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Medievalista

On-line version ISSN 1646-740X

Medievalista  no.34 Lisboa Dec. 2023  Epub Dec 31, 2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.7066 

Varia

Os Banhos Islâmicos de Loulé e a Casa Senhorial dos Barreto: da arqueologia urbana à musealização de um sítio singular

The Islamic Baths of Loulé and the Manor House of Barreto: from urban archeology to the musealization of a unique site

Dália Paulo1  2 

1. Câmara Municipal de Loulé, Portugal

2. Universidade do Algarve, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais 8005-139 Faro, Portugal; dalia.paulo@cm-loule.pt


O inesperado da descoberta arqueológica! É esta a frase que melhor se adequa à história que aqui se pretende partilhar. A arqueologia é uma ciência que nos permite compreender a ocupação humana do território, particularmente daqueles que não deixaram registo escrito e que não figuram nos anais da História. No caso específico da arqueologia urbana, as camadas de cidade que cada geração acrescenta ao lugar vão sendo descobertas, constituindo um repositório de memórias e de estórias que se perderam na memória dos vindouros mas que nos permitem viver momentos de descobertas verdadeiramente felizes!

Assim foi em 2006, quando a autarquia comprou um imóvel no Largo D. Pedro I, perto das Bicas Velhas, em pleno Centro Histórico da cidade de Loulé, desconhecendo a riqueza patrimonial que viria a encontrar. Havia apenas o conhecimento da existência de três arcos em ogiva descritos na bibliografia dos anos 80 do século XX1, mas um completo desconhecimento do que estava para além do visível; as escavações arqueológicas realizadas (2008) revelaram uma completa surpresa, como afirmam as arqueólogas municipais: “veio mais tarde a concluir-se, corresponde ao estabelecimento de banhos públicos (hammam) da cidade islâmica de Al- ‘Ulyà”2. O que levou a arqueóloga responsável pela escavação a perceber que estava perante um edifício público e não uma habitação comum da cidade de al-Ulyà? Entre outras evidências que se iam revelando, foram as chaminés embutidas na parede que constituíram o primeiro indício do que se viria a comprovar ser a Sala Quente bem como o hipocausto; elementos estes com paralelos nas cidades islâmicas do Sul da Península Ibérica.

Este trabalho de encontrar elementos arquitetónicos semelhantes noutras cidades peninsulares foi sendo realizado em simultâneo e, foi, por isso, que as primeiras campanhas permitiram confirmar, de forma (quase) inequívoca, tratar-se de uns banhos públicos da cidade islâmica de Al-Ulyà, construídos junto à muralha e a uma das portas da cidade3.

As escavações continuaram e em 2014 toma-se a decisão de dar início à musealização do sítio arqueológico, tendo, para tal, sido realizada uma parceria com a Universidade do Algarve e com o Campo Arqueológico de Mértola, permitindo dar continuidade à investigação com uma equipa tripartida. A equipa do Museu Municipal de Loulé realiza as escavações tendo como finalidade a musealização futura, dando-se, simultaneamente, início a uma investigação histórica a cargo de Luís Oliveira4 e Marco de Sousa Santos5, que viria a complementar os dados arqueológicos com novos dados historiográficos, dando-nos a conhecer a Casa Senhorial dos Barreto, casa esta de finais do século XV, inícios do século XVI. A evidência arqueológica e a documentação histórica dão ao lugar uma nova importância; agora já conhecíamos a família, as pessoas, a quem o Rei Afonso V doou o terreno para construir a sua casa de morada. Este novo dado - a casa senhorial da família Barreto - seria fundamental para todo o processo de pensamento crítico e conceitos que iriam estar subjacentes à musealização deste complexo arqueológico.

Nesta fase dos trabalhos deparámo-nos perante uma encruzilhada e um desafio e a concreta necessidade de fazer escolhas; o que musealizar? Abranger todas as fases cronológicas do espaço ou “sacrificar” uma época em detrimento de outra? Tínhamos dois edifícios que se sobrepunham e onde as escolhas de preservação (ou não) implicavam com os projetos de arquitetura e de musealização que se estavam a elaborar. Um edifício de época moderna, singular no contexto do património cultural regional, pois, devido aos sucessivos terramotos de que a região padeceu, não abundam no território muitos edifícios seiscentistas; e um edifício que, com o desenrolar da investigação e das escavações, sabia-se que eram (e continuam a ser) os únicos banhos islâmicos conhecidos em território português e os que têm a planta mais completa (da sua tipologia de três naves) na Península Ibérica.

