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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.29 Lisboa jan. 2021

 

VARIA

Pandemias e História na Era da COVID-19: O balanço de uma iniciativa

Pandemics and History in the age of COVID-19: Taking stock of an initiative

Flávio Miranda1
https://orcid.org/0000-0002-8730-6285

1Universidade do Porto, CITCEM, 4150-564 Porto, Portugal. fmiranda@letras.up.pt


 

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde classificou o novo coronavírus (SARS-CoV-2), uma doença respiratória aguda grave, como uma pandemia[1]. Por todo o mundo, os governos decretaram o fecho de fronteiras e ordenaram o recolhimento das suas populações em casa: impunha-se o confinamento obrigatório e o distanciamento social. As lojas fecharam, os restaurantes encerraram, os aviões ficaram em terra, as estradas esvaziaram-se de automóveis, as ruas permaneceram desertas e as redes sociais encheram-se de mensagens de esperança. Revolucionada a realidade e o quotidiano, as pessoas começaram a questionar-se: que consequências trará a Covid-19 para as nossas vidas? Quanto tempo durará esta pandemia? E o que é que aconteceu no passado e de que forma é que as sociedades escaparam a outros surtos epidemiológicos?

Durante a fase de estado de emergência (que, em Portugal, vigorou entre 19 de março e 2 de maio de 2020), sem o desejo ou a intenção de procurar lições ou soluções no passado, criei uma iniciativa dirigida à sociedade civil sobre “Pandemias e História na Era da Covid-19”, sob a chancela do Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» e com o apoio da Casa Comum da Universidade do Porto (CITCEM, UP)[2]. De forma a colocar em perspetiva o momento atual, decidi questionar: quão diferente é a Covid-19 de outras pandemias ao longo da história? Que surtos epidemiológicos ocorreram, quais é que foram as suas origens e de que forma se propagaram? Que medidas foram tomadas pelas instituições nacionais e locais como resposta a crises de saúde pública semelhantes? Que consequências tiveram? De que forma mudaram a sociedade, a economia, a política e a cultura? E o que é que podemos esperar da crise pandémica que se vive atualmente?

Nenhuma destas questões é particularmente nova ou original. Nas últimas décadas, foram publicadas obras que discutem problemas semelhantes em perspetiva histórica, com um exame aos surtos epidemiológicos que afetaram a humanidade ao longo dos séculos. Em Portugal, e sem a ambição de querer fornecer um elenco exaustivo dessas investigações, convém destacar os trabalhos sobre a peste negra de João Marques, Maria Helena da Cruz Coelho e André Silva (com a sua investigação doutoral em curso)[3]; a investigação sobre a lepra de Rita Nóvoa e Ana Rita Rocha;[4] a produção científica sobre os surtos epidemiológicos na época moderna de Laurinda Abreu[5]; a análise da entrada da cólera em Portugal por Maria Antónia Pires de Almeida[6]; e os estudos sobre a pneumónica (comummente conhecida por gripe espanhola) de Antero Ferreira e José Manuel Sobral[7].

Para além destes trabalhos eminentemente historiográficos, a comunicação social prestou um bom serviço ao dar à estampa edições dedicadas às pandemias ao longo da história, com textos de qualidade escritos por historiadores e jornalistas com formação em história[8]. Com o intuito de, citando Pedro Olavo Simões, “encontrar uma cura nas próprias doenças”[9].

Não obstante esta abundância historiográfica, a criação de um blogue e a disponibilização de entrevistas em plataformas como o YouTube permitem uma interação mais direta entre os investigadores e a sociedade civil. Estes canais digitais garantem uma certa universalidade do conhecimento e o acesso aberto a todos os que pretendam recorrer a uma fonte de informação fidedigna.

Assim, entre abril e junho de 2020, foram conduzidas doze entrevistas a investigadores oriundos da área da história e da medicina, que forneceram uma análise e exemplos do impacto de doenças como a peste negra, a lepra, o tifo, a varíola, a cólera, a influenza (gripe espanhola) e o vírus da imunodeficiência humana (VIH/SIDA). A cada um dos entrevistados foi aplicado um guião comum, de forma a permitir interpretar semelhanças e diferenças dos surtos epidemiológicos que ocorreram ao longo da história. Esse guião inquiriu sobre as origens e antropozoonose das doenças; as suas formas de transmissão e de propagação; as suas caraterísticas, manifestações e métodos de diagnóstico; as políticas centrais e locais no combate às epidemias; as instituições e os agentes participantes na gestão dos surtos; os métodos e as práticas medicinais; as consequências sociais, económicas e políticas; e os hipotéticos legados positivos de cada pandemia.

