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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.32 Lisboa jul. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/medievalista.5620 

Editorial

Editorial - As opções e a vocação da Medievalista

Editorial - Missions and options of Medievalista

Luís Filipe Oliveira1 

João Luís Fontes1 

1 Instituto de Estudos Medievais, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal


Há muito que a Medievalista tem vindo a afirmar-se como uma revista de referência na área dos estudos medievais. Com a publicação regular de dois números por ano, sempre em acesso livre e sem quaisquer custos para autores e para leitores, aposta na criação de uma plataforma internacional de divulgação, de partilha e de debate de ideias e de perspectivas. Através da publicação de estudos inovadores, pretende cruzar diferentes áreas disciplinares e transpor as tradições historiográficas mais diversas, para aproximar as distintas geografias de estudo e de investigação em estudos medievais. Tem sido esta a vocação da Medievalista nos últimos anos, num impulso para revitalizar as fronteiras dos saberes e das disciplinas da melhor forma, aspecto que é, aliás, património comum do Instituto de Estudos Medievais.

Os últimos números publicados confirmam a adopção clara destes princípios e destes objectivos. Seja pelo desenvolvimento de novos temas - a escultura polícroma em madeira dos séculos XI a XIII, os eclesiásticos e a política nos séculos XIII e XIV, ou a circulação de modelos culturais na Hispânia, entre outros -, seja pelo contributo dos investigadores com as origens geográficas e as afiliações institucionais mais diversas. De autores consagrados, como Lucretia Kargère, Joseph T. Snow, Hilário Franco Jr., Thierry Pécout, Arsenio Dacosta, Xosé Ramón Mariño Ferro, Rémy Cordonnier, Alan Forey e Karl Borchardt, aos mais jovens investigadores, por vezes em início de carreira. Desde 2019, pelo menos, os estrangeiros têm predominado entre os autores publicados pela revista (56%), período em que os trabalhos editados em língua portuguesa (36%) se reduziram a pouco mais de um terço do total. Entre as restantes línguas de publicação, avultam o inglês (27%) e o espanhol (26%), mais afastados o francês (9%) e o italiano (2%), numa diversidade linguística e cultural que importa manter e preservar. Para assim resistir às tendências actuais que resumem cada vez mais ao inglês a ciência que se faz, ou a que conta e se valoriza, pelo menos. Se a Medievalista é, por certo, uma revista portuguesa, não é seguramente uma revista feita por e para portugueses, menos ainda sobre os temas específicos da história de Portugal.

O número actual da revista, que ora se apresenta, mantém esta linha de rumo. Traz em destaque um artigo de Denys Pringle sobre a transformação de Jerusalém numa cidade cristã, que procura avaliar o impacto que a conquista de 1099 teve na demografia e nas estruturas urbanas. Estas últimas foram certamente significativas, com a conversão da mesquita al-aqsa num palácio régio e a ampliação do Santo Sepulcro, ou a construção do alcácer com uma planta triangular, assim renovando os centros de prestígio e de autoridade da cidade. Nem sempre o sentido destas era unívoco e a redução da área das muralhas urbanas foi acompanhada de um aumento da população. Por finais do século XII, Jerusalém terá recuperado os níveis anteriores à conquista, apresentando nessa altura entre 20.000 a 30.000 moradores, o tamanho de Acre, de Florença e de Londres pela mesma época.

Dois outros artigos situam-se nesta linha de investigação e de reflexão, preocupados com as dinâmicas de intercâmbio e de transição entre as sociedades islâmicas e cristãs da Hispânia. Um deles, de Manuel Luís Real, respeita à presúria de Vila Cova, a actual Penacova, e à refundação do mosteiro de Lorvão no século X, trazendo uma releitura de diplomas conhecidos e identificando Bermudo Ordonhes como o responsável por estas operações na fronteira do Mondego. A par de outros dados sobre a região, os grupos aristocráticos nela presentes e os conflitos entre eles, ou a presença de norte-africanos na comitiva de Bermudo Ordonhes, a informação dos diplomas associa-se por norma aos vestígios artísticos e arqueológicos da época, numa conjugação destes diferentes materiais que não é comum. O segundo trabalho é de Jean-Pierre Molénat e analisa o destino dos cristãos arabizados, os moçárabes, presentes em três cidades peninsulares, Coimbra, Toledo e Lisboa, na época das conquistas cristãs. Num exercício de história comparada, sublinha-se a divergência entre as cidades portuguesas e a castelhana, já que Toledo conservou uma comunidade moçárabe até finais do século XV, enquanto as de Coimbra e de Lisboa desapareceram muito antes. Talvez devido à menor resistência da monarquia portuguesa às pressões da Santa Sé, como sugere o autor.

