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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.32 Lisboa jul. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/medievalista.5765 

Recensão/Review

Recensão / Review: La espiritualidad y la configuración de los reinos ibéricos (siglos XII-XV).

1 Faculdade de Ciências Sociais e Humanas - Universidade Nova de Lisboa, Instituto de Estudos Medievais 1070-312 Lisboa, Portugal; joaofontes@fcsh.unl.pt

Beceiro Pita, Isabel. (dir.) -, La espiritualidad y la configuración de los reinos ibéricos (siglos XII-XV). ., Madrid: :, Editorial Dykinson S.L., ,, 2018. (, 363 pp.p. )


Isabel Beceiro Pita tem-se destacado, há já muitas décadas, por uma investigação extremamente inovadora no campo da história dos reinos ibéricos durante a Idade Média, procurando, no cruzamento entre o político, o social, o cultural e o religioso, compreender a forma como estes mesmos reinos se foram construindo e afirmando, na complexidade dos diferentes contextos históricos. De modo particular, tem procurado esclarecer como as dimensões culturais e religiosas se mostram operantes neste mesmo processo, ora para revelarem a inscrição do passado medieval ibérico nos mais amplos dinamismos históricos que marcam o Ocidente medieval, ora para permitirem uma compreensão mais aprofundada dos mecanismos de legitimação e afirmação dos distintos poderes, leigos ou eclesiásticos, no âmbito da Hispânia medieval1.

Nascido do projecto “Identidades, contactos, afinidades: la espiritualidad en la Península Ibérica (siglos XII-XV)” (PN 2013, ref. HAR2013-45199-R), por si coordenado, este livro reúne oito contributos que, em comum, apresentam a preocupação de entender o papel da espiritualidade no complexo processo de consolidação dos reinos ibéricos ao longo dos séculos XII a XV, numa fase de clara ascensão e afirmação das monarquias nacionais por todo o Ocidente europeu, em paralelo com um idêntico processo de construção do Papado à imagem dessas mesmas monarquias, com um horizonte de domínio distinto porque universal. Tempos de expansão económica e territorial, de aperfeiçoamento dos mecanismos administrativos, militares e fiscais e de um desenvolvimento da teorização sobre o poder apoiada no Direito, nos novos textos aristotélicos, mas também nos motivos religiosos capazes de sustentar as reivindicações de soberania régia sobre os reinos em formação e expansão.

O olhar pretende-se amplo e integrador, capaz de romper a tradicional fragmentação do medievalismo peninsular: no questionar do papel da espiritualidade na própria concepção do poder régio e nas suas lógicas de afirmação e legitimação; no estudo do papel desempenhado pelas fundações monásticas, sobretudo em territórios de fronteira, muitas vezes alvos de disputa entre diferentes poderes; no entendimento da relação dos diversos reinos ibéricos com os mais amplos dinamismos religiosos que os unem ao resto do Ocidente, e no modo como necessariamente marcam as agendas e as estratégias políticas e de patrocínio religioso dos monarcas e da sua entourage.

Uma primeira secção, dedicada aos contactos entre os reinos ibéricos e o Ocidente europeu, abre com a análise do impacto das propostas cluniacense e cisterciense sobre os mosteiros dos reinos de Castela-Leão, Navarra e Aragão, nomeadamente na rede de relações que implicam com outros mosteiros além-Pirinéus. Como salienta Máximo Diago Hernando, além dos costumes novos que introduzem no universo hispânico, pela observância exclusiva da Regra de S. Bento e pela adopção da liturgia romana em detrimento da moçárabe, Cluny e mais tarde Cister corporizam uma forma de organização mais centralizada, com laços de dependência que se estendem às casas-mãe de ambas as ordens e, no caso de Cister, às abadias em que se filiam. Do mesmo modo, promovem uma significativa mobilidade dos monges, por via da celebração de capítulos gerais, do exercício do direito de visitação, ou ainda da transferência de monges para reformar nos novos costumes novas ou menos novas casas monásticas.

O autor estuda, aliás, o impacto de ambos os movimentos nos diferentes reinos ibéricos (à excepção de Portugal), bem como o importante papel “transnacional” que diversos destes mosteiros, situados na encruzilhada entre reinos, acabaram por assumir, tanto ao nível económico, como instâncias dinamizadoras de povoamento e de exploração económica dos seus domínios, como político.

