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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.33 Lisboa jan. 2023  Epub 31-Jan-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.6346 

Varia

Limiares Homem/Animal na Literatura e na Cultura da Idade Média. XII Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval Liminalities Human/Animal in Medieval Literature and Culture 13th Conference of the Portuguese Section of the Hispanic Society of Medieval Literature

Cristina Álvares1 
http://orcid.org/0000-0001-5968-4724

Sérgio Guimarães de Sousa1 
http://orcid.org/0000-0001-5290-558X

1. Universidade do Minho, CEHUM, 4710-057 Braga, Portugal; calvares@elach.uminho.pt; spgsousa@elach.uminho.pt


O XIII Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura Medieval (AHLM) realizou-se a 2 e 3 de junho de 2022, no inspirador Mosteiro de Tibães (Braga). Um local monumental e contemplativo, por excelência, ideal para um encontro científico deste tipo. Com efeito, tanto a imponente e ostensiva arquitetura do Mosteiro como a extensa e, em boa verdade, deslumbrante área agrícola e florestal envolvente não deixam de se configurar enquanto documentos vivos desse passado fundacional e remoto que foi o período medieval e que nos interpela, por assim dizer, em cada espaço de Tibães.

O Colóquio, convém assinalar, resultou de uma pertinente parceria do CEHUM com a Direção Regional de Cultura do Norte. E não será ocioso acrescentar, em perfeita sintonia com a periodicidade bianual que ritma os encontros dos medievalistas portugueses, que o evento esteve previsto para 4 e 5 de junho de 2020, mas só teve lugar dois anos mais tarde devido à pandemia de covid-19. Efetivamente, a comissão organizadora, composta por Cristina Álvares (CEHUM), Sérgio Guimarães de Sousa (CEHUM) e Joaquim Loureiro (DRCN), pese embora as evidentes valias da comunicação tecno-digital, considerou, por várias razões que não cabe aqui elencar, fundamental manter a modalidade presencial dos eventos científicos organizados pela AHLM e, em particular, pela sua Secção Portuguesa desde 1996.

O tema dos limiares humano-animal foi escolhido em linha com o projeto Limiares humano/animal/máquina do Grupo de investigação 2i do CEHUM, no qual estão envolvidos dois dos membros da comissão organizadora. Na esteira de correntes teóricas e hermenêuticas que se dedicam a repensar o fenómeno humano em estreita interação e interdependência com outras formas de vida, nomeadamente animais1, o propósito do colóquio foi convidar os investigadores em literatura e cultura da Idade Média a revisitarem o seu objeto de estudo à luz da relação humano-animal, entendida menos como clivagem do que como aproximação e encontro2. Num tempo de profunda inquietação face àquilo a que se convencionou chamar Antropoceno e Sexta Extinção, o que nos dizem os textos medievais sobre as relações entre as espécies? Sendo certo que a filosofia europeia sedimentou, ao longo de séculos, um pensamento antropocêntrico instituidor da autonomia e domínio de Anthropos sobre o mundo vivo, cruelmente agudizados nos últimos 200 anos - lembremo-nos da famosa frase que J. Bentham escreveu em 1789: a questão não é se eles [os animais] pensam ou falam mas se sofrem3 -, também é certo que uma contracorrente coexiste, desde a Antiguidade, com a corrente oficial e dominante, manifestando-se marginal e/ou simbolicamente na literatura e noutras criações do imaginário. O colóquio teve, portanto, como objetivo identificar e discutir formas e figuras literárias potencialmente capazes de deslocar ou desmentir ou subverter ou problematizar o antropocentrismo medieval4 e, assim, suscetíveis de nos ajudarem a repensar criticamente o statu quo ontológico.

