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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.31 Lisboa jan. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.4000/medievalista.5054 

Editorial

Editorial - Fazer e comunicar ciência: O campo dos Estudos Medievais

Editorial - Making and Communicating Science: The Field of Medieval Studies

Luís Filipe Oliveira1 

João Luís Fontes1 

1 Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal.


Traz esta Medievalista em destaque um ensaio de Hermenegildo Fernandes sobre a História Contemplativa de José Mattoso. A distinção justifica-se por inteiro e a vários títulos. Desde logo, porque nele se recenseia o mais recente livro de um professor e de um investigador com um papel central na renovação da historiografia portuguesa e na formação das gerações mais novas, e que foi, também, director da Medievalista ao longo de muitos anos. Mas aquele livro, e, sobretudo, o ensaio que lhe deu o nome, é mais do que um testemunho da prática historiográfica de José Mattoso, na sequência das reflexões que este já publicara sobre a escrita da história. Apesar de uma linguagem mais poética, que insiste na dimensão contemplativa da disciplina e na forma como esta desvela o passado, o discurso do autor apresenta-se neste ensaio com uma maior dose de abstracção, facto pouco comum na sua produção anterior. Situa-se, assim, de forma evidente, no campo da teoria do conhecimento histórico, com observações importantes sobre a natureza do objecto conhecido e sobre as operações intelectuais necessárias para o circunscrever e para o captar, num diálogo crítico e informado com as tendências actuais da investigação. Tudo excelentes motivos, portanto, para que o ensaio tenha o destaque merecido nas páginas desta revista.

O desafio lançado pela Medievalista e aceite por Hermenegildo Fernandes fica agora à disposição dos leitores. O resultado apresenta-se como uma sentida homenagem a José Mattoso, feita por um dos seus antigos alunos e concretizada da melhor forma, através de um conjunto de glosas, como ele próprio as designa, que comentam e avaliam as reflexões originais, mas que as ampliam, também, em múltiplos sentidos. Sobretudo no que respeita às relações entre as diferentes escalas de observação e à impossibilidade de analisar o concreto e o individual fora de quadros interpretativos mais globais, sob pena de cair na tirania do efémero e do circunstancial. Ou ainda no que toca, mas já noutro plano, às ameaças que hoje se acumulam sobre a prática dos historiadores, em resultado dos paradigmas impostos por outras ciências e que reforçam o peso crescente da técnica, do imediato e da utilidade, tanto no financiamento da investigação, como na produção e na comunicação de saberes sobre o passado. Importa sublinhar, por isso, que ambos os autores, seja o comentador, seja o comentado, adoptaram um género textual hoje pouco comum, o ensaio. Sem notas e com escassas referências bibliográficas, mas ricos em leituras e em remissões, os dois textos afastam-se dos cânones com que se procura formatar, e em parte deformar, toda a actual comunicação em ciência. Esta tendência já foi certeiramente caracterizada como a ideologia do paper, privilegiando a publicação imediata e de tema circunscrito, com dados com um recorte técnico cada vez mais acentuado e de preferência em revistas de maior renome, mas de circulação restrita e que cobram taxas de processamento demasiado altas. Tudo isto prejudica o diálogo e a partilha, e, em particular, a síntese e a explicação, quer dizer, a construção de quadros interpretativos mais gerais, necessários para apontar as lacunas e para abrir novos caminhos à investigação. Os géneros mais bem adaptados a estas funções, por permitirem reflexões mais longas e mais articuladas, como o livro e o ensaio, são objecto de um descrédito crescente, quando não são substituídos por outras modalidades mais expeditas, como o malfadado “estado da arte”, que ora preenche com menor proveito o serviço prestado pelos velhos balanços historiográficos. Abrir a Medievalista ao ensaio de Hermenegildo Fernandes sobre a História Contemplativa de José Mattoso é outra forma de marcar presença neste combate e de resistir a estas tendências.

De um modo ou de outro, as restantes peças do presente número não são alheias a estas preocupações. Integra ele, de novo, outro dossier temático, coordenado por dois editores externos, Isabel Beceiro Pita e César Olivera Serrano, e por outro interno, Isabel Barros Dias, e dedicado à recuperação e à análise dos intercâmbios entre os vários reinos da Hispânia, com o objectivo de interrogar as formas de manutenção, ou de ruptura, de uma identidade colectiva peninsular. Sem prejuízo da apresentação feita pelos coordenadores, importa notar a multiplicidade de temas e de perspectivas disciplinares, congregando os olhares da História, da História da Arte e da Literatura. A par de fenómenos mais conhecidos, como a circulação de fidalgos e de cavaleiros, ou o papel que os senhorios fronteiriços tinham nessas andanças, aí se revalorizaram as formas da mobilidade religiosa e as permutas de modelos artísticos e culturais que tinham lugar apesar das fronteiras dos reinos.