As relações de dependência face a mosteiros de além-Pirinéus viriam a alterar-se significativamente com a fundação, em 1390, do mosteiro de S. Bento de Valladolid, depressa convertido em sede da observância beneditina em Castela, ao qual se ligam muitos mosteiros beneditinos que a ela aderem, incluindo diversos priorados cluniacenses que assim se desvinculavam da abadia borgonhesa. A par da consolidação do movimento observante entre os beneditinos, outras congregações surgem, quer entre os mosteiros femininos beneditinos de Castela, quer entre os cistercienses, neste caso a partir do mosteiro castelhano de Montesión, ao qual se junta o de Valbuena. As tendências para reforçar o intervencionismo régio na reforma destas ordens, apesar das tensões que daí derivaram, nomeadamente com Cister, continuariam até à consagração definitiva das diversas congregações “nacionais”, e a autonomia que lhes acaba por ser reconhecida no século XVI. Aliás, à imitação, acrescentaríamos, com o que acontece em Portugal, apesar de, neste caso, terem sido logradas as tentativas de introdução da observância beneditina durante o reinado de D. Duarte, por via do conhecido D. Gomes, abade de Santa Maria de Florença2, e só no século XVI se alcançar uma efectiva reforma do universo beneditino e cisterciense3.

Margarida Cantera Montenegro retoma a problemática do monaquismo em territórios de fronteira, tomando como ponto de observação as regiões de La Rioja e de Navarra, esta como verdadeiro enclave político e plataforma de interesses cruzados, e aquela enquanto terra amplamente disputada entre Navarra e Castela, na fronteira entre estes dois reinos e o de Aragão (domínio navarro entre 923-1076; domínio castelhano em 1076; recuperado por Afonso, o Batalhador e de novo sob domínio castelhano em 1134). Analisa cuidadosamente as características da implantação monástica nas duas regiões, tanto no que lhes é a este nível comum (a sua frequente ligação a origens eremíticas, a função repovoadora desempenhada pelos mosteiros, o apoio dos monarcas à expansão beneditina e cisterciense, a ligação de muitos destes cenóbios com o caminho de Santiago e a assistência aos peregrinos), como no que as distingue (distintos pesos do monaquismo feminino e da presença de beneditinos, cistercienses e jerónimos, distinta representação em Cortes, maior resistência de Navarra e La Rioja à reforma beneditina face a Castela). Tal como Diago Hernando, também salienta a complexa relação dos monarcas de Castela, Navarra e Aragão com estes mosteiros de fronteira, procurando, por meio de doações e privilégios, garantir o povoamento destes territórios e, em simultâneo, expandir a sua influência e o seu poder, ou mesmo assegurar o apoio político dos mosteiros a que se encontravam ligados (no caso de Cluny).

Ainda a territórios de fronteira, desta feita entre a Galiza e o reino português, se remete o terceiro texto, sobre a catedral de Tui e o modo como esta acaba por reflectir as características muito próprias de uma diocese que se erige em territórios que acabam por ser integrados em dois reinos distintos, que os disputam constantemente como espaço de expansão do seu poder. Neste aspecto, a concessão de doações e a outorga de privilégios surgem como meios de reforçar a presença e a autoridade dos poderes em conflito sobre o território. No entanto, e até ao deflagrar do Cisma (1378), a diocese tudense mantém a sua jurisdição sobre todo o território português entre os rios Lima e Minho, onde reúne um importante património e o padroado de muitas igrejas. Marta Cendón Fernández estuda aturadamente o evoluir dos contextos políticos, o suceder das doações e privilégios, mas também as tentativas de conquista do território pelos monarcas portugueses, ao mesmo tempo que integra neste devir as diversas fases de construção da sé de Tui. Neste estudo, torna evidente as estreitas relações que, ao longo do século XII, ligam a restaurada sé tudense com a canónica de Santa Cruz de Coimbra, tanto ao nível da implantação da reforma gregoriana e da renovação da vida canonical como ao nível artístico, com uma catedral românica, à imitação da canónica e de outras sés portuguesas (Coimbra, Porto, Braga), que responde à nova linguagem e exigências da liturgia romana. É entre os cónegos crúzios que o bispo Paio de Tui vai buscar clérigos para organizar a canónica tudense e são oriundos do mosteiro conimbricense alguns dos bispos que governaram a diocese durante a 2ª metade do século XII.

