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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.34 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.7021 

Recensão / Review

Recensão / Review: L’homme armé. Expérience de la guerre et du combat en Castille au XVe siècle

Bernardo Vasconcelos e Sousa1 
http://orcid.org/0000-0002-8621-7838

1. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais 1099-032 Lisboa, Portugal; bves@fcsh.unl.pt

Baloup, Daniel. -, L’homme armé. Expérience de la guerre et du combat en Castille au XVe siècle. ., , Madrid: :, Casa de Velázquez, ,, 2022. (, 309p. pp.)


Sendo a guerra um tema clássico e recorrente na história de todos os tempos, a guerra na Idade Média é mesmo um must da historiografia tradicional. Mas o que Daniel Baloup nos propõe neste livro é uma abordagem em nada tradicionalista. A sua proposta é a de uma avaliação essencialmente antropológica. Não que o Autor se oponha à necessidade de prosseguir o estudo da composição e da organização das hostes, do armamento ou das tácticas de guerra, mas a problemática que traz para primeiro plano é outra.

Como refere na Introdução1, a perspectiva antropológica pretende ligar a história da cultura material e a das representações mentais, as práticas guerreiras e os códigos de valores, o sangue e as emoções dos combatentes. Assim se evitará “escrever uma história que ignore a dimensão individual e sensível da experiência vivida; noutros termos, escrever uma história ‘sem os homens’”2. Não há dúvida de que a guerra em Castela é bem conhecida, mas continua a haver um largo espaço a explorar pela história cultural e pela antropologia. É esse o projecto do Autor e é essa a problemática que coloca no centro do seu inquérito.

A base documental para tal empresa é constituída por um vasto corpus de fontes jurídicas e narrativas, com largo destaque para as crónicas quatrocentistas. Estas últimas, entre crónicas gerais e crónicas particulares, geralmente produzidas em meio nobiliárquico por alguns dos mais representativos porta-vozes dos bellatores coevos, são testemunhos vivos e doutrinários de uma “cultura de guerra” que é intrínseca à nobreza castelhana deste final da Idade Média.

Mesmo valendo a pena “repensar a nobreza” e “o que é ser nobre” 3, é, de facto, a nobreza que nos fala da sua experiência, que reflecte e escreve sobre a guerra. Não admira, pois, a existência de vasta historiografia nobiliárquica quatrocentista sobre a actividade bélica, no quadro de uma Castela em que os confrontos militares se sucederam e estenderam ao longo da centúria. Fossem guerras “exteriores”, nomeadamente contra Portugal, fossem guerras “civis” opondo a nobreza à realeza e facções nobiliárquicas entre si, ou fossem guerras interconfessionais contra um reino de Granada no seu estertor final, os nobres são os protagonistas, tanto nos campos de batalha como nos relatos dos respectivos feitos. Os autores das crónicas pertencem a um mesmo meio sócio-cultural daqueles que detêm as armas e praticam a guerra, mas que também dominam e valorizam a cultura letrada e de que o Marquês de Santillana é o expoente máximo. Além do acesso a obras eruditas sobre a arte de guerrear, uma minoria construiu pelo próprio punho uma versão identitária do que considerava ser uma característica essencial do grupo nobiliárquico. Essencial e exclusiva, consubstanciada nos valores da coragem e da honra, apresentados como componentes matriciais dos senhores da guerra4. Daí a desconfiança, a crítica e o desprezo pelas forças concelhias, ainda que por vezes tivesse de ser reconhecido o indispensável papel desempenhado pelos vilãos nas batalhas5.

Sendo um ofício para os nobres, a guerra era também uma vocação para os que a ela se dedicavam como modo de vida. E a “cultura da guerra” não envolvia apenas os fidalgos. Também as mulheres da nobreza e os membros do alto clero estavam impregnados do espírito, dos valores e dos princípios próprios da vivência guerreira. A guerra - passada, presente ou futura - era uma referência comum que tendia a tornar-se ideológica e socialmente dominante.

