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Medievalista

On-line version ISSN 1646-740X

Medievalista  no.30 Lisboa July 2021  Epub Dec 31, 2021

https://doi.org/10.4000/medievalista.4608 

Recensão / Review

Recensão / Review: Manuscritos Iluminados Europeus na Coleção Calouste Gulbenkian.

Delmira Espada Custódio1 
http://orcid.org/0000-0001-6393-6445

Maria Adelaide Miranda1 
http://orcid.org/0000-0002-7581-3888

1 Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Instituto de Estudos Medievais, 1099-032 Lisboa, Portugal, delmiraespada@gmail.com, adelaide@fcsh.unl.pt

Dias, João Carvalho. (ed.) -, Manuscritos Iluminados Europeus na Coleção Calouste Gulbenkian. ., Lisboa: :, Fundação Calouste Gulbenkian, ,, 2020. (, 342 pp.p. )


Fig. 1 Capa do catálogo. 

Em boa hora foi publicado, em Agosto de 2020, o catálogo de Manuscritos Iluminados Europeus na Colecção Calouste Gulbenkian, editado em português e inglês, por João Carvalho Dias, actual director adjunto e conservador responsável pelas colecções de livros e documentos gráficos do Museu. O livro, que se encontrava há longos anos em preparação, dá a conhecer a melhor colecção privada de manuscritos iluminados em Portugal, criteriosamente reunida por Calouste Gulbenkian, entre 1919 e 1937. Contempla 24 códices manuscritos ricamente iluminados, um incunábulo também iluminado e quinze fólios soltos provenientes de 10 obras diferentes, produzidos nos principais centros europeus entre os séculos XII e XVI. A estes acresce um fólio independente, executado no século XIX, por um imitador de Jean Bourdichon. Globalmente, trata-se de um conjunto bastante diversificado, unido pela notável qualidade das obras escolhidas, integrando textos de natureza religiosa - bíblicos, litúrgicos e devocionais -, jurídica e, também, literatura profana.

Fig. 2 Residência do Coleccionador, 51 Avenue d'léna, Paris. (Fonte: DIAS, João Carvalho (ed.) - Manuscritos Iluminados Europeus na Coleção Calouste Gulbenkian. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2020, p.4). 

A constituição da colecção, orientada pelo seu próprio gosto e por critérios de qualidade muitíssimo exigentes - a excelência artística da iluminura e das encadernações, perfeito estado de conservação, autenticidade e proveniência -, foi apoiada por especialistas ligados ao mercado livreiro e ao colecionismo, tais como o comerciante florentino Tammaro De Marinis e Alfred Chester Beatty, bibliófilo e conselheiro de sua confiança. Para além dos manuscritos europeus que aqui se apresentam, Gulbenkian adquiriu um belíssimo conjunto de manuscritos orientais (persas e arménios) que não fazem parte do presente catálogo.

Por infortúnio, no final da década de 1960, quando ainda se encontravam no Palácio dos Marqueses de Pombal em Oeiras, um elevado número de códices foi fortemente afectado pelas grandes inundações de 1967. O meticuloso trabalho de limpeza, executado pela Oficina de Restauro do Museu, permitiu a exposição e o estudo desses exemplares em condições excepcionais. Porém, a morosidade que a complexidade e a delicadeza da tarefa exigiram, implicando o desmembramento e posterior reencadernação dos códices, fez com que os trabalhos só ficassem concluídos em 2017, um processo longo que se encontra detalhadamente documentado.

O Catálogo contou com a coordenação científica de François Avril, conservador Geral do Departamento de Manuscritos da Biblioteca Nacional de França entre 1967 e 2003, e com a participação de uma equipa alargada de especialistas internacionais: Angela Dillon Bussi, Federica Toniolo, François Avril, Giordana Mariani Canova, James Marrow, Jonathan Alexander, Lieve de Kessel e Nigel J. Morgan, o que assegura a qualidade científica da obra. Ao Prefácio de Penélope Curtis, à data directora do Museu, seguem-se dois textos introdutórios, relativos à colecção: A Biblioteca Manuscrita de Calouste Gulbenkian, de Manuela Fidalgo, que durante largos anos foi responsável pela colecção, e Calouste Gulbenkian colecionador de manuscritos iluminados, de François Avril, um dos melhores historiadores da arte na área da iluminura.

A coordenação geral deve-se a Angela Dillon Bussi, especialista em história medieval, ex-diretora assistente da Biblioteca Marciana de Veneza e da Biblioteca Medicea-Laurenziana de Florença, e conta, nos aspectos codicológicos, com a colaboração de Davide Baldi Bellini. A organização interna do catálogo divide-se em cinco grandes secções, estruturadas de acordo com a tipologia dos manuscritos - Bíblias e Comentários Bíblicos, Liturgia, Livros de Horas, Manuscritos Jurídicos e textos de Literatura Profana - e, dentro destas, de forma cronológica. Na nota de abertura, a autora explicita os critérios que presidiram à elaboração das entradas de catálogo, divididas em duas partes que se completam: o estudo codicológico, com um conjunto de campos pré-definidos - descrição, cadernos, escrita, encadernação, conteúdo, ornamentação e proveniência -, na ordem e conteúdo, transversais a todos os espécimes descritos, e a análise histórico-artística - Comentário -, que propõe uma leitura mais interpretativa e livre, de acordo com as características e especificidade de cada códice.