Os séculos posteriores mostram os monarcas de ambos os lados da fronteira a multiplicar doações e privilégios a favor da sé de Tui, enquanto os seus prelados gerem normalmente os bens que possuem de um e de outro lado do Minho. Do mesmo modo, os monarcas portugueses procuram estender a sua intervenção na escolha dos clérigos colocados à frente de muitas igrejas e mosteiros do bispado. Ao longo dos séculos XIII e XIV, são vários os bispos de Tui de origem portuguesa, ao mesmo tempo, como mostrou José Marques, que a fronteira não impede a mobilidade de eclesiásticos galegos e portugueses4.

Uma segunda secção é dedicada ao estudo dos motivos e da funcionalidade política do discurso reivindicativo face aos estrangeiros. Este aparece, desde 1329, em Castela, nos capítulos de corte, repetindo-se ao longo dos séculos. XIV e XV. Ana Arranz Gusmán procura perceber esta argumentação, que tende a pintar com cores carregadas os malefícios decorrentes da entrega de importantes e numerosos benefícios eclesiásticos a clérigos estrangeiros, tanto para o reino, para os seus dirigentes e o seu clero, como para os seus fiéis. A comparação entre as Cortes de 1329, onde esta argumentação é associada aos procuradores das cidades, e o Ordenamento de Medina de 1328, onde se reúnem um conjunto de disposições acordadas entre Afonso XI e alguns dos seus conselheiros, mostra claramente como o texto das Cortes copia, neste ponto, os argumentos propostos pelo rei em 1328. Do mesmo modo, a autora demonstra como é relativamente reduzida a nomeação de clérigos estrangeiros para as dioceses castelhanas durante o século XIV. Tais factos obrigam a uma interpretação distinta do texto, enquanto testemunho da reação régia contra a mudança de política, em termos beneficiais e fiscais, imposta pelo Papado após a sua instalação em Avinhão. Esta vinha mudar as regras do jogo, retirando protagonismo aos cabidos locais na escolha dos respectivos prelados e obrigando os monarcas a reajustarem-se ao novo sistema. A nova instância em ordem a garantir a colocação nas dioceses de homens da confiança do monarca, bem como nas igrejas e mosteiros do seu padroado, era agora a Santa Sé, por via da apresentação de súplicas e do posterior pagamento das taxas que recaíam sobre a nomeação ou a transferência de dignatários religiosos. Um recurso amplamente utilizado pelos monarcas dos séculos XIV e XV, que, mantendo a antiga argumentação contra os clérigos estrangeiros, ocultavam assim estratégias políticas bem mais danosas, com as recorrentes transferências de bispos ou a própria intervenção directa junto da Santa Sé.

Óscar Perea Rodríguez toma por base a arenga apresentada por Juan I de Trastâmara perante as Cortes de Segóvia de 1386, convocadas no contexto difícil vivido por Castela após a derrota de Aljubarrota e o consolidar da aliança anglo-portuguesa, por via do tratado de Windsor e do casamento do novo monarca português com Filipa, oriunda da poderosa Casa de Lancaster, bem como das conhecidas pretensões do duque de Lancaster ao trono castelhano. O discurso adivinhava a necessidade de importantes negociações diplomáticas, face ao recente desembarque de John of Gaunt em território peninsular e ao apoio que tinha da parte de D. João I de Portugal. Ao carácter providencialista da nova dinastia e aos argumentos legitimadores do direito dos Trastâmaras ao trono, o discurso evoca o martírio de Tomás Becket, figura aqui utilizada para denegrir a imagem dos monarcas ingleses, de comportamento nefasto e rebeldes contra a Igreja, e dos próprios ingleses em geral, alvos de um marcado desprezo intelectual e espiritual.

Uma última secção, dedicada à construção das identidades político-religiosas, abre com o estudo de Francesca Español Bertan sobre o panteão dinástico de Poblet, projectado por Pedro III, o Cerimonioso, enquanto monumento de exaltação da memória régia e dinástica, em articulação com a produção de uma memória cronística própria e de uma consciente ligação às figuras exemplares de Jaime I e Afonso, o Casto, aí sepultados. Face a outros espaços de inumação escolhidos pelos seus imediatos antecessores (S. Francisco de Barcelona, o mosteiro cisterciense de Santa Creus ou mesmo S. Francisco de Lérida), Pedro III opta por Poblet e investe na renovação do espaço como verdadeiro panteão dinástico, onde faz sepultar também as suas esposas e os seus descendentes. A disposição dos túmulos, enquadrados por arcos, um do lado do Evangelho, o mais importante, destinado a Pedro III, e outro do lado da Epístola, as opções artísticas, com o refazer dos túmulos de Jaime I e Afonso, o Casto, o acréscimo de jacentes e baldaquinos, o recurso a materiais particularmente ricos como o pórfiro e o alabastro com cobertura vítrea azulada e esmaltados a ouro, a cenografia associada ao lamento fúnebre e ao correr de armas, tudo contribui para uma exaltação dinástica e para o actualizar de uma memória régia associada aos grandes feitos militares contra o Islão. O próprio Pedro III procura ainda reforçar estes elementos fazendo-se sepultar com as vestes com que foi coroado e com os símbolos do seu poder e da sua dignidade régia (a coroa, o ceptro e o pomo de prata), legando a Poblet e às capelas das suas residências os necessários recursos para a comemoração da sua memória, quer pela celebração litúrgica, quer pelos livros que lhes deixa e nos quais a mesma memória se torna novamente actual.