O colóquio estruturou-se em sete sessões, resultantes da chamada de comunicações, e duas sessões plenárias, organizadas por convite, e contou com a participação de cerca de 30 pessoas entre conferencistas convidados, oradores e moderadores. Os intervenientes eram em grande parte portugueses e espanhóis, mas também participaram investigadores franceses e israelitas. A esmagadora maioria dos estudos apresentados incidiu sobre as literaturas ibéricas medievais, principalmente em galaico-português e em castelhano, havendo também algumas comunicações no âmbito das literaturas francesa e inglesa. O colóquio favoreceu a troca de ideias e o debate científico através das sessões plenárias e das sessões paralelas, bem como da realização da assembleia geral da Secção Portuguesa da AHLM, que teve lugar ao final do primeiro dia de trabalhos. Além disso, o colóquio proporcionou momentos de cultura, lazer e convívio como a visita guiada ao Mosteiro de Tibães, conduzida pelo Dr. Paulo Oliveira, o lançamento do livro O medievalismo no século XXI, reunindo, sob a direção de Isabel Barros Dias, Margarida Alpalhão e Margarida Esperança Pina, os estudos previamente apresentados ao XII colóquio da Secção Portuguesa da AHLM, publicado pela Peter Lang, e ainda o jantar em Braga e as refeições e deambulações pelo belíssimo espaço exterior do Mosteiro.

Após a sessão de abertura em que intervieram Cristina Álvares (pela organização), Vítor Moura, diretor do CEHUM, Paulo Oliveira, coordenador do Mosteiro de Tibães e Aires Nascimento, presidente da Secção Portuguesa da AHLM, a primeira conferência plenária - momento sempre maior de qualquer evento científico, e este não foi exceção - esteve a cargo de Aires do Nascimento. Intitulada “O Livro das Aves de Lorvão: um manuscrito medieval em nova leitura e algumas propostas de integração”, a conferência de abertura focou o Liber Avium, esquecido manuscrito de Lorvão (1184), propondo vias para a sua redescoberta em leituras simbólicas e abertas a hodiernas interrogações ambientais e ecológicas, mas atinentes a interrogações assumidas pela comunidade de Lorvão nos finais do século XII. A segunda conferência plenária, intitulada “El delfín salvador, ecos hispánicos de una leyenda medieval”, foi proferida por Maria de Jesús Lacarra, presidente da AHLM. A conferência analisou algumas extensões e transformações hispânicas da lenda do delfim protetor e salvador, que surge em França no século XII e que está na origem do título hierárquico delfim e do nome da província francesa do Dauphiné. Com raízes na mitologia antiga, este símbolo cristão condensa uma história de aliança, entendimento e afinidade entre homens e golfinhos.

Sob o título “Símbolos e alegorias”, o primeiro painel reuniu três comunicações que focaram representações alegóricas ou simbólicas de animais (cavalo, galo, cordeiro, leão, cerdo, símio) no romanceiro de tradição antiga, em Canterbury Tales de Chaucer e no Libro de los exemplos. Simultaneamente, o segundo painel debruçou-se sobre práticas culturais envolvendo realmente ou simbolicamente a animalidade, como sejam os processos judiciais movidos a animais ou a figura do bobo, na qual a loucura situa um limiar entre humano e animal. As sessões 3 e 4 versaram respetivamente sobre “Fábulas e crónicas” e “Saberes e descobertas”. Na primeira, as metáforas animais estiveram em evidência quer nas Metaphorae de Nicole de Bozon, cujos processos de valorização dos animais foram analisados, quer na Crónica de 1344, onde se examinaram as conexões entre texto e imagem. Na segunda, estiveram em foco as competências antecipatórias ou de antevisão dos animais, capazes de prenunciar não apenas perturbações da Physis mas também perturbações de natureza histórica e cultural como acontece na Profecía de la pérdida de España e na Predicción de la muerte del rey don Pedro; uma perspetiva sobre a caça em tratados cinegéticos e em narrativas literárias mostrando que esta atividade tem muito mais de entrelaçamento antropozoológico do que de domínio humano sobre o animal; as descrições dos animais do Novo Mundo por Gonzalo Fernández de Oviedo. A última sessão do primeiro dia de trabalhos intitulou-se “Fábulas e lais” e examinou géneros literários do século XII como os lais (Marie de France e lais bretões anónimos), focando a função mediadora dos animais; e as fábulas de Berechianh há-Naqdan, escritor judeu nascido em França e vivendo em Inglaterra, que se inspirou em grande parte no Ysopet traduzido por Marie de France. Na fábula analisada, “A snake and a rich man”, cuja intertextualidade com a narrativa bíblica do Jardim do Éden é notória, a serpente sofre uma inversão axiológica e simbólica.

