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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.33 Lisboa jan. 2023  Epub 31-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.6217 

Editorial

Editorial - A Cor da História

Editorial - The Colour of History

Luís Filipe Oliveira1 

João Luís Fontes2 

1. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais 1070-312 Lisboa, Portugal, lfolivei@ualg.pt

2. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais 1070-312 Lisboa, Portugal, joaofontes@fcsh.unl.pt


Faz-se memória nesta Medievalista da Ana Cristina Lemos, outra jovem investigadora do Instituto de Estudos Medievais precocemente desaparecida. Especialista no estudo das iluminuras e pioneira nas pesquisas sobre a cor, a ela se ficou a dever a análise do Livro de Horas de D. Duarte, e, sobretudo, a descoberta e a valorização da colecção de Livros de Horas do Palácio de Mafra. Tal como recordam os textos adiante publicados, que lhe prestam uma última e comovida homenagem, a Ana Lemos era mais que uma investigadora competente. Não só era uma professora atenta à formação integral dos seus alunos, como uma cidadã empenhada, com uma vida de militância pelas causas cívicas, artísticas e culturais. De uma forma que lhe era própria, fazia assim justiça à velha lição de Marc Bloch, que aconselhava os aprendizes de historiador a viverem a vida do seu tempo para poderem compreender e decifrar os restos que ficaram das vidas do passado. Tanto por fazer história, como por fazer que esta acontecesse todos os dias, era quase inevitável que a Ana Lemos deixasse uma impressão viva nas vidas e nas memórias dos seus colegas, amigos e professores. Como fazem as cores de que ela tanto gostava.

Esta Medievalista integra novamente um número monográfico. Dedicado desta vez ao castelo de Belvoir e à arquitectura militar da Ordem do Hospital na Terra Santa e no Ocidente Medieval. Sem retomar a apresentação feita por Anne Baud e por Jean-Michel Poisson, os editores convidados deste número, em conjunto com Damien Carraz, há que sublinhar o interesse dos textos aqui reunidos. Por trazerem, desde logo, um olhar multifacetado, mas complementar, sobre este castelo concêntrico, com dupla muralha, do Vale do Jordão, um dos mais importantes que o Hospital possuía na Terra Santa, a par do Crac des Chevaliers e de Margat. Um dos mais conhecidos e dos mais prestigiados, também, mesmo no Ocidente e em Portugal. Como atesta a replicação do seu nome e da sua estrutura pela fortificação que o Hospital ergueu nas terras de Guindintesta, na margem do Tejo, embora com significativas diferenças de escala e de relevância.

A multiplicação de diferentes perspectivas, com recurso à documentação, aos dados da arqueologia, à análise da arquitectura e das obras de arte, trouxe algumas novidades sobre esta estrutura. Uma sondagem arqueológica, feita no pátio do castelo (Jean-Michel Poisson, Simon Dorso), permitiu identificar uma estrutura anterior, já evocativa da presença latina e que talvez corresponda ao casal documentado desde 1165, se bem que este deva ser mais antigo. O estudo sistemático dos materiais pétreos da capela (Anne Flammin, Paul François, Florian Renucci), outrora situada sobre a porta do castelo e hoje desaparecida, permitiu avançar com uma proposta de reconstituição em 3D daquele edifício, enquanto se sugeria a existência de obras de arte noutras partes do castelo. Por outro lado, a análise da arquitectura identificou semelhanças com outras fortificações, caso do Crac e de Margat (Anne Baud, Olivier Guyotat), ao mesmo tempo que revelou o papel estrutural dos grampos de ferro no reforço e na consolidação da estrutura (Laurent D’Agostino). A leitura dos diplomas conhecidos (Harvé Barbé, Damien Carraz) permitiu recuperar, por fim, o valor estratégico do sítio e o tamanho da guarnição respectiva, assinalando igualmente o papel do castelo na organização do povoamento e na exploração do território, factos bem revelados pelos fornos e pelos moldes de açúcar que aí foram descobertos. O estudo monográfico de termina com três outros trabalhos, destinados a estabelecer grelhas de comparação com as estruturas fortificadas do Hospital na Terra Santa entre 1136 e 1291 (Denys Pringle) e no Sudeste da França, estas últimas com outras funções e numa cronologia muito posterior (Yoan Mattalia, Damien Carraz).