César Olivera Serrano explora de forma particular o modo como o religioso é utilizado por Juan I de Castela e pela sua mulher, D. Beatriz de Portugal, como meio de legitimação da nova dinastia e como a própria dimensão da reforma religiosa está bem presente na estratégia política do monarca, tanto antes como sobretudo após os insucessos militares que culminaram com a derrota castelhana em Aljubarrota. O autor convoca assim os conteúdos religiosos e de reflexão moral presentes nos preâmbulos dos documentos da sua chancelaria e nos textos emanados das cortes, que servem um intuito claramente legitimador, acentuando o carácter providencialista da nova dinastia, protegida por Deus. Tais fórmulas e tal linguagem têm continuidade na sua política de respeito pelas liberdades eclesiásticas, de protecção e apoio a numerosos mosteiros, com intuitos reparadores (face aos danos infligidos pela guerra durante o reinado de seu pai) e de reforma religiosa, em particular no combate às comendas leigas. As vicissitudes políticas obrigam o monarca a passar de um discurso de exaltação da dinastia e dos seus projectos de restauração da antiga unidade hispânica, na qual se integrava o seu casamento com Beatriz de Portugal, bem patente no modo como se dirige às Cortes de Segóvia de 1383, para um discurso de juízo divino e de reparação após os insucessos de 1384-1385, que se evidencia no discurso feito às Cortes de Valladolid deste último ano. A encenação do luto segue a par com uma confissão dos pecados régios e dos seus súbditos, na leitura dos recentes insucessos como um castigo de Deus a exigir reparação. Sem abandonar a guerra e os seus projectos de recuperar a coroa portuguesa, lida inteligentemente com a intervenção inglesa de 1386, prossegue na produção de nova legislação e reforça ainda mais a sua intervenção no domínio religioso, com a proteção dos movimentos mais reformistas: entrega de Guadalupe aos Jerónimos (1389), fundação da cartuxa de El Paular e do mosteiro beneditino de S. Bento de Valladolid (1390) e a criação de uma nova ordem militar, de S. Bartolomeu, de vida efémera devido à morte precoce do monarca. O seu desejo de restauração ou de renascimento transparece ainda nas suas novas divisas e, na sua morte, é equiparado a Cristo, como aquele que carrega sobre si os pecados do povo.

Da rainha Beatriz, mostra como secundou o marido na sua dimensão penitencial, juntando ainda uma clara dimensão piedosa e caritativa com a proteção de diversas ordens religiosas, em particular a dos Mercedários, com a fundação de um convento masculino da ordem em Valladolid, onde se fará sepultar a rainha portuguesa Leonor Teles, e a dos Pregadores, escolhendo o convento dominicano de Santi Spiritus de Toro como seu lugar de sepultura.

Isabel Beceiro Pita fecha o volume com um importante estudo que, na continuidade do anterior, alarga e aprofunda a análise do papel da religiosidade no enaltecimento das monarquias hispânicas nos finais da Idade Média, comparando, de modo particular, as estratégias desenvolvidas neste domínio das dinastias de Avis e dos Tratâmaras, bem como dos primeiros Trastâmaras na Coroa de Aragão. Naturalmente, explora o papel do religioso nos mecanismos de legitimação de ambas as dinastias, ao acentuar o seu carácter providencialista e a proteção que lhes é garantida por Deus, a sua devoção à Virgem e a Cristo, o comportamento devoto e exemplar, a sua política de proteção da Igreja e de promoção dos novos movimentos religiosos. Na memória que constroem de si mesmas e do passado dos seus reinos, as novas dinastias acentuam necessariamente os aspectos negativos dos seus antecessores, nomeadamente a sua impiedade, crueldade, a vexação dos súbditos, a falta de proteção à Igreja, o abandono da luta contra o Islão, o favor dispensado a judeus e muçulmanos.