Trabalhar em Património Cultural é, a cada momento, refletir e fazer escolhas. É o poder de decidir o que se lega às gerações futuras, aquilo que, em cada época, se considera relevante para constituir o nosso repositório de identidade, de memória, de ligação umbilical àqueles que por cá passaram antes de nós. Um poder que temos de saber gerir com respeito por quem nos antecedeu mas também por aqueles que virão depois de nós.

Especialistas de diversas formações e áreas foram chamados a dar o seu parecer - arqueólogos, historiadores, historiadores de arte, museólogos, arquitectos - no sentido de apoiar a importante decisão municipal. Cada especialista fez uma radiografia do lugar, colocou-o no contexto regional, nacional e ibérico e, a partir daí, compilaram-se os diferentes pareceres científicos necessários para uma decisão final. Ambas as visões - a de conservar o edifício senhorial da Casa dos Barreto apenas através de uma salvaguarda pelo registo e aquela que defendia a preservação in situ de ambos os edifícios, a Casa Senhorial dos Barreto e os Banhos Islâmicos - foram fundamentadas nos conceitos e nas diferentes cartas de salvaguarda do património6 ao nível dos princípios, assim como nas várias filosofias de intervenção ao nível da conservação e restauro. Uma questão essencial se levantava: para preservar in situ ambos os edifícios estaríamos a comprometer partes essenciais para a compreensão de algum deles. A este se aliava uma outra e que percorre todos os trabalhos ao nível da preservação do património cultural, a de perceber se tínhamos o direito de fazer escolhas que “eliminassem” um dos edifícios a favor do outro.

O tempo urgia e era necessário decidir. Os especialistas tinham estudado, refletido, discutido, voltado a refletir, conscientes de que a opção a tomar condicionava a intervenção arqueológica que ainda era necessário realizar e, além disso, condicionava a história que iríamos contar, já para não falar do projeto de arquitetura bem como do programa de musealização das ruínas e do programa museológico do complexo arqueológico. Neste tipo de processo coloca-se, como é óbvio, o problema do financiamento disponível, essencial para perceber quais as melhores soluções de mitigação do impacto da intervenção arqueológica e de valorização patrimonial deste singular complexo arqueológico no coração do Centro Histórico da cidade de Loulé.

Assim, sabendo que a gestão de património cultural exige, a cada momento, uma avaliação sobre as escolhas a fazer, a decisão foi tomada: musealizar os dois edifícios que nos contam cinco séculos de história no mesmo lugar de uma mesma cidade.

Após essa decisão, o diálogo técnico entre arquiteto e sua equipa de projeto, historiadores e arqueólogos continuou acalorado, essencial para encontrar as melhores soluções arquitetónicas e museográficas no sentido de valorizar todos os vestígios arqueológicos, tendo como objetivo final a sua devolução às pessoas para a sua fruição social e cultural.

Com o rigor, a exigência, o diálogo e a multidisciplinariedade que um trabalho destes necessita; conscientes do perigo para o qual nos alertava Rui Parreira, no sentido de não “converter os elementos patrimoniais selecionados numa ficção de um passado coletivo”7, o trabalho prosseguiu, protegendo-se, construindo-se, reconstruindo-se e voltando a soterrar algumas partes dos edifícios que já não conseguiriam “falar” nem através da musealização.

A fase seguinte consistiu na definição conceptual da intervenção a realizar e fornecer as indicações à equipa projetista, ou seja, definir que “contentor” queríamos para este complexo arqueológico. Sabendo que o mesmo estava inserido no Centro Histórico da cidade de Loulé onde se privilegiam intervenções arquitetónicas de qualidade que possam realizar um diálogo contemporâneo com as várias camadas históricas que a cidade contém, não se pretendia mimetizar nada, nem desenhar qualquer tipo de arquitetura que não fosse uma intervenção contemporânea e, ao mesmo tempo, que tivesse o máximo respeito pelas pré-existências, salvaguardando-as e valorizando-as. Era necessário um edifício com um enquadramento e uma leitura contemporâneas inserido num Centro Histórico não cristalizado e que acrescentasse valor ao existente, adaptando-o às necessidades da sociedade atual mas sempre com o máximo de respeito pelo legado das gerações anteriores. Estas “balizas” foram catalizadoras de um diálogo (im)perfeito entre aquilo que foi construído e o novo “volume” que iria surgir neste quarteirão delimitado, num dos lados, pela muralha da cidade.

