Faz parte da condição humana a consciência do paradoxo fundamental da vida, marcada pela fragilidade e pela finitude, mas também por uma força imparável de renovação e de superação, de desejo de ultrapassar a voragem do tempo e evitar o esquecimento. Recordar, fazer memória, celebrar e ter memória em conjunto, foram, desde sempre, formas não apenas de resgatar as vozes e os feitos do passado, mas também de os fazer actuais, tornando-os de novo significativos, eficazes. Por isso os documentos fizeram-se monumentos, determinados sítios tornaram-se lugares de memória, as datas, os sítios e os eventos foram rememorados por gestos e ritos socialmente significativos, capazes de os tornarem actuais, em toda a sua força simbólica. O modo como se recorda, e, sobretudo, como as sociedades recordam, combina a capacidade de guardar e transmitir a memória, de a evocar e comemorar, ou de a fixar em ritos, lugares ou narrativas.
Servem estas considerações de introdução ao presente número da Medievalista, que reúne um dossier temático sobre a comemoração dos mortos no mundo medieval. Incide este no espaço urbano e nas instituições, eclesiásticas no caso, que nele garantiam essa função comemorativa e de mediação, no sufrágio pelos defuntos e na perpetuação da sua memória. Sob a coordenação de Maria Amélia Álvaro de Campos e Ana Isabel Sampaio Ribeiro, os textos aí reunidos cruzam distintos lugares, distintos registos e protagonistas, testemunhando lógicas de recordação e celebração evidenciadoras da força das hierarquias e das desigualdades sociais. Também das diversas estratégias de promoção e perpetuação da memória e da sua articulação com redes estabelecidas de poder e de influência, ou das lógicas de recordação e registo da memória das próprias instituições encarregadas de sufragar as almas dos que lhes confiaram os seus corpos e os seus bens. Note-se a particular concentração dos estudos nas catedrais e igrejas-colegiadas urbanas, apenas rompida com o texto final dedicado ao mosteiro cisterciense do Lorvão e aos códices que nele regulavam a comemoração litúrgica dos defuntos, fossem eles as suas monjas ou os seus ricos e poderosos benfeitores. Como se isso prenunciasse a chegada dos mendicantes e dos espaços por eles tutelados, desde cedo rivais do clero paroquial em muitas vilas e cidades do Ocidente nos séculos finais da Idade Média.
Dois outros artigos integram este número, de âmbito distinto. No primeiro, Diana Fontão estuda um dos livros ditos de Inquirições, associado ao reinado de Afonso III e hoje integrado no Arquivo da Coroa. Num minucioso itinerário pelos vários inventários conhecidos do Arquivo régio, seguido de uma atenta crítica do seu conteúdo, revela-se o carácter compósito daquele livro. Que traz a cópia de diplomas diversos associados às comunidades mouras do reino, autenticada por um notário da comuna muçulmana de Lisboa e um escrivão da Torre do Tombo, a que se juntou um grupo de documentos associados ao registo da colheita régia e, por fim, matéria das Inquirições de Afonso III sobre os direitos devidos ao monarca por igrejas e mosteiros do reino. Só mais tarde se agregariam a este códice os fólios iniciais, com um índice e a chamada Crónica Breve do Arquivo Nacional. Por outro lado, Geraldo Augusto Fernandes recupera os recursos rítmicos, figurativos e rectóricos utilizados na expressão da temática amorosa por Garcia de Resende no Cancioneiro Geral. A sua análise mostra também o carácter multifacetado do tema, não desligado das considerações sobre o desconcerto do mundo, ou os paradoxos que habitam a condição humana, onde o amor se tece entre a exaltação e a tragédia.
Nas Recensões, são apresentadas três obras bastante diversas. Uma delas sobre as primeiras obras filosóficas, ou de juventude, de Santo Agostinho, na qual se procura demonstrar que a construção discursiva se desenvolve a partir de um modelo dialógico, com o objectivo de envolver o autor e o leitor num percurso reflexivo em busca da verdade e de uma transformação de vida. Versa a segunda a tese recém-publicada de Carlos Filipe Afonso sobre o papel da guerra na formação de Portugal e na construção da monarquia, obra que completa, para um período mais recuado, os estudos de João Gouveia Monteiro e Miguel Gomes Martins. Traz a última um olhar sobre a obra de Ana Rodrigues Oliveira dedicada ao amor em Portugal na Idade Média, onde se exploram as distintas formas de leitura e vivência da dimensão amorosa, desde o amor a Deus e a exaltação da virgindade, às formas com que se enquadrava o amor e a sexualidade entre os leigos, ou como estas eram manipuladas e transgredidas.