A crença no regresso de Artur é o tema do trabalho de Isadora Martins, na linha de contacto entre a história e a literatura. Apostando na distinção entre o Artur da lenda e do romance e o das crónicas e das hagiografias dos séculos XII e XIII, a autora pretende recuperar o sentido daquela crença, sugerindo que esta correspondia na origem, antes de ser um motivo literário, a um discurso de resistência das gentes comuns, em torno do qual se articulava a esperança numa expulsão dos estrangeiros. Pertence ao mundo da cavalaria, mas num registo mais profano, o artigo de Afonso Soares Sousa sobre o cavalo no período de formação do reino português. Sem considerar o cavalo como instrumento de guerra, aspecto mais estudado, o autor oferece uma visão bastante completa, quase panorâmica, do cavalo medieval. Desde a estatura e a criação destes, feita pelos reis, pelos mosteiros e pelos grandes senhores, à sua identificação corrente pela cor das pelagens e pelas suas distintas capacidades, aos preços que atingiam nos mercados entre 900 e 1226, ou ao seu valor como símbolos de poder e de prestígio.

Os restantes artigos lidam com realidades portuguesas, ou peninsulares. A partir de uma revisitação da carta de 25 de Fevereiro de 1327, Jorge Prata propõe recuar para 18 de Fevereiro desse ano a data da ordenação dita de 1332 sobre o Livramento dos Feitos na Corte, que vedara a presença de advogados e de procuradores do número nos tribunais da Corte. A par desta correcção, o estudo traz outros contributos, quer sobre a relação das cartas da chancelaria com os itinerários do rei, quer, sobretudo, sobre a distinção entre o mandar e o ver, as fórmulas para significar o poder de produzir e de validar os diplomas. Por seu lado, Maria Filomena Andrade e de João Luís Fontes revisitaram as casas religiosas estabelecidas em Lisboa após a conquista cristã. Primeiro nos arredores da cidade, depois, já no século XIII, com a construção de um verdadeiro aro conventual, em parte absorvido pela nova muralha fernandina, já que a presença destas casas foi mais rara no antigo casco urbano. Em contrapartida, María Ríos Rodríguez e Maria Fraga Sampedro analisaram as origens da observância franciscana na Galiza, através do estudo dos frades da pobre vida, cujos oratórios se situavam em espaços ermos, ainda que contassem com o apoio dos poderes do século e das elites sociais. Dois outros artigos fecham este apartado. Num deles, Daniel Quesada Morales analisou a rede de acéquias que cruzava Granada no século XVI, abastecendo fontes, tanques e cisternas, regando as hortas, ou levando as águas residuais para o exterior. No último, a Professora Iria Gonçalves recuperou as decisões do concelho do Funchal, em 1488-1489, para evitar o contágio da peste. Com o isolamento dos doentes e a quarentena dos recuperados, e, sobretudo, das tripulações dos barcos que chegavam ao porto, ou com as restrições à circulação e a exigência de certificados de saúde, num exercício com interessantes paralelos em tempos muito recentes.

A diversidade de temas e de proveniências manteve-se nas secções fixas da revista. Nas recensões, Virgolino Ferreira Jorge analisou uma obra sobre o urbanismo castelhano da segunda metade do século XIII, época de criação de novas cidades e de transformação doutras e para a qual se conhecem alguns regulamentos urbanísticos. Por seu turno, Miguel Aguiar recenseou uma obra colectiva sobre os arquivos familiares como espaços de construção de memórias e de identidades sociais, trazendo reflexões importantes sobre a relação da história dos arquivos com a evolução dos grupos aristocráticos. Por fim, João Luís Fontes comentou outra obra colectiva, desta vez sobre o papel da religião e da espiritualidade na delimitação das fronteiras e na consolidação dos reinos ibéricos dos séculos XII a XV. As notas de investigação integram, por outro lado, uma reflexão colectiva sobre a Ordem do Templo em Portugal, feita por Paula Pinto Costa, Luís Filipe Oliveira e Philippe Joserrand a propósito de uma dissertação de doutoramento que foi defendida em Coimbra, assim como a análise da transformação da cidade islâmica de Baeza num concelho medieval, feita por M. Victoria Gutiérrez no âmbito de uma investigação que cruza os dados da história com os da arqueologia do território. Encerra a secção um estudo de María Pandiello Fernández sobre o manuscrito (L) que serviu de base à edição da Crónica de Espanha de 1344, mas que traz dados novos sobre a origem do códice, a partir da análise das iluminuras que ilustram o texto. Por fim, na Varia cabe destacar o artigo de Armando Luís de Carvalho Homem que presta sentida homenagem ao falecimento de Philippe Contamine, o texto de Luís Correia de Sousa e de Adelaide Miranda sobre a exposição das bíblias românicas iluminadas, que teve lugar na Biblioteca Nacional, em Lisboa, ou as considerações de Pedro Picoito sobre a autoria e o sentido último da narrativa de conquista de Lisboa.

Mesmo sem publicar, desta feita, um dossier temático específico, este número da Medievalista traz muitos motivos de interesse. Ficam doravante à disposição de todos, certos de que a missão da revista se cumpre e se renova sempre que publica outro número.

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