As linhas orientadoras do projeto de arquitetura8, do projeto de conservação e restauro9 e do projeto de museografia10 foram as seguintes:

  • Intervenção arqueológica com o máximo de rigor científico, fundamental para solidificar as escolhas a realizar: o que deixar conservado in situ, visível, e o que se devia voltar a soterrar por não ter “leitura” para a futura musealização das ruínas;

  • Intervenção de conservação e restauro que permitisse ao visitante conseguir interpretar as várias “camadas do tempo” e onde a intervenção de restauro fosse percetível, consolidando as estruturas e não havendo lugar a reconstrução das mesmas;

  • Intervenção arquitetónica o menos intrusiva possível com a ruína arqueológica, valorizando o património imóvel a musealizar e tornando (quase) invisível as estruturas de engenharia que suportariam o novo edifício;

  • Intervenção arquitetónica ao nível do novo edifício que se pautasse por elevada qualidade e rigor arquitetónicos e que utilizasse uma linguagem contemporânea, “dialogando” com a cidade do Centro Histórico;

  • Intervenções arquitetónica e de conservação e restauro reversíveis;

  • Musealização das ruínas que permitisse uma fácil manutenção e acesso às mesmas;

  • Programa museológico que incluísse as questões da acessibilidade como linha orientadora do seu desenvolvimento, quer ao nível das opções museográficas, quer ao nível das opções de conteúdos fixos (painéis e legendas) e móveis (maquetas, folhetos);

  • Recurso ao audiovisual e às reconstituições para uma “leitura” mais correta dos espaços.

Estas linhas estratégicas permitiram valorizar os dois edifícios patrimoniais de forma simples, clara e linear, onde o que importa na visita é o património imóvel e móvel que é mostrado, não ficando o mesmo ofuscado pela tecnologia - que foi utilizada com contenção para ajudar na compreensão e interpretação do complexo arqueológico e, por outro lado, permitiram criar um novo local de interesse patrimonial e que é colocado ao serviço do desenvolvimento sustentado do concelho e da região, incluindo-o na rota do Turismo Cultural regional, nacional e da Península Ibérica.

A importância do trabalho de valorização patrimonial desenvolvido de modo participado, sustentado e constituindo fator de valorização identitária, devolvendo à comunidade a sua herança comum, contribui para uma estratégia de desenvolvimento regional, nomeadamente ao nível turístico que deve assentar na qualificação da oferta e da imagem do destino, com “produtos” de qualidade todo o ano, como referia Rui Parreira:

“(…) as intervenções em património arqueológico constituem uma mais-valia do presente (…) Aproveitando as «janelas de oportunidade» oferecidas pelo turismo, as ações de restauro do património arqueológico imóvel potenciam, hoje em dia, práticas de ação cultura dirigidas a residentes e a forasteiros, e inserem-se numa estratégia de desenvolvimento sustentável que assume os sítios arqueológicos como factores de desenvolvimento, como marcas identitárias com uma valia económica acrescentada e como produto de conhecimento e inovação, descodificando o processo histórico que condicionou o quadro em que atualmente se inserem as comunidades, herdeiras dos mesmos territórios, e estimulando o questionamento crítico acerca da sua transformação”11.

A intervenção neste complexo arqueológico - para além da questão fulcral de valorização de dois edifícios referenciais para o conhecimento da história da região e do Sul de Portugal - teve presente o seu contributo para o desenvolvimento sustentável e sustentado do concelho e da região, quer ao nível social (através do trabalho com as escolas e com a população em geral) quer ao nível económico (na sua relação com a principal atividade económica da região, o Turismo). Os princípios da Carta Internacional sobre o Turismo Cultural (ICOMOS, 1999) estiveram presentes no trabalho desenvolvido, pretendendo contribuir para a “tomada de consciência do público, pois essa consciencialização constitui base essencial para assegurar a preservação, a longo prazo, do património natural e cultural12 entroncando com a ideia de questionamento crítico e de descodificação do território, referida acima por Rui Parreira.

