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Medievalista

On-line version ISSN 1646-740X

Medievalista  no.31 Lisboa Jan. 2022  Epub June 30, 2022

https://doi.org/10.4000/medievalista.5167 

Recensão/Review

Recensão/Review: Los antiguos eslavos.

1 Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais, 1070-312 Lisboa, Portugal; paulo.lopes@fcsh.unl.pt

Torres Prieto, Susana. -, Los Antiguos Eslavos. ., Madrid: :, Editorial Sintesis, ,, 2020. (, 213 ppp. .).


Escrita para o público em geral, mas dotada do necessário rigor académico, a obra objeto desta recensão vem preencher uma lacuna antiga e profunda na historiografia ibérica - e não apenas espanhola, apesar de ser para este espaço que se dirige em primeiro lugar -, em boa parte resultante da pouca repercussão que tiveram os estudos sobre o mundo eslavo no mundo académico em geral. Neste sentido, Los Antiguos Eslavos representa desde logo um excelente e muito bem-vindo contributo para todos os interessados (especialistas ou não) desta temática, quer no âmbito da historiografia, sobretudo medieval, quer ao nível dos estudos literários e da própria linguística histórica. O título, aliás, não podia ser mais directo e esclarecedor.

Amadurecido por cerca de duas décadas de reflexão e assumindo uma importante feição didáctica, o texto de Susana Torres Prieto permite um acesso inteligente, fundamentado e muito pertinente - dada a ponte que estabelece com todo um conjunto de problemas de primeira actualidade, cujos exemplos maiores e mais recente são os protagonizados pela Polónia vs Bielorrússia e Ucrânia vs Rússia - ao mundo dos eslavos, uma ramificação étnica e linguística de povos indo-europeus, no complexo período em que chegaram à Europa, ou seja, em torno da aurora do século VI.

Na essência, este texto procura responder a uma pergunta central: quem eram os antigos eslavos? Partindo desta interrogação fundadora e do facto de a história mais antiga deste povo ser desconhecida, a autora opera uma longa “viagem” na qual explica de maneira global o passado de grande parte do leste da Europa, ao mesmo tempo que constrói uma esclarecedora e sólida introdução aos primórdios da cultura e civilização eslavas nas suas diversas dimensões. Noutra vertente ainda, o texto visa dar a conhecer em que medida os eslavos - que, linguisticamente falando, são hoje o povo mais numeroso da União Europeia - contribuíram para a formação da Europa na Idade Média.

Susana Torres Prieto, centra, pois, a sua atenção na análise da época que designa de comunidade - antes, portanto, do surgimento das modernas nações eslavas. Trata-se do tempo em que foram um único povo e falavam uma mesma língua, ou seja, dos séculos de formação e ruptura entre os grupos eslavos e que conduziram à formação do quadro geopolítico actual.

Debatendo-se ao longo de todo o livro com o conceito de eslavo, sobretudo, como definidor de uma filiação linguística, a autora analisa permanências e rupturas entre o presente e esta Primeira Idade eslava, sobretudo por via linguística, destacando a existência de três grandes áreas de influência geopolítica, religiosa e cultural: a central, a balcânica e a oriental. E transmitindo sempre ao leitor as teorias mais relevantes, que nas últimas décadas têm concentrado os debates no meio académico.

O livro está cuidadosamente estruturado em sete capítulos temáticos, subdivididos em diversos subcapítulos, dada a extensão e complexidade do tema. No final, apresenta uma criteriosa selecção de fontes representativas destes séculos iniciais do mundo eslavo - algumas das quais traduzidas pela primeira vez para o espanhol, de que é bom exemplo o tratado sobre as letras eslavas -, bem como uma cronologia, que ilustra bem na diacronia o percurso debatido ao longo de todo o texto. Encerra em definitivo com uma bibliografia especializada, de referência, que fornece um muito proveitoso enquadramento teórico ao problema em análise e onde a autora evidencia o diálogo que estabelece com outras historiografias.