A multiplicação de crónicas nobiliárquicas que descreviam e destacavam os feitos bélicos, fosse dos membros de uma dada linhagem, fosse do grupo social no seu conjunto, definiam a função desses guerreiros, assim legitimando o seu estatuto de privilegiados. Em simultâneo, tais relatos construíam e transmitiam uma tradição que era parte importante do património simbólico colectivo. Para além deste processo identitário, as narrativas assim produzidas cumpriam também a função de dar a conhecer ou relembrar os serviços prestados à monarquia desde tempos imemoriais e até à época de elaboração daqueles registos escritos. No discurso dos seus autores, essa era a razão profunda para que os reis concedessem ou mantivessem as doações, mercês e privilégios com que se agraciavam os nobres.

Tal como nos livros de linhagens portugueses do final do século XIII e do século XIV6, as crónicas nobiliárquicas castelhanas de Quatrocentos expressavam uma versão contrastante, se não mesmo alternativa, face à perspectiva patente na cronística régia. Na visão dos senhores-guerreiros, o que seria dos reis se não fossem os valorosos fidalgos que, ao longo de séculos, tinham exposto o próprio corpo e a vida nos campos de batalha?

Com a grande maioria das crónicas a ser produzida no início da dinastia Trastâmara, talvez fosse de esperar um maior destaque analítico conferido à obra de Pero Lopéz de Ayala. No entanto, por esta se situar na continuidade da cronística de Afonso X, O Sábio, Daniel Baloup considera que por serem “obras de transição que não se podem excluir do corpus, elas permanecem, no entanto, à sua margem”, uma vez que “mesmo deixando ouvir a voz da nobreza, elas são parte do relato monárquico”7.

O tratamento dos textos de Ayala proporcionaria, decerto, um maior destaque às guerras com Portugal e à percepção que delas era tida em Castela. As referências a estes confrontos têm uma expressão relativamente reduzida na economia geral do livro, mesmo sendo o Autor um bom conhecedor da história medieval portuguesa. E se, inegavelmente, se pode argumentar que a Batalha de Aljubarrota, em 1385, está fora da cronologia quatrocentista a que se reporta a investigação, não será menos verdade que o conflito político, jurídico, ideológico, religioso e, sobretudo, bélico entre Castela e Portugal se prolongou pelo século XV, desde o final da centúria anterior e no quadro da sucessão de Fernando I, até pelo menos 1411 ou mesmo 1422. Nessa conjuntura, vários foram os membros de linhagens da nobreza originária de Portugal que vieram a instalar-se duradouramente em Castela, aí atingindo elevados níveis na hierarquia nobiliárquica, de que são exemplo os Condes (depois Duques) de Benavente8. O conflito armado entre portugueses e castelhanos voltaria, uma vez mais, a reacender-se na década de 1470, no quadro da Guerra de Sucessão de Castela, com um dos seus pontos altos na Batalha de Toro, em 14769.

A “questão portuguesa”, a sua presença ou a sua ausência nas crónicas castelhanas deste período, não é de somenos importância; nem esta nota resulta de qualquer tipo de desejo de ver Portugal no centro das atenções historiográficas. Mas vale a pena assinalar que, na época, o reino português era um dos “inimigos convencionais” de Castela na Península Ibérica. Por esta razão, importaria aprofundar, tanto quanto possível, a imagem que era plasmada na cronística castelhana acerca do vizinho ocidental e dos tão longínquos quanto presentes confrontos militares entre as duas Coroas e respectivas nobrezas.

Um outro inimigo histórico de Castela, ainda no século XV, continuava a ser o Islão peninsular. E a imagem reflectida do muçulmano punha em destaque, por oposição, os valores da honra, da coragem e da fé de Cristo cultivados pelos nobres que haveriam de resgatar aos ”infiéis” a totalidade da Hispânia. Uma abordagem deste tipo, como a que foi sugerida e aplicada por Ron Barkai10, seria bastante reveladora do embate brutal entre cristãos e muçulmanos, num contexto de guerra santa e nos campos de batalha de uma Castela conquistadora contra um reino de Granada em acentuado recuo e caminhando para o seu fim.