Esta abordagem multidisciplinar da intervenção em património arqueológico imóvel permite contribuir de forma significativa para novos olhares sobre a nossa história e, consequentemente, permitir uma aproximação emocional ao “objeto” arqueológico, visto como algo que foi construído há vários séculos mas que, hoje, faz parte integrante da vida contemporânea da cidade e das pessoas. Aliás, intervir em património numa cidade é, acima de tudo, trabalhar o presente, as necessidades das comunidades, é perceber que as escolhas de salvaguarda e de valorização patrimoniais que se realizam em cada época, mostram-nos muito de cada tempo e são fruto da sociedade em que se desenvolvem e não dos vestígios que preservam. Uma cidade é por definição um sítio de transformação, de vida, em que a sua ocupação é mutável, em que os espaços são a cada momento repensados, reconstruídos, ganhando novos usos e significados, contribuindo para a o desenvolvimento social, económico e cultural das comunidades.

Uma musealização desafiante!

Musealizar um sítio arqueológico é um momento de grande responsabilidade, só podendo ser concretizado por uma equipa multidisciplinar e que começa sempre (ou devia começar) pela investigação do sítio arqueológico conjugando várias áreas disciplinares. A partir dos dados científicos das diversas disciplinas - arqueologia, geologia, conservação e restauro, história, história da arte, antropologia - realizam-se os estudos científicos necessários que servirão de base para dar início ao processo de construção da história que vamos contar no “futuro” espaço musealizado; a partir destes estudos, dá-se início à elaboração do programa museológico que segue em paralelo com a conservação e restauro do património móvel e imóvel e com o estudo aprofundado dos materiais (móveis). Neste processo, a investigação nas várias áreas vai sendo envolvida para que se possa responder a questões que, a cada passo da construção do programa museológico (e mais tarde museográfico), vão sendo levantadas e que são fundamentais para a história que se vai construindo; são questões necessárias para que o fio condutor seja percetível no espaço visitável, no sentido da descodificação do processo histórico.

Na musealização da Casa Senhorial dos Barreto e Banhos Islâmicos estiveram envolvidos na construção do guião, um historiador, três arqueólogos e uma museóloga13; foi uma “escrita” a oito mãos, em que cada especialidade foi aportando o seu conhecimento. Este processo de construção colaborativa do guião museológico constituiu um desafio, sendo necessário encontrar denominadores comuns.

Este projeto teve na sua base um processo de enorme discussão técnica e científica, onde foi preciso fazer cedências, obrigando cada especialista a ouvir o outro e, a partir do conhecimento comum, chegar a um consenso na forma de um texto final no qual se contava a história a valorizar e a partilhar com os futuros visitantes. Neste processo, a questão da relevância do nosso trabalho de criação de um espaço expositivo esteve sempre latente, com as perguntas de Nina Simon a fervilharem no pensamento: “What do our visitors most desire? What’s in their hearts? How could we start by getting to know them, and then build an experience based on that?”14. É este o ponto fulcral presente em todos os processos de musealização: colocar as pessoas no centro do nosso pensamento crítico e na construção concetual do espaço, numa relação sempre (im)perfeita entre o conhecimento científico e a sua passagem para os públicos, com os seus preconceitos, com as suas aprendizagens prévias, percecionando a capacidade de leitura dos públicos e criando um espaço que possa contribuir para conquistar públicos para o património e para a construção de uma identidade coletiva que deve reforçar a autoestima das comunidades e ser uma mais valia do ponto de vista da atração dos territórios.

Voltando ao trabalho dos especialistas, como todos os processos colaborativos, a sua riqueza foi enorme; cada um aprendeu com os outros e ficou com uma visão holística do processo de musealização do espaço, ganhando consciência de que comunicar ciência através de uma exposição é um desafio que obriga os especialistas a deixar o jargão técnico para o catálogo, a sintetizar o conhecimento (que para cada especialista é sempre fundamental) numa linguagem clara, a criar pontes entre a história e a atualidade. E foi isto que aconteceu na elaboração do guião museológico da Casa Senhorial dos Barreto. Definiram-se os núcleos a trabalhar, escolheram-se os materiais arqueológicos a integrar a exposição, reviram-se os textos, pensou-se a maneira de contar a história. A partir daqui, com este documento base delineado - programa museológico - avançou-se para o projeto museográfico do espaço para o qual concorreram novas especialidades: design, comunicação, luminotecnia, entre outros.