É todo um discurso propagandístico que se plasma tanto em testemunhos documentais como emblemáticos, sigilográficos e cerimonias. A autora valoriza, aliás, os recentes estudos no âmbito da heráldica para mostrar como também por esta via as novas dinastias criam uma narrativa política e de propaganda que se articula, tanto com os textos (caso do Livro português dos Arautos) como com os objectos associados à pessoa do rei, aos espaços que ele habita e inclusive aos edifícios, civis ou religiosos, que manda edificar. É exemplar, neste domínio, o caso do mosteiro de Santa Maria da Vitória, onde os motivos heráldicos dialogam com os espaços para criar um discurso de exaltação da nova dinastia e do seu cariz providencial, sob a protecção poderosa de Deus e da Virgem5.

A funcionalidade legitimadora do religioso prolonga-se na fase de consolidação destas dinastias, inclusive justificando o próprio protagonismo régio no ordenamento e reforma da vida religiosa. Também é aqui transversal aos diversos reinos a importância da protecção régia aos novos movimentos religiosos, sejam eles as observâncias beneditina ou mendicantes (franciscana e dominicana)6, as novas ordens, como os Jerónimos ou os Lóios, ou outros movimentos menos enquadrados institucionalmente, como os eremitas (mais estudados para o caso português mas não menos importantes nos restantes reinos peninsulares7) ou as experiências femininas não regulares: beatérios e comunidades da pobre vida8. É entre estas ordens que os monarcas, mas também a sua família e a nobreza associada à sua corte, continuam a recrutar os seus confessores, a buscar aconselhamento ou a escolher os seus lugares de sepultura, a fundar capelas e a deixar bens por alma9.

A esta política de reforma religiosa juntam os monarcas na promoção de determinados cultos que claramente prestigiam as novas dinastias ou legitimam as suas opções políticas. Situam-se neste caso, como a autora bem salienta, a valorização das figuras do Infante Santo ou do Condestável, que aliam aliás a santidade ao exercício da guerra contra os inimigos do reino português e da cristandade, bem como, na mesma linha, a revalorização do culto dos mártires de Marrocos.

Em conclusão, a obra em apreço constitui um contributo muito importante para a problematização do papel da espiritualidade ou do religioso no processo de construção e afirmação das monarquias ibérica, e para uma compreensão mais integrada destes dinamismos no contexto mais lato do Ocidente medieval. Torna-se claro como só um exercício de comparação entre as realidades vividas nos diversos reinos permite uma correcta visão de conjunto sobre aspectos comuns e diferenciadores nas lógicas e estratégias de afirmação das diferentes monarquias e da sua relação com os novos movimentos religiosos. Outros aspectos poderiam ser evocados, nomeadamente ao nível da estruturação das cortes régias e principescas, e do próprio desenvolvimento cerimonial e litúrgico, estudados exemplarmente, para o caso português, por Rita Costa Gomes10, bem como a importância da circulação e difusão dos livros e das leituras, ou das redes de contacto que ligam muitos dos principais protagonistas da renovação religiosa entre si e com as cortes régias, senhoriais e episcopais, na propagação dos novos movimentos religiosos11. Outros caminhos a seguir, alguns já intentados em projectos ibéricos entretanto em curso12, que se espera possam trazer novos contributos que, como este livro, marcam um efectivo avanço na compreensão mais integrada do passado medieval dos reinos ibéricos.

Referências bibliográficas

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1Para uma apreciação da sua vasta produção bibliográfica, cf. https://dialnet.unirioja.es/servlet/autor?codigo=56838 [Consultado a 5 Junho 2022].

2Cf. COSTA, António Domingues de Sousa - “D. Gomes, reformador da abadia de Florença, e as tentativas de reforma dos mosteiros portugueses no século XV”. Studia Monastica 5/1 (1963), pp. 59-164.

3DIAS, José Sebastião da Silva - Correntes de Sentimento Religioso em Portugal (Séculos XVI a XVIII). Tomo I. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1960; GOMES, Saul António - “A Congregação Cisterciense de Santa Maria de Alcobaça nos séculos XVI e XVII: elementos para o seu estudo”. Lusitania Sacra 18 (2006), pp. 375-431; DIAS, Geraldo J. A. Coelho - Quando os monges eram uma civilização… Beneditinos: espírito, alma e corpo. Porto: CITCEM - Edições Afrontamento, 2011.