A partir deste guião, os investigadores expuseram informações e interpretações que permitem colocar em perspetiva a pandemia de SARS-CoV-2. Primeiro, é importante saber-se que a relação entre humanos e doenças é antiga e que, ao longo da história, provocou infeções em larga escala e mortes em números incalculáveis. A peste negra (1347-1353), por exemplo, terá dizimado cerca de 300 milhões de pessoas; a pneumónica (1918-1920) foi responsável pela morte de aproximadamente 50 milhões; e o VIH/SIDA terá causado, até ao momento, o desaparecimento de 32 milhões de seres humanos. Segundo, quase todos os vírus e bactérias têm uma antropozoonose (a bactéria Yersinia pestis terá passado das pulgas de ratos para humanos na Ásia Central ou China; a pneumónica terá sido transmitida de aves para humanos no Kansas, nos Estados Unidos; e o VIH cruzou espécies do chimpanzé para os humanos em África). Por ser uma transmissão que obedece a um enorme grau de imprevisibilidade, os investigadores são unânimes em rechaçar todas as teorias de conspiração sobre as origens e propagação destas doenças e rebatem, concomitantemente, as conotações xenófobas que têm emergido à volta do novo coronavírus. Terceiro, os métodos profiláticos conhecidos e aplicados atualmente têm, quase todos, uma origem medieval (distanciamento social; cercas sanitárias; isolamento de espaços urbanos e residenciais; quarentenas), o que demonstra que existe uma espécie de período de latência entre a fase de erupção da pandemia e a sua resolução: que poderá ocorrer por descoberta de uma cura (caso dos antibióticos para a peste negra) ou por fenómenos naturais (o vírus da pneumónica, por exemplo, perdeu força ao fim de dois anos).

Especificamente para a Idade Média, os investigadores entrevistados sublinharam uma série de aspetos sobre a realidade portuguesa. Esses elementos encontram-se relacionados com a dificuldade em se perceber o impacto da peste negra na demografia e nas transformações sociais, pela lacuna e imprecisão da documentação (conforme notou André Silva); com as ruturas decorrentes dessa mesma pandemia, verificando-se que a proximidade constante da morte gerou um aumento no número de testamentos (Maria Amélia Campos); com a definição de regimes alimentares e medicinais, e prescrição de banhos termais com intenção terapêutica e paliativa para doenças como a lepra (Ana Rita Rocha); ou a compreensão da noção de aglomeração de contágio e a redação de regimentos normativos com instruções e minutas para os espaços urbanos saberem lidar com as pandemias (Amélia Aguiar Andrade).

Recentemente, Gianna Pomata (professora jubilada do Instituto de História da Medicina na Universidade de John Hopkins, Maryland, Estados Unidos), em entrevista para a revista New Yorker, afirmou que as pandemias “despertam o caos”, mas que também têm a capacidade de abrir as mentes[10]. A peste negra, afirma Pomata, terá contribuído para selar o início do fim da Idade Média e o princípio de algo diferente que viria a ser o Renascimento. E que as evidências dessa transformação se encontram na forma como se melhoraram os hospitais e os mecanismos de mutualismo na doença, e no modo como as estruturas sociais e profissionais das classes mais baixas foram mudando. Porque as pandemias atuam como “um acelerador de renovação mental”, permitindo radiografar a sociedade de forma a que estas diagnostiquem os seus problemas e encontrem soluções.

A caminho dos trinta milhões de infetados em todo o mundo, os diagnósticos sociais, económicos e políticos encontram-se feitos: e o SARS-CoV-2 atuou, de facto, como um agente de contraste num exame imagiológico. Por isso é que os investigadores entrevistados no decurso desta iniciativa de “Pandemias e História na Era da Covid-19” deixaram uma série de sugestões e confissões sobre o mundo atual e o nosso futuro enquanto sociedade e país. Amélia Aguiar Andrade sublinhou a forma como o novo coronavírus permitiu revelar o que é importante do que não é, ao mesmo tempo que corrigia alguma soberba das sociedades atuais por acreditarem em demasia na sua evolução tecnológica; Amândio Barros enalteceu a urgência de se olhar para esta pandemia mais como um tempo de oportunidade do que de crise; Maria Amélia Campos sugeriu que as sociedades repensassem a velocidade e o frémito do quotidiano dos seres humanos, para que as pessoas possam voltar a ter tempo para se reconectarem; perante a tragédia que se abateu sobre os mais velhos, as principais vítimas da Covid-19, Antero Ferreira rogou para que todos, em conjunto, reflitamos sobre o valor e a importância da terceira idade; Ana Abecasis colocou a tónica na sustentabilidade das sociedades contemporâneas, sobretudo do ponto de vista ambiental; uma ideia partilhada por Amélia Polónia, que solicitou uma maior valorização dos recursos humanos e das atitudes de solidariedade e de comprometimento social dos cidadãos.