No segundo dia, após a conferência plenária de María Jesús Lacarra, tiveram lugar duas sessões paralelas, uma dedicada a “Imaginários e tradições” e a outra às “Sátiras”. Na primeira, foram abordadas diferentes modalidades de hibridação humano e animal. Numa perspetiva deleuziana do devir-animal, figuras híbridas de monges-peixes e cavaleiros-golfinhos povoam um imaginário marítimo, em textos em latim e em francês. Segue-se a hibridação humano-ursino que uma análise mitocrítica restitui em dois romances em langue d’oïl dos séculos XII e XIII: Partonopeu de Blois e Guillaume de Palerne. Finalmente, o topos do cavalo que fala e suas variações no cancioneiro. Na segunda, estiveram em destaque a poesia trovadoresca galaico-portuguesa e o Cancioneiro Geral com a análise de imagens animais (égua, cadela) atribuídas a mulheres como forma de escárnio, injúria e denigração. A função dos animais na crítica mordaz que os trovadores lançam a outrem ou entre si foi analisada por forma a refletir sobre a visão trovadoresca do mundo animal. À tarde, depois da visita guiada ao Mosteiro e antes da sessão de encerramento, Aires Nascimento proferiu uma sentida homenagem a Elsa Gonçalves, falecida a 10 de fevereiro de 2022.

Cumpre, assim, sublinhar que, na tradição dos colóquios da Secção Portuguesa da AHLM, esta décima-terceira edição assumiu-se como um espaço de encontro e partilha, desta vez com uma incidência particular em renovados enfoques da animalidade, incluindo a humana, na literatura e no imaginário medievais, manifestando inequivocamente o contributo inestimável dos medievalistas - e, por extensão, das literaturas do passado - nos grandes debates contemporâneos. Até porque a nossa atual perspetiva do mundo, que é crítica de todos os etnocentrismos, se afigura, em muitos sentidos, perfeitamente tributária da ordem medieval, que funciona assim, em bom rigor, como espécie de vestígio arqueológico de diversas posições atuais relativas à preservação ambiental (a ênfase concedida à reflorestação, a relevância da animalidade, etc.)5.

Numa palavra, esse passado de que todos somos de uma maneira ou de outra ainda assaz legatários, a que chamamos Idade Média, base indispensável para pensarmos o presente, constitui não só um vasto e heterogéneo território que nos oferece o poder de questionar representações herdadas, ou não fossem elas o produto de culturas historicamente situadas, mas também, e talvez sobretudo - como de resto ficou bem patente neste encontro científico -, a promessa de extrair dessas representações ensinamentos sobre as complexas, mas instigantes, questões dos limiares Homem/Animal.

Referências bibliográficas

Fontes impressas

BENTHAM, Jérémy - An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Oxford: Clarendon Press, 1907 [1789].

Estudos

ÁLVARES, Cristina - “Bestiaire en marge. Une lecture zoopoétique du Chevalier au Lion de Chrétien de Troyes”. Medievalista [Em linha] 29 (2021), pp. 277-296. [Consultado a 28 Setembro 2022]. Disponível emhttps://medievalista.iem.fcsh.unl.pt/index.php/medievalista/article/view/127. DOI: https://doi.org/10.4000/medievalista.3918. [ Links ]

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DALARUN, Jacques - Le Cantique de Frère Soleil. François d’Assise réconcilié. Paris: Alma, 2014. [ Links ]

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HERBRECHTER, Stefan - Posthumanism. A Critical Analysis. London: Bloomsbury, 2013. [ Links ]

SALZANI, Carlo - “From Post-Human to Post-Animal: Posthumanism and the Animal Turn”. Lo Sguardo 24 (2017), pp. 97-109. [ Links ]

SIMON, Anne - Une bête entre les lignes. Essai de zoopoétique. Marseille: Wildproject, 2021. [ Links ]

WEIL, Kari - Thinking Animals. Why Animal Studies Now?. New York: Columbia University Press, 2012. [ Links ]

WOLFE, Cary - What is Posthumanism ? Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009. [ Links ]

