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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.31 Lisboa jan. 2022  Epub 30-Jun-2022

https://doi.org/10.4000/medievalista.5075 

Dossier

Apresentação do Dossier Temático “Intercâmbios Peninsulares”

Thematic Dossier “Peninsular Exchanges” presentation

Isabel Beceiro Pita1 
http://orcid.org/0000-0003-1076-2335

César Olivera Serrano1 
http://orcid.org/0000-0001-9971-6647

Isabel Barros Dias2 
http://orcid.org/0000-0003-3479-6660

1 Instituto de Historia (CSIC), Departamento de Historia Medieval, Calle Albasanz 26-28 28037 Madrid, España; isabel.beceiro@cchs.csic.es; cesar.olivera@cchs.csic.es

2 Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos de Literatura e Tradição; Instituto de Estudos Medievais 1070-312 Lisboa, Portugal, Isabel.Dias@uab.pt


O dossier temático “Intercâmbios Peninsulares” constitui um dos resultados do projeto "Transferencias humanas, culturales e ideológicas entre los reinos ibéricos (siglos XIII-XV)" (Ref. HAR2017-89398-P). Financiado pelo Ministerio de Economía, Industria y Competitividad, de Espanha, o projeto desenrolou-se entre 1 de janeiro de 2018 e 30 de junho de 2021, tendo tido dois Investigadores Principais: inicialmente, Isabel Beceiro Pita, do Instituto de História do CSIC, Madrid, foi a promotora da sua apresentação; seguidamente, em virtude da aposentação da primeira IR, em 2020, César Olivera Serrano, do mesmo Instituto, foi responsável por levar este barco a bom porto.

O objetivo primordial deste projeto de investigação consistiu na análise e estudo de deslocações humanas e de interações culturais e ideológicas no seio da unidade e, simultaneamente, da diversidade constituída pelos reinos ibéricos da Baixa Idade Média. No que se refere às transferências humanas, foram estudados três tipos de problemáticas: fluxos migratórios de linhagens nobres entre Castela, Aragão, Navarra e Portugal, os seus vínculos clientelares e mecanismos de integração, relacionando-os com a conjuntura política. Uma particular atenção foi dada às zonas fronteiriças, com destaque para os casos em que as zonas delimitadas pelos poderes régios não coincidiam com os limites senhoriais. Foram também investigadas atividades diplomáticas entre os reinos peninsulares. O estudo dos relacionamentos culturais incidiu sobre a circulação de objetos e manuscritos, a receção de obras e de autores, o uso das diferentes línguas peninsulares, a criação artística, os emblemas iconográficos e o patronato régio e senhorial..., tendo sido destacados temas e influências mútuas ocorridas durante o período em apreço. As relações ideológicas abordadas centraram-se na influência que as deslocações de pessoas e os intercâmbios culturais, já referidos, tiveram na conceptualização do poder régio e das elites. A partir destas linhas de força foram examinados fenómenos e situações indicadores de especificidade ou de unidade, estabelecidas as suas modalidades cronológicas e espaciais, bem como a sua relação com conjunturas políticas, linhas de expansão territorial, instauração de novas dinastias e de alianças interpeninsulares. A finalidade última do projeto foi, portanto, demonstrar que a afirmação dos distintos reinos ibéricos não implicou uma ruptura relativamente à identidade coletiva peninsular. Pelo contrário, a circulação de linhagens e oficiais de corte e as inter-relações culturais e ideológicas constituíram fatores decisivos para uma reformulação de perspetivas, de modo a conjugar a identidade específica de cada reino com a identidade peninsular coletiva. É precisamente a convergência desta unidade e diversidade o que ressalta dos artigos que compõem o presente dossier e que se caracterizam, na sua maioria, por considerar interações que incluem Portugal.