Nesta nova fase do trabalho novos desafios se colocaram, nomeadamente uma museografia condicionada por duas questões de partida: no edifício e no espaço existentes para a colocação da parte expositiva da ruína arqueológica, onde se iria contar a história através dos artefactos encontrados nas escavações arqueológicas (2006 a 2019); e como se iria enquadrar o visitante na vivência do lugar com os seus cinco séculos de história.

Como forma de reflexão desta fase e antes de abordar a questão específica da acessibilidade e das tecnologias utilizadas, importa referir que é nesta fase que se faz a transposição daquilo que é o conhecimento científico para a sua função social; aqui se quebram as barreiras metodológicas e, muitas vezes, de preconceito entre aquilo que é o jargão científico e uma história contada em linguagem clara, acessível que não é nem infatilizante nem medíocre, questões que a museologia contemporânea tem vindo a debater e a transformar nas últimas décadas. Os textos que chegam dos comissários científicos, dos especialistas, são depois tratados de forma rigorosa, séria, transformando-os em linguagem clara para os públicos, para que entendam de forma clara o que estão a ver não se sentindo de alguma maneira excluídos. Desta forma se cumpre a função primeira da musealização dos espaços: devolvê-los às pessoas (residentes e visitantes) e integrá-los na vida e no desenvolvimento sustentado da sociedade contemporânea.

É este um desafio que poderá parecer fácil e simples, mas na verdade compreende uma complexidade enorme que ainda não foi totalmente ultrapassada na museologia contemporânea. Aqui, no trabalho desenvolvido para a musealização da Casa Senhorial dos Barreto e dos Banhos Islâmicos, esse processo foi dialogante mas, por isso, também, moroso e por vezes tenso mas que, no final, resulta numa musealização que conta uma história através de uma linguagem clara e percetível para qualquer visitante (acreditamos nós), com níveis de informação organizados entre textos de núcleo, legendas e informação adicional em suporte eletrónico, tudo conjugado com a necessidade de dar vida aos artefactos deixados pelos nossos antepassados.

Neste contexto, detenhamo-nos, agora, naquilo que foi o processo museográfico do espaço expositivo. Tal como nos textos que corporizam um discurso museográfico, aqui o diálogo fez-se, sobretudo, entre os especialistas dos conteúdos e os especialistas do desenho expositivo. Uma vez mais o diálogo foi intenso, de alguma tensão e, acima de tudo, de entendimento de que estávamos a conceber um espaço para diversos tipos de públicos, com diversas necessidades, com diversos conhecimentos e que, para comunicar com eles, era necessário que os objetos arqueológicos selecionados para contar a história pudessem “falar” com o visitante e, que de uma forma quase orgânica, pudesse dialogar com cada um deles.

Deu-se, assim, início à materialização do guião expositivo, percebendo-se de imediato que era mesmo necessário colocar os objetos novamente no seu contexto de uso, ou seja, os especialistas selecionaram objetos cerâmicos e de metal que tinham uma enorme importância na história que se iria contar mas que, para o comum dos visitantes, não passariam de “um caco” ou um “objeto disforme”. Assim sendo, foi opção da museografia recriar a duas dimensões espaços e objetos onde aqueles fragmentos selecionados ganhavam sentido, significado e vida. Este processo exigiu quer a arqueólogos, quer a designers gráficos uma capacidade de empatia enorme para que, a cada momento, a necessidade de criar um espaço relevante para as pessoas e onde o mais pequeno fragmento de cerâmica, de vidro ou de metal tivesse a capacidade de interpelar o visitante e de contribuir para a história da ocupação humana deste lugar.

Chegados aqui, importa ainda abordar a questão da musealização da ruína arqueológica. Com três edifícios a musealizar - a muralha (ou parte dela); a casa Senhorial dos Barreto e os Banhos Islâmicos, esta tarefa constituía um desafio que vinha sendo trabalhado desde as escavações que se iniciaram com a colaboração do Campo Arqueológico de Mértola, e que tinham como objetivo final a musealização do complexo arqueológico. Para além disso, era preciso contextualizar o embasamento visível da muralha, pelo que se optou por, nesse local, contar em videograma a evolução da ocupação urbana da cidade de Al-Ulyà.