A mesma diversidade de olhares e de saberes nas Notas de Investigação, agora com textos sobre investigações inovadoras no âmbito dos estudos medievais. Hermine Gregorian apresenta os resultados do seu doutoramento sobre quatro manuscritos iluminados arménios do Museu Gulbenkian - uma Bíblia e três Evangeliários - que foram estudados numa perspectiva multidisciplinar e que revelam uma notável continuidade com as tradições artísticas medievais da região. As fontes diplomáticas foram, por seu lado, o ponto de partida da investigação de Luísa Tollendal Prudente sobre as mulheres de poder no espaço asturo-leonês durante os séculos XI e XII, que procurou esclarecer as formas e a importância da intervenção destas, num contexto marcadamente masculino e patriarcal. Já no campo da literatura de viagens, Rita Cipriano explorou a influência do romance medieval nos episódios da filha de Hipócrates e da fada do Castelo de Sparrowhawk do Livro de John Mandeville, para evidenciar as intertextualidades deste famoso itinerário pelo mundo islâmico, pela Terra Santa e pelo Oriente. O arquivo e a casa dos viscondes de Vila Nova de Cerveira foram o objecto da investigação de Filipa Lopes, que sublinhou a importância e as potencialidades do estudo dos arquivos de família, não só como monumentos de memória, mas também como construções políticas, sociais e culturais, testemunhos das instituições que os produziram e custodiaram, assim como dos contextos e das práticas de produção e conservação documental observadas ao longo do tempo.
Por último, a Varia integra um número invulgar de textos e de reflexões. Das notícias que fazem memória de eventos científicos diversos - o encontro sobre cinegética e ambiente, o colóquio da Associação Hispânica de Literatura Medieval -, aos Dias da Idade Média, iniciativa do Instituto de Estudos Medievais em parceria com várias entidades de Lisboa (Câmara Municipal, Arquivo Histórico, Centro de Arqueologia, EGEAC), que procurou trazer a Idade Média para públicos diversos, por meio de visitas guiadas, concertos, conferências, ateliers. Faz parte desta secção o contributo de Jacinta Bugalhão sobre o debate público criado pelas descobertas arqueológicas no claustro da Sé de Lisboa, assim como o ensaio de Miguel Alarcão sobre os usos do passado medieval pelo romance académico inglês, evocados a partir da obra Lucky Jim de Kingsley Amis.
Este número fecha tal como abriu, com a evocação de duas grandes figuras do nosso medievalismo: Christophe Picard e Luís Krus. Ambos estão associados a obras que renovaram profundamente o entendimento da Idade Média, seja no que respeita ao processo de islamização do Ocidente e à sua articulação com a actividade marítima no Atlântico e no Mediterrâneo, estudados por Picard, seja no que pertence ao modo como o espaço era representado pela literatura genealógica produzida no âmbito das cortes senhoriais portuguesas, que foi esclarecido por Luís Krus em A concepção nobiliárquica do espaço ibérico. A recente reedição deste último texto foi aliás motivo de um encontro evocativo da figura e da obra deste historiador, fundador do IEM e da Medievalista. Nesta dialética de memória e de comemoração, a eles se juntam outras figuras de relevo, como Clive Burgess, a quem é dedicado o presente dossier temático; ou como Harvey L. Sharrer (1940-2024), falecido no decurso deste ano e cuja obra foi recordada por Cristina Sobral no anterior número da Medievalista, e Denis Menjot (1948-2024), investigador desde o primeiro momento associado a muitos projectos e iniciativas do Instituto, a quem se pretende dedicar um texto próprio na próxima edição da revista. Ambos integraram, aliás, a Comissão Externa de Acompanhamento do Instituto de Estudos Medievais, com o seu saber e olhar crítico e construtivo
De todos eles, ficam as descobertas, os textos e os exemplos da indagação rigorosa e clarividente do passado, o compromisso com os alunos e colegas, a humanidade no trato e a disponibilidade para com todos. Que se saiba fazer uma justa memória e comemorar o seu legado, tanto no reconhecimento de quanto deixaram, como na audácia de um olhar renovado e crítico sobre o passado medieval, para melhor compreender o presente e a própria condição humana.