O dossier temático que agora se publica está intimamente ligado a uma atividade específica do projeto, o colóquio “Os intercâmbios peninsulares na Baixa Idade Média: as elites e a cultura” que decorreu entre 16 e 18 de outubro de 2019 na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. A organização do evento foi da responsabilidade do projeto e da FLUP, cabendo a sua coordenação a Isabel Beceiro Pita (IH-CSIC), Paula Pinto Costa (FLUP) e José Augusto de Sottomayor Pizarro (FLUP). Na ocasião foram apresentados 16 trabalhos por 18 investigadores, distribuídos por cinco sessões, tendo sido abordadas questões diversificadas, ainda que sintonizadas no que se refere ao tema axial do colóquio, as relações peninsulares. Os estudos então apresentados debruçaram-se sobre linhagens oriundas de um reino que se fixaram noutro, movimentações ocorridas no quadro de confrontos bélicos, deslocações de embaixadores, de exilados e de artistas... foi dada particular atenção ao facto de as múltiplas deslocações físicas identificadas, tanto de leigos, como de eclesiásticos, terem sido, muito frequentemente, acompanhadas por intercâmbios culturais e artísticos.

Os cinco textos que constituem o presente dossier são, na sua maior parte, fruto de investigações apresentadas no colóquio acima referido, agora em versões reformuladas e amadurecidas graças às reflexões que tiveram lugar no encontro, à evolução das pesquisas dos seus autores e ao diálogo construtivo e salutar que o processo de arbitragem cega proporciona. Aos quatro estudos elaborados por José Augusto de Sottomayor-Pizarro e Paula Pinto Costa, Marta Cendón Fernández, César Olivera Serrano e Óscar Perea Rodríguez, inicialmente previstos, veio juntar-se, por feliz acaso, o trabalho de Francisco Javier Pérez Rodríguez, oportunamente proposto à revista Medievalista e cuja integração no dossier foi considerada da maior pertinência.

Pretende-se que os estudos agora publicados sejam representativos da multidisciplinaridade que caracterizou o projeto de investigação “Transferencias humanas, culturales e ideológicas entre los reinos ibéricos (siglos XIII-XV)”. Com efeito, os trabalhos perspetivam a questão das relações peninsulares na Baixa Idade Média a partir de diferentes áreas disciplinares (História, História da Arte, Literatura) e incidem sobre temas e objetos díspares: monges, fidalgos e freires--cavaleiros; as relações bélicas fronteiriças e o ultrapassar dessas mesmas fronteiras por pontes artísticas, culturais e religiosas; entendimentos e desentendimentos entre indivíduos e reinos; sem esquecer o imaginário que se cristaliza enquanto projeção, tanto de medos, como de anseios e de ideais.

O artigo que abre o dossier foi elaborado por Augusto de Sottomayor-Pizarro e Paula Pinto Costa (ambos da FLUP) intitulando-se “Fidalgos e freires-cavaleiros. Vidas sem fronteiras na Hispânia medieval”. O estudo destaca os comportamentos a-fronteiriços de múltiplos elementos da aristocracia portuguesa, desde a formação deste reino, no século XII, até à segunda metade do século XIV. No que aos fidalgos laicos se refere, são considerados três grandes grupos: membros da Família Real que casam ou que se exilam no reino vizinho (caso do Infante D. Pedro, filho de Sancho I, ou de Afonso Sanches e Pedro Afonso, bastardos de D. Dinis); figuras da alta nobreza que se deslocam por motivos políticos; e elementos de linhagens cujas estratégias de poder passam pelo estabelecimento de laços transfronteiriços. No que se refere aos fidalgos eclesiásticos, apesar de existirem Ordens Militares especificamente ibéricas ou portuguesas e de as Ordens mais amplas se subdividirem em ramos regionais, a pertença a uma destas organizações implicava a adoção de uma perspetiva a-fronteiriça, que ultrapassava as divisões políticas entre reinos. Esta diluição acentua-se ainda pelo facto de muitos destes freires--cavaleiros pertencerem a famílias cuja teia de relações se estendia por vários reinos. Assim, e com base nas pesquisas desenvolvidas, os autores do artigo sublinham que o entendimento da fronteira luso-castelhana pelas elites portuguesas se caracterizava pela fluidez, o que decorria e também estimulava a frequência dos contactos transfronteiriços.