Quanto à Casa Senhorial dos Barreto (Fig. 1), que é o edifício que o visitante vê quando chega ao local, foi necessário fazer escolhas e decidir o que é que ficava visível e como. Isto porque há neste espaço um jogo de tempos de abstrações que são solicitadas ao visitante; deter-se no nível dos seus pés e, apenas elevando o olhar, aos arcos ogivais que são reproduzidos para nos dar a dimensão do pátio interior da Casa Senhorial dos Barreto. Aqui optou-se por colocar o arco ogival original junto da passagem do visitante e por mimetizar num dos lados a arcaria com ferro apenas para dar volumetria ao lugar. Utilizando o recurso à tecnologia, o visitante consegue perceber a evolução da casa senhorial dos Barreto desde finais do século XV à segunda fase já do século XVI, quando a casa é aumentada pelo casamento de Nuno Barreto com Leonor Melo.

Depois de compreender a localização da Casa Senhorial e a época do lugar quando é doado a Gonçalo Nunes Barreto e quando a memória dos Banhos Islâmicos já se havia perdido na memória das pessoas, que o visitante é convidado a conhecer os únicos Banhos Islâmicos escavados em Portugal15. Mais de dois metros e meio abaixo da cidade atual, os Banhos revelam-se ao olhar do visitante através de um jogo de luz que permite de imediato perceber as zonas quentes - canalizações na parede das chaminés e hipocausto - bem como pelo recurso à tecnologia que, numa viagem ao passado, permite ao visitante perceber a vivência de cada uma das salas musealizadas - a Sala Quente, a Sala Tépida e a Sala Fria.

Fig. 1 Casa Senhorial dos Barreto 

Constitui um enorme desafio para arquitetos, museógrafos, conservadores-restauradores e arqueólogos, a sobreposição de camadas que vão formando as várias cidades que fazem a cidade. Cada época condiciona o processo de musealização, nomeadamente as zonas a deixar visíveis a aquelas que devem ser novamente soterradas.

Voltando à questão enunciada no início deste artigo, constituiu um enorme desafio musealizar este complexo arqueológico porque, ao fazer a escolha entre musealizar a Casa Senhorial dos Barreto e os Banhos Islâmicos, era necessário, antes de mais, que as opções museográficas e de musealização do espaço pudessem, a cada momento, dar vida a cada um dos edifícios sem que um ofuscasse o outro. Para a musealização da Casa Senhorial as opções foram mais consensuais, mas para a musealização dos Banhos Islâmicos - quer pela importância histórica de serem os únicos em Portugal, quer pelas interferências dos vários séculos de ocupação após a utilização do espaço como hamman da cidade islâmica de Al-Ulyà - surgia a questão de como é que se ia valorizar este monumento único se as paredes das épocas posteriores encurtavam salas e quebravam unidades espaciais e visuais? A relocalização de uma calçada da Casa Senhorial dos Barreto para permitir a visualização da entrada dos Banhos Islâmicos foi uma das opções, bem como a recriação “artística” dos tetos abobadados das três salas dos Banhos Islâmicos (por cima das colunas da Casa Senhorial dos Barreto) necessária para dar ao visitante a dimensão das salas dos Banhos (Fig. 2). Mas são os painéis interativos colocados em cada um dos topos das salas dos Banhos Islâmicos, que melhor conseguem dar esta informação ao visitante.

Fig. 2 Banhos Islâmicos 

Por fim, importa questionar se, após o trabalho realizado, a equipa ficou confiante com a escolha concretizada de manter os dois edifícios. Dentro do contexto do conhecimento histórico e patrimonial do Algarve, a resposta é claramente sim, a opção revelou-se a mais correta para acrescentar valor ao património cultural existente na região. No contexto da história que se conseguiu contar e da relação que se pretendia criar entre os visitantes e o espaço a resposta também é positiva, porque os dois edifícios representam cinco séculos de uma história pouco conhecida na região do Algarve.

Desta forma nasceu mais um espaço musealizado no concelho de Loulé, que integra o Museu Municipal de Loulé16 (Fig. 3), credenciado pela Rede Portuguesa de Museus. Integra, ainda, a 1.ª fase do Quarteirão Cultural de Loulé, um projeto que abrange o edifício do Castelo de Loulé (atual museu) o antigo Convento do Espírito Santo e edifícios adjacentes a estes dois edifícios patrimoniais, numa área útil de 5.000m2, e que constituirá uma das âncoras do projeto do aspirante Geoparque Algarvensis Loulé-Silves-Albufeira a Geoparque Mundial da UNESCO. Aqui contar-se-á a história da terra que denominámos de “os mares interiores” e a história da ocupação humana do território de Loulé.