Os sete capítulos são precedidos de uma breve introdução centrada na questão da “Europa reunificada” e onde é apresentado o objectivo do livro: colocar em evidência o que unia os eslavos durante a sua época de comunidade e, até certo ponto, enquanto rica herança cultural, relaciona todas as modernas nações eslavas. Além de resumir aqui o que cada parte contém, a autora explica a divisão do mundo eslavo dentro da geografia europeia e as razões para tal: primeiro as causas político-militares com a chegada dos magiares e depois com o império Otomano, o Sacro Império Romano-Germânico e o império Russo; depois, as causas religiosas com a divisão entre cristianismo latino e cristianismo ortodoxo. Fica ainda explanada na Introdução a fundamentação heurística da investigação, assim como a metodologia seguida no desenvolvimento da obra, com particular destaque para o esforço interdisciplinar na explicação dos fenómenos evocados. Uma opção que enriquece o texto e abre caminho para novas leituras e pistas de investigação.

Na primeira parte, dedicada à chegada dos eslavos à Europa, a autora destaca a importância de um tempo e espaço específicos, bem como as divisões sucessivas que se seguiram a essa chegada, com especial repercussão ao nível da língua, da distribuição geográfica e da religião.

Ao não terem escrita, os testemunhos disponíveis acerca desses eslavos antigos são os dos povos com quem entraram em contacto, desde os cronistas bizantinos aos bispos alemães. A autora realça ainda a existência de testemunhos arqueológicos que ajudam a ter uma ideia próxima de como era a vida de comunidade deste povo indo-europeu.

A dificuldade em estudar os eslavos antigos passa também pelo facto de que estes fogem à forma canónica de dividir o tempo no Ocidente: Antiguidade, Idade Média, Renascimento, Idade Moderna e mundo Contemporâneo. Ora, os eslavos não conheceram a Antiguidade, pelo que não lhes é possível atribuir uma “Idade Média”. Não estiveram no “meio” de nada e, consequentemente, não experienciaram tão pouco um “Renascimento”. As mudanças aconteceram de forma gradual e não foram claramente perceptíveis, em particular para os próprios.

Por isso, este volume centra-se no progressivo processo de atomização que tem lugar no período que vai do aparecimento dos primeiros eslavos na Europa, época em que eram uma entidade cultural e linguística homogénea, até ao momento em que sofreram as suas próprias invasões “bárbaras” vindas do Leste, passando pela aparição de permeio dos incipientes estados eslavos. Ao não serem uma entidade política homogénea, como aconteceu com Roma, não é possível estabelecer um ponto final preciso, pois as cronologias variam consoante as zonas. Assim, a autora afirma que a Idade Antiga eslava termina com a chegada dos magiares, mas também dos mongóis ou dos otomanos. No final deste capítulo, a autora sublinha ainda a divisão das igrejas ortodoxas em três grandes famílias.

A segunda parte aborda o tópico das fontes historiográficas e dos testemunhos arqueológicos. Este capítulo divide-se em seis subcapítulos, designadamente: quem são os eslavos?; evidências linguísticas; fontes historiográficas não eslavas (fontes romanas e bizantinas, fontes francas e carolíngias, testemunhos do clero alemão, relatos de viajantes árabes); fontes historiográficas eslavas (ou seja, após estes acederem à escrita); evidências arqueológicas (cultura material, enterramentos) e, finalmente, dados etnográficos (família e comunidade - a autora explora neste ponto o papel da mulher, as práticas quotidianas, sobretudo em termos da funcionalidade da língua, o papel das crenças pagãs e do folclore daí decorrente).

Em suma, Susana Torres Prieto destaca quatro tipos de fontes disponíveis para estudar os eslavos antigos: linguísticas, historiográficas, arqueológicas e etnográficas. Na sequência, explora cada uma delas tendo em vista as suas potencialidades e limitações, com particular incidência no primeiro tipo - reflecte sobre a evolução, rumo e distribuição geográfica das línguas eslavas, isto é, sobre a forma como se desagregaram do núcleo comum inicial e deram origem às doze línguas eslavas actuais (como se foram separando e diferenciando, ainda que mantendo uma grande similitude, verificável hoje em dia). De realçar ainda a reflexão que opera sobre a forma como a cultura oral e a cultura escrita (primeiro com o alfabeto glagolítico, depois com o cirílico) contribuíram para a evolução - leia-se inovação, variação, ou, ao invés, maior conservação -, mais lenta ou mais acelerada, da língua eslava. Mas também o explicitar da relação decisiva e fundadora da evolução e fixação da língua eslava com a missão evangelizadora dos irmãos Cirilo e Metódio (862-863).