Aos cinco artigos do dossier temático, juntam-se outros quatro, todos reveladores da abertura da Medievalista ao diálogo e à partilha entre áreas disciplinares diferentes. Um deles é o estudo que Carlos Martínez Carrasco dedicou a um levantamento político e social na Bizâncio do século VII, uma geografia e uma cronologia com escassa presença nas páginas da revista. Os restantes abordam fenómenos com uma cronologia mais tardia e mais habitual. É o caso do trabalho em que José Luis Gaona Carrillo analisou os nomes de Deus no Proslogion de Santo Anselmo, para discutir as relações da fé com a razão e do ser com a verdade, sugerindo, a partir daí, uma identidade entre aquela obra e o De Veritate do mesmo autor. O vaso da unção que identifica Maria Madalena na pintura medieval italiana foi o objecto explorado por Vicki-Marie Petrick. Conjugando textos e imagens, analisam-se em detalhe a forma, os materiais e as funções daquele vaso, alvitrando-se a capacidade de ele significar a essência da condição feminina e até o papel da conversão das mulheres na história da redenção. Por fim, António Conduto Oliveira recupera o sentido perdido de uma antiga protecção do corpo, o gibanete, num texto que é, além do mais, um estimulante exercício de história comparada.

As apresentações de teses dão testemunho de recentes investigações académicas. Duas delas defendidas na Universidade do Porto. A de Miguel Aguiar, que tem o mérito de se afastar dos estudos de casos particulares e de procurar esclarecer a lógica e a coerência do funcionamento da aristocracia cortesã, a partir da análise dos mecanismos sociais da herança, da sucessão e da aliança. E a de Diogo Faria, que recuperou as práticas, os rituais e os agentes da diplomacia dos reis de Portugal durante boa parte do século XV, mas com observações importantes para os séculos anteriores, trazendo dados decisivos sobre a existência de uma cultura diplomática comum no Ocidente, e, também, sobre a crescente especialização dos agentes diplomáticos. Procede da Universidade Estadual de S. Paulo, o trabalho de Thiago Henrique Alvarado sobre a ordenação social da alimentação e do vestuário nos reinos de Castela e de Portugal dos séculos XIV e XV, estudados a partir de um vasto leque de fontes e que mostram a circulação de rituais e de modelos de conduta entre os dois reinos. Por fim, Carlos Filipe Afonso defendeu na Universidade Nova de Lisboa os resultados de uma investigação panorâmica sobre as operações militares entre 1128 e 1249, com dados novos sobre a coerência dos sistemas de defesa do território, sobre a diversidade militar da cavalaria-vilã, ou sobre as formas de tratamento dos vencidos, um tema corrente entre os juristas do Islão peninsular.

Nas recensões, ora mais escassas, Cynthia Maciel Regalado apresenta e comenta um livro sobre as raízes medievais da noção de raça e do moderno racismo, que recupera a importância das implicações morais que na Idade Média se atribuíam ao contraste entre o branco e o negro. Por outro lado, Paulo Catarino Lopes recenseia um livro sobre os primeiros séculos da história dos eslavos, quando estes abandonaram as planícies asiáticas e se instalaram na Europa Central e Oriental, processo ainda hoje pouco ou nada conhecido, sobretudo no Ocidente, mas com consequências determinantes para a história da Europa e para a relação desta com o continente asiático.

A Varia integra, por fim, um conjunto de notas mais breves, ora sobre investigações em curso, ora sobre os resultados que foram recentemente apresentados em colóquios e em outras realizações científicas. No trabalho que se publica, Maria José Mexia valoriza uma tipologia documental frequente e há muito conhecida - a carta de graça ou de doação condicional -, mas à qual não se prestou a melhor atenção, embora ela viesse a ser incorporada nas Ordenações Manuelinas. Por seu lado, Isabel Cristina Fernandes apresenta um conjunto de três encontros organizados pelo Gabinete de Estudos sobre a Ordem de Santiago, do Município de Palmela, que reuniram um número significativo de investigadores nacionais e estrangeiros, ao passo que Catarina Fernandes Barreira dá conta das intervenções da meia centena de investigadores que se juntaram durante os dois dias de trabalho dos Cistercian Worlds, uma iniciativa de dois jovens investigadores do Centre for Medieval Studies, da Universidade de York. A secção encerra com uma estimulante reflexão de Luís Urbano Afonso sobre os méritos e as lacunas da exposição sobre a Arte em tempos de Manuel I, que esteve patente no Museu Nacional de Arte Antiga, até finais de Setembro de 2021.

No conjunto, esta Medievalista dá a conhecer um número muito significativo de textos, de iniciativas e de investigações em curso, com as mais distintas proveniências, que são outros tantos testemunhos dos diferentes modos de fazer e de comunicar ciência no campo dos estudos medievais. Espera-se que, com eles, a revista se consolide como um espaço de difusão, de debate e de partilha de saberes, de dúvidas e de interrogações, de acesso livre e aberto à participação de todos, sem custos de qualquer tipo, nem para os leitores, nem para os investigadores. Como sempre se fez na Medievalista e se fará no futuro.

Luís Filipe Oliveira, João Luís Fontes

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