Mais do que uma ficha de catálogo, a informação fornecida sobre cada uma destas obras constitui, pela profundidade das investigações, uma pequena monografia. O estudo do texto, dividido entre conteúdo e comentário, oferece não apenas a descrição, como também as suas particularidades, complementadas pela reprodução de óptimas fotografias, que incluem pormenores e fólios plenos. De igual modo, também a descrição e análise da ornamentação, compreende um primeiro momento de análise uniformizada seguido por um comentário livre, desdobrado em duas categorias: iconografia e estilo. A utilização deste último vocábulo - estilo - não nos parece a escolha mais adequada, em especial se atendermos às críticas que, desde há muito, a utilização deste conceito tem sofrido. Estudo histórico-artístico sugere-nos ser mais adequado, já que permite um tratamento mais livre, de acordo com a especificidade de cada artista, sobretudo quando se reporta a obras de excepção.

Também a apresentação da colação devia, quanto a nós, permitir uma mais clara visualização da relação dos cadernos com as divisões do texto, aspecto da maior relevância para a avaliação da integridade dos códices e compreensão da sequencialização do seu conteúdo, em especial por estarmos perante manuscritos que foram sujeitos a processos de reencadernação.

A primeira secção - Bíblia e Comentários Bíblicos - encerra quatro entradas: duas folhas destacadas de um Moralia in Job; duas outras pertencentes a uma Bíblia de formato monumental; um Apocalipse, iluminado em Inglaterra na segunda metade do século XIII; e uma Bíblia francesa, num único volume, das primeiras décadas da centúria seguinte. O primeiro (M79 A e B), por se tratar de um fragmento do século XII, não corresponde na integra aos critérios de Gulbenkian mas constitui um testemunho importante do que foi a excelência do desenho em articulação com um dos textos mais lidos na Idade Média, os Moralia in Job, de Gregório Magno; o segundo (M80 A e B), em latim, pertence a uma bíblia francesa, das primeiras décadas do século XIII. Segue-se um excepcional comentário ao Apocalipse de Berengaudo de Ferrière (LA139). Este manuscrito, amplamente estudado e presente em numerosas exposições, mereceu uma descrição detalhada do seu texto e um rico comentário artístico de Nigel J. Morgan, amplamente documentado, onde o autor afirma que “... é talvez o mais sofisticado manuscrito iluminado inglês da sua época”. Por último, um raro exemplo de uma bíblia do século XIV (LA211), de grande formato, ricamente iluminada, condensando num único volume os Livros do Antigo e Novo Testamentos, com programas iconográficos próprios das bíblias dos séculos XIII e XIV.

Segue-se a secção da Liturgia constituída por 5 códices de grande aparato e cinco fragmentos destacados de 4 obras, numa selecção muito caloustiana, com programas iconográficos extensos encomendados aos melhores artistas da sua época, com utilização das tintas mais preciosas e grande profusão de ouro. Começa por um luxuoso gradual e sacramentário (LA222), manuscrito comprado por Gulbenkian à abadia beneditina de Admont quando esta passava por grandes dificuldades económicas que, para além da importância artística, inclui a representação de Gebhard de Salzburgo, o arcebispo que em 1074 fundou o mosteiro. Foi iluminado cerca de 1270 por Giovanni da Gaibana, eclesiástico, e um dos grandes iluminadores italianos deste período, em colaboração com outros membros da sua oficina.

Digno de nota é também o Breviário franciscano do século XIV iluminado em grisalha com nuances a púrpura e amarelo por discípulos de Jean Pucelle (LA133). Profusamente ilustrado com 241 temas iconográficos que, segundo Nigel Morgan, apresentam uma diversificada e alternativa iconografia em relação aos modelos pucellianos, é provável que este breviário se destinasse a um casal de comitentes da alta aristocracia que surgem representados em zonas diferentes do códice. Apesar da existência de outras obras provenientes deste ateliê, o manuscrito da Gulbenkian é o que apresenta iluminura mais rica, no que respeita à utilização do ouro nas numerosas iniciais que acompanham as miniaturas ou abrem parágrafos.