A terceira parte, com sete subcapítulos, aborda o tema dos primeiros estados eslavos, com particular atenção para a relação entre os ávaros e os eslavos, a Confederação de Samos, a Grande Morávia, os eslavos dos Balcãs ocidentais, o primeiro império búlgaro e os enclaves comerciais dos rus’.

A autora traça aqui um percurso histórico pelos primeiros estados, ou Proto estados, que os eslavos antigos estabeleceram, quer a Ocidente quer a Oriente. Destaca como o processo de fundação dos primeiros estados eslavos acompanhou a crise e o esgotamento do império bizantino. Realça igualmente como o contacto directo com outros estados, tanto ocidentais como orientais, conduziu os eslavos a formular formas de governo e expansão copiadas em parte dos seus vizinhos. Dá como exemplos maiores os búlgaros, a Ocidente, e o estado de Rus’ de Kiev - cuja origem é escandinava e não eslava - na parte oriental, que tantos conflitos alimenta entre as modernas Ucrânia e Rússia.

Na quarta parte, que visa compreender o complexo processo de cristianização dos eslavos antigos, a autora começa por reflectir sobre o paganismo eslavo, destacando a dificuldade do tema dada a escassez e parcialidade de grande parte das fontes. Efectivamente, a falta de evidências arqueológicas em relação a santuários, o facto de não existir na literatura eslava nem uma teogonia nem textos semelhantes às sagas ou eddas escandinavas, nem tão pouco descrições de cultos e das funções, torna muito difícil a tarefa de tentar decifrar a consciência e a vida religiosa dos eslavos antes da sua cristianização. Os dados para um suposto paganismo, enquanto religião estruturada, organizada e socialmente relevante, que não tinha como principal divindade o Deus cristão ou que não era monoteísta, simplesmente não têm a solidez necessária do ponto de vista científico.

Em seguida, a autora analisa a relevância do processo de cristianização na constituição da escrita eslava - primeiro, através do alfabeto glagolítico, que teria tomado como base as letras manuscritas minúsculas do grego bizantino, depois com o alfabeto cirílico - e na sua posterior utilização de forma sistemática.

Ainda nesta quarta parte, a autora demonstra como a cristianização dos eslavos se produziu num momento-chave na formulação do que era e irá ser a Europa antes do fim do primeiro milénio: as tensões entre Roma e Constantinopla acerca da definição do próprio cristianismo. Revela igualmente como o processo de adopção do cristianismo como religião oficial dos emergentes estados eslavos esteve intimamente ligado à missão que empreenderam os irmãos Constantino-Cirilo e Metódio, enviados do patriarca de Constantinopla, Fócio I, pelas terras da Grande Morávia e as consequências profundas e largas no tempo daí decorrentes. Sucedem-se abordagens à cristianização dos eslavos orientais e da Polónia, e uma reflexão aprofundada sobre a presença do cristianismo no mundo eslavo, descrevendo de forma sumária algumas das principais diferenças entre o cristianismo latino e o cristianismo eslavo ortodoxo, tendo em conta os tópicos da liturgia, teologia, monaquismo, imagens e das relações Igreja-Estado.

Termina este longo capítulo examinando as seitas e heresias religiosas de alguma forma associadas ao mundo ortodoxo (os casos do bogomilismo e do hesicasmo, movimentos que floresceram nas Igrejas ortodoxas eslavas, mas também o movimento hussita), e destacando que a conversão dos eslavos está ligada não apenas a motivos religiosos, mas também a motivos e circunstâncias políticas e sociais.

De salientar, ainda nesta quarta parte, os esclarecimentos que efectua acerca da relevância dos ícones, um elemento fundamental para compressão do mundo eslavo e da religião ortodoxa. Estes não são uma “representação” artística, mas objectos de veneração, constituindo por isso uma porta para a contemplação. Isto sem deixar de reflectir sobre a importância da controvérsia iconoclasta para a afirmação dos ícones na igreja ortodoxa.