Seguidamente, o artigo de Marta Cendón Fernández, da Universidade de Santiago de Compostela, “Intercambios artísticos en una diócesis transfronteriza: posibles semejanzas entre las catedrales de Tui y Braga”, aborda também a questão do ultrapassar de fronteiras, se bem que agora em contexto artístico e religioso. Assumindo a predominância das relações diocesanas sobre as fronteiras políticas existentes, a autora propõe que, para além dos pontos de contacto com outras edificações, como a catedral de Santiago ou Santa Fé de Conques, tenham existido semelhanças marcantes entre os projetos arquitetónicos, primeiro da igreja metropolitana de Braga e, seguidamente, do que se supõe que terá sido a catedral medieval de Tui (iniciada cerca de 1125). Com este intuito são, por um lado, apresentadas as estreitas relações entre as duas dioceses, que remontam ao período romano e se prolongam pela Idade Média e, pelo outro lado, considerados vários elementos arquitetónicos que já foram objeto de estudos e de questionamentos, tanto relativamente à catedral tudense, como à de Braga, caso da configuração primitiva das plantas, as cabeceiras, a quantidade e forma das absides… Este modelo terá ainda sido replicado por outras catedrais sufragâneas de Braga, como Ourense e Lamego (para além de Tui), o que comprova o dinamismo das relações artístico--culturais transfronteiriças existentes no período e região em apreço.

Incidindo sobre mosteiros da mesma área geográfica, se bem que trabalhando com fontes diferentes e adotando uma perspetiva disciplinar distinta, temos o estudo de Francisco Javier Pérez Rodríguez, da Universidade de Vigo, “Monges e mosteiros galegos em Portugal (séculos XII-XV)”. Com efeito, o estudo debruça-se sobre a atividade económica de um conjunto de mosteiros da Galiza meridional com domínio sobre territórios situados no reino português, maioritariamente entre os rios Minho e Lima. Os dados compulsados permitem o mapeamento destes bens e a identificação dos seus doadores no quadro das políticas gerais seguidas pelos reis portugueses, que interagem com os cenóbios galegos do mesmo modo que com os portugueses, até ao conflito que opôs Afonso IV de Portugal a Afonso XI de Castela, momento em que se opera uma viragem, tendo-se verificado confiscações. O autor considera ainda várias dinâmicas relacionais. Por um lado, o facto de Braga ter sido metropolitana de um conjunto de sedes galegas implicou frequentes deslocações de monges, para tratar de assuntos eclesiásticos, nomeadamente questões de justiça, da alçada do tribunal metropolitano. Por outro lado, três abades galegos realizaram missões em Portugal, por encomenda papal, e o mosteiro português de Pitões das Júnias foi afiliado a Santa Maria de Oseira. Retrata-se assim uma rede de intercâmbios e de influências transfronteiriças que, sendo primordialmente de caráter eclesiástico, também terão tido uma vertente cultural.

O contributo de César Olivera Serrano (Instituto de História - CSIC) intitulado “El conde D. Enrique Manuel (c.1343-1414) y las relaciones cortesanas luso-castellanas en tiempos de crisis dinásticas”, consiste num estudo bastante específico, sobre a biografia e linhagem do conde Enrique Manuel, filho bastardo do famoso D. Juan Manuel, descendente do filho mais novo de Fernando III de Castela e Leão. Elemento de uma poderosa linhagem, Enrique Manuel circulou entre Portugal, onde foi conde de Seia (sob Fernando I de Portugal) e Castela, onde foi conde de Montealegre (sob Juan I, Enrique III e Juan II). Com base neste percurso, o autor do artigo perspetiva os contextos históricos, políticos e culturais da época, que se caracterizaram pela instabilidade provocada pelas crises sucessórias ocorridas, primeiro em Castela (com os Trastâmara) seguidamente em Portugal (com os Avis). O protagonismo político de Enrique Manuel em Portugal é enquadrado na linha do prestígio e da presença da sua linhagem nesta corte, com destaque para os casamentos de familiares suas com elementos da casa real portuguesa (Violante Manuel e o infante D. Afonso, irmão de D. Dinis; Constança Manuel e D. Pedro). Tendo também casado em Portugal e sendo parente e próximo dos reis D. Fernando e Leonor Teles, Enrique Manuel teve uma participação ativa na cena política bilateral, nomeadamente no quadro de negociações de paz e relativas a projetos de casamento da infanta herdeira de Portugal, D. Beatriz. A crise dinástica portuguesa veio abalar a posição de Enrique Manuel, que deixou de ser referido pelas fontes portuguesas, nomeadamente por Fernão Lopes. Reaparece em território castelhano, fixando-se numa região onde se concentraram vários exilados portugueses, comunidade com a qual a sua família manteve e fortaleceu laços. O percurso de Enrique Manuel e da sua família atravessou reinos e guerras cristalizando-se assim como um exemplo de flexibilidade e adaptação face às instabilidades da época.