Fig. 3 Sala Exposição 

A musealização do complexo arqueológico Casa Senhorial dos Barreto e Banhos Islâmicos, sendo um processo desafiante, complexo e longo, foi um projeto que permitiu desenvolver novas metodologias de trabalho em equipa, novos diálogos interpares e institucionais e diversas técnicas para entender o local (por exemplo a fotogrametria necessária para a realização de maquetas tridimensionais). Estiveram envolvidos inúmeros especialistas cujos respetivos estudos estarão reunidos no catálogo que se quer um documento marcante para a história da investigação da cidade de Loulé e que, decerto, trará novas pistas para investigações futuras.

Do conhecimento à fruição, o trabalho realizado de investigação, conservação e musealização da casa Senhorial dos Barreto e dos Banhos Islâmicos, permitiu transformar este local num espaço de visita obrigatória para quem ruma a Sul, inserido nos roteiros culturais da região e do país, e um ponto de reflexão, de contacto e de diálogo contemporâneo com o Mediterrâneo.

Os museus e os espaços museológicos são janelas para o mundo e espaços de aproximação ao outro, são lugares de pensamento e de resistência. Este espaço museológico - Casa Senhorial dos Barreto e Banhos Islâmicos - é o reflexo da ousadia de fazer escolhas (nada fáceis ou consensuais) para legar às gerações vindouras um património cultural singular, constituindo hoje um local identitário do que somos hoje como povo.

Referências bibliográficas

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Notas

1 MARTINS, Isilda; Matos, José Luís - As Muralhas de Loulé. Loulé: Câmara Municipal de Loulé, 1985.

2 LUZIA, Isabel; PIRES, Alexandra - “A escavação arqueológica da Casa das Bicas e o edifício do hammam de Loulé”.Al-úlyá14 (2013), p. 36

3Localização comum noutras cidades islâmicas.

4Especialista em época medieval cristã e Professor da Universidade do Algarve.

5Historiador, coordenado pelo Professor Doutor Luís Oliveira.

6A título de exemplo, a Convenção de Faro (2005) e a Declaração de Davos (2018).

7 PARREIRA, Rui - “A conservação e o restauro do património arqueológico imóvel em Portugal”. In CUSTÓDIO, Jorge (coord.) - 100 anos de património memória e identidade - Portugal 1910-2010. Lisboa: Instituto de Gestão do Património, 2019, p. 354.

8Realizado pelo Prof. Arquiteto Vítor Mestre.

9Realizado pela empresa Nova Conservação (calçada da Casa dos Barreto) e Era (restauro das estruturas arqueológicas conservadas in situ).

10Realizado pela Byar.

11PARREIRA, Rui - “A conservação e o restauro do património arqueológico imóvel em Portugal”. In 100 anos de património memória e identidade - Portugal 1910-2010. Lisboa: Ministério da Cultura, IGESPAR, 2010, p. 357.

12Carta Internacional do Turismo Cultural, Princípio 1, alínea 1.3 (México, 1999).

13Ana Rosa Sousa (Historiadora, chefe de Divisão de Museus, Cultura e Património da Câmara de Loulé), Susana Goméz Martinez (Arqueóloga do Campo Arqueológico de Mértola e Professora na Universidade de Évora), Alexandra Pires (Arqueóloga e Chefe de Unidade Operacional de Arqueologia e Museologia da Câmara Municipal de Loulé), Rui de Almeida (Arqueológo do Museu Municipal de Loulé) e Dália Paulo (Museóloga, Coordenadora do projeto).

14 SIMON, Nina - The art of Relevance, Museum 2.0, 2016, p. 107

15Que se encontram na fase final da Classificação como Monumento Nacional, pela Direção Geral de Património Cultural.

16Pólo museológico da cozinha tradicional (1991), Núcleo sede, arqueologia instalado no Castelo de Loulé (1995), Pólo museológico dos Frutos Secos (1998), Pólo museológico de Salir (2006), Pólo museológico Cândido Guerreiro e Condes de Alte (2009), Pólo museológico da Água, em Querença (2012) e a Ermida de Nossa Senhora da Conceição (2008).

Recebido: 10 de Maio de 2023; Aceito: 10 de Maio de 2023

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