4Cf. MARQUES, José - “Relações galaico-bracarenses, no século XV, segundo as matrículas de ordens do Arquivo Distrital de Braga”. In MARQUES, José - Relações entre Portugal e Castela nos finais da Idade Média. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian - JNICT, 1994, pp. 325-348. Sobre as mais alargas relações entre o espaço galego e o norte de Portugal, ver ainda PÉREZ RODRÍGUEZ, Francisco Javier - “Monges e mosteiros galegos em Portugal (séculos XII-XV)”. Medievalista [Em linha] 31 (Jan.-Jun. 2022), pp. 121-149. [Consultado a 5 Junho 2022]. Disponível em https://medievalista.iem.fcsh.unl.pt/index.php/medievalista/article/view/462. DOI: https://doi.org/10.4000/medievalista.5104.

5Cf. SEIXAS, Miguel Metelo de - “Emblématique, dévotion, espace sacré: la chapelle funéraire de Jean Ier à Batalha”. In FERNANDES, Carla Varela; CARTIÑERAS GONZÁLEZ, Manuel Antonio (coord.) - Imagens e Liturgia na Idade Média. Criação, circulação e função das imagens entre o Ocidente e o Oriente na Idade Média (séculos V-XV). s.l.: Documenta, 2021, pp. 521-550.

6Será aqui de rever o papel atribuído aos primeiros monarcas de Avis na promoção e protecção das observâncias franciscana e dominicana, que a autora considera menos activo em comparação com os seus congéneres castelhanos e aragoneses. Tal não nos parece correcto, tendo em conta a particular importância de D. João I, de D. Filipa e dos seus filhos na fundação de mosteiros observantes ou na viabilização de outras fundações por parte de membros da nobreza intimamente ligados ao seu serviço. Para uma visão de conjunto sobre estes aspectos, cf. TEIXEIRA, Vítor Gomes - O Movimento da Observância Franciscana em Portugal (1392-1517). História, Património e Cultura de Uma Experiência de Reforma Religiosa. Porto: Centro de Estudos Franciscanos - Editorial Franciscana, 2010; ANDRADE, Maria Filomena; FONTES, João Luís - “La(s) reforma(s) en el franciscanismo portugués en la edad media”. Hispania Sacra [Em linha] LXXII/145 (Jan.-Jun. 2020), pp. 51-63. [Consultado a 15 Junho 2022]. Disponível em https://hispaniasacra.revistas.csic.es/index.php/hispaniasacra/article/view/830 DOI: https://doi.org/10.3989//hs.2020.004; SANTOS, Maria Leonor Ferraz de Oliveira Silva - “Os primórdios da presença dominicana em Portugal: 1220-1418”. In GOUVEIA, António Camões; NUNES, José; FONTES, Paulo F. de Oliveira (coord.) - Os Dominicanos em Portugal (1216-2016). Lisboa: CEHR-UCP, 2018, pp. 9-26.

7FONTES, João Luís Inglês - Génese e institucionalização de uma experiência eremítica. Da “Pobre Vida” à Congregação da Serra de Ossa (1366-1510). Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2021.

8Cf. FONTES, João Luís Inglês - “Em torno de uma experiência religiosa feminina: as mulheres da pobre vida de Évora”. Lusitania Sacra 31 (Jan.-Jun. 2015), pp. 51-71.

9 ROSA, Maria de Lurdes - As Almas Herdeiras. Fundação de Capelas Fúnebres e Afirmação da Alma como Sujeito de Direito (Portugal, 1400-1521). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012.

10GOMES, Rita Costa - A Corte dos Reis de Portugal no Final da Idade Média. Carnaxide: Difel, 1995.

11Vejam-se, para o caso da observância franciscana, os exemplares estudos de José Adriano Freitas de Carvalho, reunidos em CARVALHO, José Adriano Freitas de - Nobres Leteras... Fermosos Volumes... Inventários de Bibliotecas dos Franciscanos Observantes em Portugal no Século XV. Os Traços de União das Reformas Peninsulares. Porto: Centro Inter-Universitário de História da Espiritualidade - Instituto de Cultura Portuguesa - Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995.

12Caso do Projecto Castilla y Portugal en la Baja Edad Media: contactos sociales, cultuales y espirituales entre dos monarquias rivals (s. XIII-XV) (Ministerio de Ciencia y Innovación, PID2020-114722GB-I00), coordenado por César Olivera Serrano e Pablo Martín Prieto.

Recebido: 08 de Junho de 2022; Aceito: 08 de Junho de 2022

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