1Repensar as formas de vida humana nos seus entrelaçamentos e interseções com formas de vida não humanas - animais e máquinas - é a definição mais abrangente de “pós-humanismo crítico”, designação que cobre múltiplas correntes e sensibilidades partilhando a crítica (em diferentes graus de compromisso ou de radicalidade) do discurso humanista, considerado insuficiente para dar conta dos graves problemas e desafios do nosso tempo, e do imaginário antropocêntrico, responsabilizado pela violência exercida sobre os animais e sobre o vivente em geral. O pós-humanismo crítico, a distinguir rigorosamente da tecno-utopia transhumanista, abrange os estudos animais e a zoopoética. Veja-se a este respeito: WOLFE, Cary - What is Posthumanism ? Minneapolis: University of Minnesota Press, 2009; BRAIDOTTI, Rosi - The Posthuman. Cambridge: Polity Press, 2013; HERBRECHTER, Stefan - Posthumanism. A Critical Analysis. London: Bloomsbury, 2013. Para uma análise das relações entre o pós-humanismo e os estudos animais, leia-se SALZANI, Carlo - “From Post-Human to Post-Animal: Posthumanism and the Animal Turn”. Lo Sguardo 24 (2017), pp. 97-109.

2É o que propõem os estudos animais literários e a zoopoética. Inspirando-se nas obras de Deleuze & Guattari e de Derrida, principalmente em L’animal que donc je suis, autoras como Kari Weil e principalmente Anne Simon elaboraram teorias e hermenêuticas literárias que examinam as interações humano-animal substituindo a noção de limiar à de linha intransponível separando os animais em duas categorias bem delimitadas: Homem e Animal. A este propósito veja-se DERRIDA, Jacques - L’animal que donc je suis. Paris: Galilée, 2006; WEIL, Kari - Thinking Animals. Why Animal Studies Now?. New York: Columbia University Press, 2012; SIMON, Anne - Une bête entre les lignes. Essai de zoopoétique. Marseille: Wildproject, 2021.

3BENTHAM, Jérémy - An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Oxford: Clarendon Press, 1907, p. 311. Citado em GARCIA, Tristan - Nous, animaux et humains. Paris: François Bourin, 2011, p.19.

4Procurando entender os modos pelos quais a presença literária dos animais estorva as nossas esferas de pertença e de intencionalidade, desloca os nossos modos de acesso ao mundo, altera a nossa identidade, nos faz sair do círculo fechado da nossa humanidade, a zoopoética convida-nos a reler a literatura do passado, incluindo a literatura medieval, sob um ângulo inovador que incide em estratégias narrativas, retóricas e estilísticas que deslocam ou até desfiguram as nossas representações dos viventes, sedimentadas por uma tradição humanista e antropocêntrica secular. Uma proposta de abordagem zoopoética do Chevalier au Lion foi publicada no n.º 29 desta mesma revista (ÁLVARES, Cristina - “Bestiaire en marge. Une lecture zoopoétique du Chevalier au Lion de Chrétien de Troyes”. Medievalista [Em linha] 29 (2021), pp. 277-296. [Consultado a 28 Setembro 2022]. Disponível em https://medievalista.iem.fcsh.unl.pt/index.php/medievalista/article/view/127. DOI: https://doi.org/10.4000/medievalista.3918).

5Porventura a figura mais fascinante e mais inspiradora do Cristianismo depois de Jesus, Francisco de Assis pregou a irmandade das espécies e o amor de todas as criaturas, comprovando que a extraordinária violência a que os viventes estão direta ou indiretamente sujeitos, em particular as espécies sistematicamente abatidas para consumo humano, não decorre fatalmente da matriz judaico-cristã, supostamente hegemónica no Ocidente. Ainda que os pressupostos metafísicos e as coordenadas do imaginário sejam bem diferentes, certo é que Francisco de Assis marca uma zona de interseção ou de vizinhança entre o século XIII e o século XXI, quando a urgência de cuidar dos viventes e de reparar a nossa casa comum - a Terra - se faz sentir tão intensamente. Para Jacques Dalarun, Francisco de Assis, que, lembra, não era ambientalista nem vegetariano, defendia um humanismo sem apropriação: “François place l’homme au centre du système créé à son intention. Mais il ne cède pas à la tentation de présenter un univers dominé par l’entreprise humaine : il offre à la contemplation un monde apprivoisé, disponible pour un usage simple et réciproque qui bannit toute forme d’appropriation” (DALARUN, Jacques - Le Cantique de Frère Soleil. François d’Assise réconcilié. Paris: Alma, 2014, pp. 163-165).

Recebido: 11 de Outubro de 2022; Aceito: 11 de Outubro de 2022

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