Quer se tratasse da guerra entre cristãos desavindos, no quadro das lutas intestinas que pontuaram o século XV peninsular, quer fosse no âmbito do multissecular confronto entre seguidores das religiões cristã e islâmica, a manifestação de sentimentos e a expressão de emoções dos combatentes ganhavam uma centralidade sem paralelo. É precisamente esta análise dos sentimentos e das emoções dos “senhores da guerra” que Daniel Baloup trata sobretudo no último capítulo. E é aqui que mais e melhor sobressai a sua abordagem antropológica, explorando terrenos e caminhos que têm vindo a ser colocados em primeiro plano pela historiografia recente11. Não há dúvida de que a guerra e as batalhas, com o longo e terrível cortejo de pressão e de atrocidades, de violência e de mortes, de brutalidade e de irracionalidade, de tentativa de controlo ou de extermínio do inimigo constituem um campo privilegiado para a descrição e a análise de sentimentos e emoções extremas. Que fosse a nobreza a dar testemunho dessas situações não deixa de ser bastante sintomático do lugar que ela própria se atribuía como protagonista da guerra, na glória das vitórias ou no sofrimento das derrotas.

Educada na “cultura da guerra”, formada nas “artes militares”, industriada nas tácticas do combate, treinada no manejo das armas, eis a matriz bélica essencial da nobreza castelhana desta época. E conclui Daniel Baloup: “Melhor armada, em todos os sentidos do termo, a nobreza castelhana continua no século XV a dominar o campo de batalha”12.

Ao que se poderá acrescentar: para a sua imagem identitária, para a sua legitimação funcional, para a sua distinção exclusiva, para a afirmação do seu ethos imprescindível para a Coroa, a nobreza de Castela fixava a sua versão da guerra, elaborava e transmitia as suas crónicas, no seu tempo e para a posteridade. Porque a história que escrevia era também “um campo de batalha”13.

Referências bibliográficas

BALOUP, Daniel - L’homme armé. Expériences de la guerre et du combat en Castille au XVe siècle. Madrid: Casa de Velázquez, 2022. [ Links ]

BARKAI, Ron - Cristianos y Musulmanes en la España medieval (El enemigo en el espejo). Madrid: Rialp, 1984. [ Links ]

BECEIRO PITA, Isabel - El Condado de Benavente en el siglo XV. Benavente: Centro de Estudios Benaventanos Ledo del Pozo, 1998. [ Links ]

CORBIN, Alain; COURTINE, Jean Jacques; VIGARELLO, Georges (dir.) - Histoire des Émotions. 3 vols., Paris: Seuil, 2016-2017. [ Links ]

Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Ed. crítica por José Mattoso, 2 vols., Lisboa: Academia das Ciências, 1980. [ Links ]

Livros Velhos de Linhagens. Ed. crítica por Joseph Piel e José Mattoso, Lisboa: Academia das Ciências , 1980. [ Links ]

TRAVERSO, Enzo - L’histoire comme champ de bataille. Interpréter les violences du XXe siècle. Paris: La Découverte, 2012. [ Links ]

Notas

1 BALOUP, Daniel - L’homme armé. Expériences de la guerre et du combat en Castille au XVe siècle. Madrid: Casa de Velázquez, 2022, p. 5.

2BALOUP, Daniel - L’homme armé…, p. 5 (a tradução portuguesa das citações é da nossa responsabilidade).

3BALOUP, Daniel - L’homme armé…, pp. 37 e ss.

4BALOUP, Daniel - L’homme armé…, pp. 193-248.

5BALOUP, Daniel - L’homme armé…, pp. 167-191.

6Livros Velhos de Linhagens. Ed. crítica por Joseph Piel e José Mattoso. Lisboa: Academia das Ciências, 1980, e Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. Ed. crítica por José Mattoso, 2 vols., Lisboa: Academia das Ciências, 1980.

7BALOUP, Daniel - L’homme armé…, p. 11.

8 BECEIRO PITA, Isabel - El Condado de Benavente en el siglo XV. Benavente: Centro de Estudios Benaventanos Ledo del Pozo, 1998.

9Vejam-se, a este respeito, as breves referências à participação portuguesa em Toro: BALOUP, Daniel - L’homme armé…, pp. 109 e 227.

10 BARKAI, Ron - Cristianos y Musulmanes en la España medieval (El enemigo en el espejo). Madrid: Rialp, 1984.

11Veja-se, a título de exemplo, CORBIN, Alain; COURTINE, Jean Jacques; VIGARELLO, Georges (dir.) - Histoire des Émotions.

12BALOUP, Daniel - L’homme armé…, p. 252.

13Do título do livro de TRAVERSO, Enzo - L’histoire comme champ de bataille. Interpréter les violences du XXe siècle. Paris: La Découverte, 2012.

Recebido: 25 de Abril de 2023; Aceito: 25 de Abril de 2023

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