral (U. Porto) e coorientação do Professor Doutor José Ángel García de Cortázar (U. Cantábria)”. Medievalista [Em linha]. Nº15, (Janeiro - Junho 2014). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA15/marques1510.html. [ Links ]
Notas
1 Reproduz-se aqui, com alguns desenvolvimentos, o texto de apresentação da tese em provas públicas, realizadas no dia 11 de Dezembro de 2012. A tese está disponível no Repositório Aberto da U. Porto: http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/67231, ainda que sem os Apêndices I e II, que constavam de um CD-ROM na versão original. Esta lacuna foi entretanto suprida pela publicação autónoma, no mesmo Repositório, dos principais módulos da base de dados que resultou da investigação: MARQUES, André Evangelista; DAVID, Gabriel – Base de dados Paisagem e Povoamento (diocese de Braga, Séculos IX-XI). 2013 [disponível em: http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/69259. Uma versão revista da tese será publicada em 2014 na colecção «Teses Universitárias», coeditada pelas Edições Afrontamento e pelo CITCEM.
2 MARQUES, André Evangelista – O casal: uma unidade de organização social do espaço no Entre-Douro-e-Lima (906-1200). Noia, Corunha: Editorial Toxosoutos, 2008, maxime p. 21-32, 257-64.
3 É evidente a filiação do nosso trabalho no quadro teórico-metodológico desenvolvido por J. Á. García de Cortázar para o estudo da organização social do espaço no quadrante NO da Península Ibérica, entre os séculos VIII e XIII. Sobre este quadro, v. o conjunto de artigos reunidos em GARCÍA DE CORTÁZAR, José Ángel – Sociedad y organización del espacio en la España medieval. Granada: Editorial Universidad de Granada, 2004.
4 Sobre as limitações que ainda hoje se levantam ao mero inventário (e que dizer da análise diplomática propriamente dita?) do conjunto dos diplomas altimedievais conservados nos arquivos portugueses, v. MARQUES, André Evangelista – «Para um inventário da documentação diplomática anterior a 1101 conservada em arquivos portugueses». In Beatriz Arízaga Bolumburu et alii (eds.) – Mundos Medievales. Espacios, sociedades y poder. Homenaje al Profesor José Ángel García de Cortázar y Ruiz de Aguirre. Santander: Editorial de la Universidad de Cantabria, 2012, t. I, p. 705-718.
5 Toda a informação relativa aos documentos analisados e às unidades identificadas (recolhida nos módulos Documentos e Unidades da base de dados) vai disponibilizada, respectivamente, nos Apêndices I e II da dissertação.
6 PEÑA BOCOS, Esther – La atribución Social del Espacio en la Castilla Altomedieval. Una Nueva Aproximación al Feudalismo Peninsular. Santander: Universidad de Cantabria, Asamblea Regional de Cantabria, 1995.