As secções fixas da revista revelam a mesma abertura às tendências e aos problemas mais vastos da historiografia medieval. Nas recensões, Pedro Chambel dá a conhecer dois livros recentes de Xosé Mariño Ferro, antropólogo e historiador das mentalidades, que já colaborou com a revista num passado recente. Ambos os livros tratam do papel dos signos na cultura ocidental, vistos não como categorias universais, mas como produtos de contextos concretos, com capacidade para assegurar a comunicação cultural e de tornar visível o invisível. A circulação de manuscritos Iluminados no Ocidente, e, em particular, a presença de manuscritos de origem francesa e flamenga em colecções espanholas, é o tema do livro dirigido por Samuel Gras e por Anne-Marie Legaré e recenseado por Delmira Espada Custódio. Doravante disponíveis em plataformas digitais, estes manuscritos são bons testemunhos das relações entre os vários reinos europeus, ou mesmo destes com o Oriente Latino. O papel dos livros e de outros objectos, como as jóias, os selos e o vestuário, na construção do estatuto e da autoridade das mulheres, ou das alianças por elas estabelecidas, constituem o tema do livro de Jitske Jaspese recenseado por Cynthia Maciel Regalado. Escrito por uma especialista em sigilografia medieval, o livro cruza os dados da cultura material com a história do género e do poder, esclarecendo o percurso de Matilda Plantageneta e das suas irmãs, filhas de Henrique II e de Leonor da Aquitânia. Encerra a secção uma recensão de Miguel Aguiar ao livro de Manuel Pérez García sobre a trajectória de duas famílias da nobreza de Múrcia, a partir das quais se procurou esclarecer as estruturas sociais espanholas até ao Liberalismo, ainda que sem distinguir de forma clara os fenómenos de queda e de ascensão dos mecanismos mais vastos de reprodução social.

Ainda que com uma geografia menos diversa, as notas de investigação abrem com um texto de Miriam Palomba sobre a paisagem monástica na cidade de Benevento, que pertence à região da Campânia, no Sul da Itália. Cruzando as fontes históricas com os métodos informáticos, e, em particular com os sistemas de geo-referenciação, a cidade revela-se como um importante pólo da vida monástica entre os séculos VII e XIII, num contraste muito claro com a natureza rural do monaquismo ibérico anterior ao século XII. Seguem-se três outros trabalhos, todos sobre história portuguesa. No primeiro deles, Luís Miguel Rêpas recupera os dados da sua dissertação de doutoramento para caracterizar as diversas faces das monjas de Cister em Portugal, durante os séculos XIII e XIV. Desde as comunidades aristocráticas de Arouca e de Lorvão, fundadas por infantas e que acompanhavam os alinhamentos políticos no reino, ao menos durante as épocas de tensão e de conflito, às monjas pobres de Cós, cujo sustento era assegurado pelo mosteiro de Alcobaça, sem esquecer a comunidade de Odivelas, com estatutos próprios e uma clausura mais estrita e que recrutava boa parte das professas entre as gentes das cidades. Destina-se o segundo a apresentar um projecto colectivo, dirigido por Marcelo Cândido da Silva e alojado na Universidade de S. Paulo, que pretende recensear e catalogar as menções ao clima, a fomes e a problemas de abastecimentos em fontes medievais portuguesas. A iniciativa enquadra-se no interesse actual pela história do ambiente e das alterações climáticas, procurando esclarecer o processo de transição para a sociedade moderna, e dará lugar à construção de uma base de dados de acesso livre e com todas as menções geo-referenciadas. Termina a secção um texto de Gonçalo Melo da Silva, com dados da investigação realizada sobre as vilas e as cidades portuárias do Algarve entre 1249 e 1521. Com recurso à noção de rede urbana portuária e à distinção entre cidade com porto e cidade portuária, as análises demonstraram a importância dos portos e dos tratos respectivos na ordenação das paisagens urbanas, confirmando a existência de uma rede hierarquizada e de parcerias regionais capazes de assegurar o funcionamento dessa rede.

A última seccção, a Varia, inclui três textos de apresentação e de reflexão sobre encontros científicos recentes. O primeiro respeita a um Colóquio organizado pela Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval, dedicado à análise das relações entre o Homem e o Animal, que procurou explorar os pontos de encontro e de aproximação entre eles, para subverter a lógica antropocêntrica dominante. Os restantes correspondem a iniciativas ainda em curso, organizadas pelo Instituto de Estudos Medievais: o ciclo de conferências online sobre os códices litúrgicos do mosteiro de Lorvão, abarcando as múltiplas intersecções entre estes manuscritos, a vida litúrgica e devocional da comunidade, os seus textos normativos e a própria experiência diferenciada dos espaços monásticos; e o ciclo sobre as representações da Idade Média no cinema e que decorre na Cinemateca Portuguesa, com um interessante contributo para equacionar a relação recente dos medievalistas com os discursos audiovisuais sobre a época que estes trabalham. A evocação da figura de Luís Krus, também aqui pioneira, junta-se à de Ana Lemos, tanto pelas pontes que criaram com outros círculos culturais e sociais, como pela diversificação das linguagens e por uma criatividade integradora e de rosto humano, capaz de alargar os horizontes de compreensão sobre o passado e de abrir o futuro.

Traz esta Medievalista, outra vez, diversos motivos de interesse e de leitura. Todos reveladores de investigações e de reflexões em curso, com geografias e cronologias muito variadas, como tem sido frequente e que ficam doravante disponíveis para quantos se interessam pelos estudos medievais.

Luís Filipe Oliveira, João Luís Fontes

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