O dossier termina com o estudo de Óscar Perea Rodríguez, da Universidade de São Francisco, intitulado “Escitia y Escancia (o Escandia), el fabuloso pasado nórdico del neogoticismo cuatrocentista hispánico”. O artigo debruça-se sobre o tópico do “neogoticismo”, elemento fundamental do imaginário histórico medieval ibérico. Remontando o seu início ao Laus Spaniae de Santo Isidoro e à Crónica moçárabe de 754, esta cosmovisão que unia o reino das Astúrias e a subsequente Reconquista ao anterior reino visigodo foi veiculada por diversas crónicas até se fixar, no seu estádio mais completo, no século XIII, com as obras dos bispos Lucas de Tuy e Rodrigo Jiménez de Rada. Após um período de relativa dormência, o tópico ressurge nos séculos XV e XVI, articulado com a valorização dos topónimos Escitia e Escancia que, independentemente de algumas confusões, são valorizados como locais de origem da epopeia dos visigodos. Se as primeiras utilizações destes tópicos tiveram lugar no quadro da propaganda política cristã, que procurava fomentar a coesão dos reinos das Astúrias e de Leão face à ocupação muçulmana, a sua recuperação também se encontra marcada pela propaganda política, mas agora em articulação com as construções ideológicas e os projetos políticos dos soberanos da dinastia Trastâmara em Castela e Aragão. Um destaque especial é dado à obra de Alfonso de Cartagena e aos laços que tece para apresentar a monarquia como “fundamento espiritual y trascendente de la unidad territorial hispánica”, articulando paralelos entre Roma e Espanha com base no binómio decadência/recuperação. Esta dinâmica também se estende à lírica, sendo apresentados e analisados diversos poemas de cancioneiro, panegíricos, alguns com apontamentos messiânicos, que se referem às origens godas dos Reis Católicos, entroncando a dinastia Trastâmara na monarquia visigoda.

O conjunto de artigos agora publicado contribui para demonstrar que os estudos desenvolvidos no quadro do projeto "Transferencias humanas, culturales e ideológicas entre los reinos ibéricos (siglos XIII-XV)" atingiram os objetivos previstos, nomeadamente a reformulação de alguns pressupostos, como o ponto de vista das pesquisas que se centram nas coroas de Castela ou de Aragão para, a partir daí, observarem o conjunto peninsular. Exemplo disso é precisamente a importância dada a Portugal, um reino relativamente pouco abordado pela historiografia espanhola. A consciência da necessidade de transcender fronteiras levou à adoção de um ponto de vista que contraria as balizas mais usuais da historiografia atual, que se foca em âmbito regional ou se fragmenta ainda mais em estudos de caráter local. O facto de assumir uma perspetiva interdisciplinar, conjugando a História com a Literatura e a Arte, possibilitou centrar o projeto no âmbito da História Cultural, fomentando o diálogo, não só entre distintas disciplinas, mas também a aplicação de ferramentas e perspetivas diversas sobre múltiplas fontes (textos literários, fontes diplomáticas, testemunhos das artes plásticas). Foi assim possível desenvolver pesquisas que, sem descurar as especificidades inerentes a cada reino, privilegiaram o estudo da identidade hispânica global. Deste modo, o trabalho desenvolvido procurou abrir novas possibilidades de aproximação à complexidade do medievalismo hispânico, tal como espelhado no conjunto de artigos agora publicado.

Recebido: 14 de Novembro de 2021; Aceito: 14 de Novembro de 2021

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