A secção dedicada aos Livros de Horas integra treze exemplares manuscritos, iluminados por artistas franceses, flamengos, holandeses e italianos; um incunábulo, iluminado em França; e três fólios soltos: dois, provenientes das Horas de Charles de Martigny, iluminadas por Jean Bourdichon cerca de 1490; e o terceiro, uma cópia tardia feita no século XIX, por um imitador deste artista. Entre os oito códices produzidos em França, destacamos as Horas iluminadas por Noël Bellemare em 1520 (LA217), pelo seu formato miniatural - 40 x 27 mm - e pela riqueza da encadernação do século XVII que segundo François Avril permite ligar a sua propriedade aos duques de Lorena. De entre os flamengos, escolhemos o de data mais recuada (LA144), iluminado por três Mestres diferentes, cerca de 1475. Despertou a nossa atenção o facto da autora, Lieve de Kessel, nada ter registado relativamente à análise dos textos, nem à sua organização, uma vez que é bastante irregular o códice inserir, imediatamente após o calendário, as variações textuais das Horas da Virgem para o período do Advento que, por regra, se posicionam no final deste ofício, assim como a localização das Horas da Virgem na parte final do códice; situação que parece evidenciar uma adulteração da sua estrutura primitiva.

Entre os dois códices holandeses, amplamente estudados por James Marrow, a nossa escolha recaiu sobre o menos conhecido (LA137), iluminado em grisalha e ouro, cerca de 1443, pelos Mestres das grisalhas de Delft. As iluminuras de página plena, executadas em fólios independentes, correspondem a uma produção seriada, muito particular e versátil, circunscrita àquela cidade. A volumetria escultórica presente nas figuras dos dezanove temas iconográficos do códice em análise, onde se incluem três composições inéditas que não se repetem noutros manuscritos do grupo, denota, segundo Marta Renger, a influência da obra pictórica de Jan van Eyck e confirma, uma vez mais, a superior qualidade das escolhas de Gulbenkian.

Ao terminar uma obra do Renascimento italiano, o Livro de Horas de Afonso I d'Este (LA149), iluminada na primeira década do século XVI pelo italiano Matteo da Milano, códice bastante bem preservado que Gulbenkian, sem saber, comprou já mutilado. As suas 14 iluminuras de página plena, actualmente conservadas na Galeria Strossmayer em Zagreb, foram destacadas do códice e separadas das cercaduras; felizmente conserva-se uma descrição do livro, quando este ainda se encontrava intacto, que permite reconstituir a sua estrutura primitiva. O códice inclui um retrato do duque de perfil, em oração no interior de uma inicial, que a generalidade dos autores considera ter sido tirado pelo natural.

Na sessão de manuscritos jurídicos, que compreende três fólios destacados e um códice, todos do século XIV, destacam-se os dois fragmentos pertencentes à cópia do Decreto de Graciano com comentário de Bartolomeu de Bréscia (M36 A e B). A aquisição destes dois fragmentos, que segundo François Avril pertenciam a um manuscrito de aparato produzido em Toulouse, justifica-se pela qualidade da iluminura. Com base em vinte e dois outros fragmentos existentes noutras colecções, o autor reconstitui parte do manuscrito desmembrado.

O Digesto de Justiniano (LA212) foi iluminado em Avinhão pelo Mestre do Pontifical de Pierre de Saint-Martial, o mesmo artista a quem se atribui a autoria de uma Indulgência concedida à Igreja de Santa Maria de Alcáçova de Santarém, actualmente à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Como sublinha o autor na nota final do seu comentário, embora se lamente a degradação sofrida com as inundações de 1967, o incidente fez deste códice “… um testemunho excecional da técnica de desenho utilizada pelo artista …”.

A encerrar o catálogo, a secção dedicada à Literatura profana, constituída por três códices completos, com textos de autores italianos - Giovanni Boccaccio, Severinus Boethius e Francesco Petrarca -, ricamente iluminados por artistas franceses e italianos, durante os três primeiros quartéis do século XV. Destacamos a tradução francesa da obra de Boccaccio, Des clères et nobles femmes (LA143). Trata-se de um códice de aparato, com iluminuras de grande formato que ocupam toda a largura da coluna de texto, executadas por diversos iluminadores: o Mestre de Boucicaut, um artista do círculo próximo do Mestre de Bedford, o Mestre da Cité des Dames, o Mestre do Aníbal de Havard e um artista não identificado, responsável apenas por um tema iconográfico. O códice encontra-se amplamente mutilado, conservando apenas 48 das 105 composições que originalmente ilustravam o texto.

Com a publicação deste catálogo, que deu a conhecer a um público mais vasto a verdadeira dimensão da colecção, estão reunidas as condições necessárias para a Fundação Calouste Gulbenkian organizar uma exposição onde se possa, com um olhar agora mais informado, apreciar o património iluminado que Calouste Gulbenkian nos legou.

Referências bibliográficas

DIAS, João Carvalho (ed.) - Manuscritos Iluminados Europeus na Coleção Calouste Gulbenkian. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2020. [ Links ]

Recebido: 14 de Março de 2021; Aceito: 14 de Março de 2021

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