Merecedor de destaque é também o facto de, mais uma vez atribuindo grande atenção à questão linguística, a autora sublinhar que a língua eslava foi uma das poucas que não foi sepultada por uma língua imperial, o que fez com que os idiomas eslavos sejam o grupo linguístico mais numeroso da Europa moderna.

A quinta parte é dedicada ao surgimento das novas nações e dos novos credos, a saber, a Polónia, Boémia, Croácia, Sérvia, Bulgária, Rus’ de Kiev e Novgorod. A autora evidencia como o fenómeno da cristianização, enquanto acção política, acelera ou força, consoante a perspectiva, a consolidação de certos estados que são reconhecíveis hoje, ainda que com as necessárias ressalvas. Por outro lado, alguns destes estados começaram a desenvolver uma política interna de organização e uma política exterior de alianças com outras nações europeias, o que lhes confere uma identidade nacional ainda hoje facilmente reconhecível, embora, naturalmente, as fronteiras antigas difiram das modernas, como é o caso da Bulgária, Sérvia, Polónia, Croácia e Rus’ de Kiev. Chama igualmente a atenção para a originalidade política, o florescimento económico e a superlativa criação artística e cultural de alguns destes estados, de que é bom o caso da república de Novgorod.

A sexta parte foca-se no exame específico das línguas e culturas eslavas, com particular atenção para o património linguístico e cultural das mesmas, a relação entre línguas e alfabetos, a escrita e a literatura (com realce para os conceitos Slavia Latina e Slavia Ortodoxa, criados pelo linguista italiano Riccardo Picchio), a herança oral, o movimento do pan-eslavismo e respectivo contexto histórico, e, mais uma vez, a centralidade dos ícones.

Por último, na sétima parte, Susana Torres Prieto conclui o seu estudo, fazendo sobressair que a época de consolidação dos novos reinos eslavos foi abruptamente interrompida pelas invasões orientais dos mongóis e dos turcos otomanos, que vão novamente reorganizar o mapa da Europa, e, a Ocidente, pela hegemonia do império austríaco dos Habsburgo. Segundo a investigadora, quase todos os estados que se criaram ao longo dos primeiros séculos de implantação eslava na Europa, e que se organizaram de maneira mais ou menos coerente, vão ser liquidados ou transformados pelo surgir destes impérios. Esta é a fronteira temporal do livro, pois, a partir daqui nada será como antes. A Idade Antiga eslava, ou Primeira Idade, havia chegado ao fim.

Noutra vertente, apesar de todas as dúvidas de carácter científico e sem cair na generalização, apresenta algumas das características dos eslavos antigos que considera nucleares na definição civilizacional dos mesmos, nomeadamente o não terem dado importância maior ao facto de as suas elites políticas serem de outros povos, fossem búlgaros ou escandinavos. Numa manifestação de aculturação das elites pela população dominada raramente vista na história da humanidade, todos aqueles que vieram acabaram por falar a sua língua.

Em síntese, primando pela originalidade, Los Antiguos Eslavos é um livro erudito, mas muito acessível à leitura. Um texto que tenta explicar muito bem o que sabemos e o que não podemos chegar a saber, transmitindo de permeio a ideia de que o mundo eslavo está muito mais perto de nós do que parece, e de que partilhamos imensa história ainda que hajam passado séculos de silêncio e de incomunicação. Um instrumento apropriado, porque estabelece pontes directas entre o passado medieval e a actualidade, para compreender os problemas que ainda hoje têm lugar nesta parte da Europa. Através de uma escrita fluida e de uma argumentação muito bem articulada e fundamentada, esta é, enfim, uma obra que tenta fazer justiça a uma parte da Europa fascinante, mas que continua a ser desconhecida.

Referências bibliográficas

TORRES PRIETO, Susana - Los Antiguos Eslavos. Madrid: Editorial Sintesis, 2020. [ Links ]

Recebido: 15 de Dezembro de 2021; Aceito: 15 de Dezembro de 2021

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