Num outro tom, Maria Antónia Pires de Almeida assume uma postura pessimista quanto ao futuro, sugerindo que não basta identificar, diagnosticar e propor soluções, porque a história demonstra que, rapidamente, as sociedades tendem a relaxar e a voltar a cometer erros sociais, económicos, políticos e até de higiene pública que poderão conduzir a resultados idênticos. Numa frase, sintetiza esta preocupação argumentando que as sociedades não anseiam por uma mudança, mas por um regresso ao normal[11].

Umas pequenas notas finais para concluir. O meu pai e a minha mãe recordam-se de, na sua infância, os seus pais e avós lhes terem ensinado a rogarem a Deus para que os livrasse da fome, da peste e da guerra. Séculos acumulados de crises alimentares, de propagação de doenças infeciosas e de conflitos militares moldaram a fé e o discurso espiritual, assim como o posicionamento de cada um perante a vida e a morte. Mas, após décadas de desenvolvimento dos sistemas nacionais de saúde, de evolução da medicina e de melhoria das condições de vida, as pessoas adquiriram uma sensação de imunidade e as ladainhas religiosas invocando proteção caíram em desuso. É provável que agora tenham regressado ao quotidiano de muitos, com pedidos para que as suas vidas sejam protegidas dos efeitos nefastos da Covid-19.

Ainda é cedo para se encerrar o capítulo do SARS-CoV-2 nas nossas vidas: não sabemos se haverá uma vacina eficaz, um anticorpo funcional ou se a doença se tornará endémica. Nem sabemos até que ponto a economia e saúde democrática dos estados será afetada. E, neste momento de retrospetiva, percebe-se inclusivamente que a Covid-19 deixou de ser um vírus equitativo. Se, no início, afetou pessoas de distintas etnias e classes socioeconómicas, são agora os mais pobres, os que não podem permanecer em isolamento profilático de longa duração, os principais alvos desta doença. Restar-nos-á a esperança de que o caos que emergiu com esta pandemia seja suplantado por uma sociedade melhor, pela qual o mundo aguarda expectante.

 

Como citar este artigo | How to quote this article:

MIRANDA, Flávio - “Pandemias e História na Era da Covid-19: O balanço de uma iniciativa”. Medievalista 29 (Janeiro - Junho 2021), pp. 411-418. Disponível em https://medievalista.iem.fcsh.unl.pt .

 

Data recepção do artigo / Received for publication: 31 de Agosto de 2020

 

[1] WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on COVID-19 - 11 March 2020, World Health Organization. Disponível em: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020. Consultado em 5 de agosto de 2020.

[2] Canal YouTube do CITCEM (https://www.youtube.com/channel/UC2Ia8syabdh1bO6-fCgQnIA) e Casa Comum da Universidade do Porto (https://up.pt/casacomum/pandemias-e-historia-na-era-da-covid-19/) .

[3] COELHO, Maria Helena da Cruz - “Um testamento redigido em Coimbra no tempo da Peste Negra”. Revista Portuguesa de História 18 (1980), pp. 312-331; MARQUES, José - “A peste de 1362, na diocese de Tui”. Bracara Augusta vol. 66, n. 124 (137), pp. 381-403.

[4] NÓVOA, Rita - A Casa de São Lázaro de Lisboa: contributos para uma história das atitudes face à doença (sécs. XIV-XV). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2010. Dissertação de Mestrado; NÓVOA, Rita - “As atitudes face à doença no Portugal dos séculos XIV e XV: a lepra, os leprosos e as leprosarias”. in MIRANDA, Flávio; SEQUEIRA, Joana (coord.), Incipit 1. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto, 2009-10. Porto: Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2012, pp. 77-87; ROCHA, Ana Rita - A Institucionalização dos Leprosos. O Hospital de São Lázaro de Coimbra nos Séculos XIII a XV. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2011. Dissertação de Mestrado.

[5] ABREU, Laurinda - “A luta contra as invasões epidémicas em Portugal: políticas e agentes, séculos XVI-XIX”. Ler História 73 (2018), pp. 93-120.

[6] ALMEIDA, Maria Antónia Pires de - “Epidemics in the news: Health and hygiene in the press in periods of crisis”. Public Understanding of Science 22, 7 (2013), pp. 886-902.

[7] FERREIRA, Antero (coord.) - A Gripe Espanhola de 1918. Guimarães: Casa de Sarmento, 2020; SOBRAL, José Manuel; LIMA, Maria Luísa - “A epidemia da pneumónica em Portugal no seu tempo histórico”. Ler História 73 (2018), pp. 45-66.

[8] Visão História 58 (abril de 2020); JN História 25 (abril de 2020).

[9] JN História 25 (abril de 2020), p. 3.

[10] WRIGHT, Lawrence - “How Pandemics Wreak Havoc-And Open Minds”. The New Yorker (20 de julho de 2020), pp. 18-23.

[11] Entrevista a Maria Antónia Pires de Almeida (CIES-IUL) sobre “A Cólera em Portugal no Século XIX”. in Pandemias e História na Era da Covid-19. Porto: CITCEM, 19 de maio de 2020.

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