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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

versão impressa ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.26 Porto dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.19131/rpesm.315 

Artigo de investigação

Contributos para uma história da enfermagem de saúde mental e psiquiátrica em Portugal (1883-1885)

Contributions to a history of mental health and psychiatric nursing in Portugal (1883-1885)

Contribuciones a una historia de la enfermería de salud mental y psiquiátrica en Portugal (1883-1885)

1Professora Adjunta na Escola Superior de Enfermagem Universidade do Minho. Portugal.

2 Unidade de Investigação em Ciências da Saúde: Enfermagem (UICISA: E), Escola Superior de Enfermagem de Coimbra (ESEnfC), Coimbra, Portugal

3 Professor Auxiliar no Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa. Centro de Investigação Interdisciplinar em Saúde. Portugal

4 Sociedade Portuguesa de História de Enfermagem. Portugal.

5 Professora Auxiliar com agregação do Departamento de História da Universidade do Minho. Lab2PT - Laboratório de Paisagens, Património e Território. Portugal.


Resumo

Contexto:

O Hospital de Alienados do Conde de Ferreira (HACF) foi vanguardista ao nível da assistência aos alienados no final do século XIX, com base nas novas ideias formadas na Europa sobre a psiquiatria e a assistência nesse domínio. Abordar a temática da enfermagem profissional implica tratar uma história iniciada nos anos de oitocentos; falar dos enfermeiros significa aludir a uma presença que sempre existiu nas instituições de saúde, particularmente nas psiquiátricas.

Objetivos:

Caraterizar o quotidiano no HACF (1883-1885) e analisar as responsabilidades dos enfermeiros nessa instituição.

Metodologia:

Enquadramento qualitativo, utilizada uma metodologia de investigação histórica, com pesquisa/análise documental e baseada em pressupostos teóricos de Michel Foucault.

Resultados:

O HACF foi inaugurado a 24 de março de 1883, no Porto. Os seus funcionários pertenciam a três categorias: direção económica, clínica e culto religioso. O corpo de enfermeiros era composto por criados, ajudantes de enfermeiro, enfermeiros e fiscal, pertencendo à direção clínica. Os enfermeiros eram os chefes das enfermarias, sendo responsáveis pelos ajudantes de enfermeiro e criados. Os enfermeiros, ajudantes de enfermeiro e criados deviam zelar pelo equilíbrio dos alienados e pelo seu bem-estar, gerir o quotidiano das enfermarias, aplicar tratamentos e prevenir complicações.

Conclusões:

Os enfermeiros desempenhavam um papel de vigilância e controle que lhes permitiu a execução de um biopoder no espaço assistencial do HACF. Tinham responsabilidades específicas e pertenciam a uma estrutura hierárquica. Era a eles que os alienados recorriam em primeira instância, na esfera de um quotidiano bem definido.

Palavras-Chave: história da enfermagem; psiquiatria; saúde mental

Abstract

Context:

The Hospital de Alienados do Conde de Ferreira (HACF) was avant-garde in the assistance of the alienated in the late nineteenth century, based on the new ideas formed in Europe about psychiatry and assistance in this field. Addressing the theme of professional nursing implies treating a history that began that century; addressing the nurses includes portraying a presence that has always existed in health institutions, particularly in psychiatric ones.

Aims:

Characterize the daily life in the HACF (1883-1885) and analyze nurse's responsibilities in that institution.

Methodology:

Qualitative framework, using a historical research methodology, with documentary research/analysis, based on theoretical assumptions of Michel Foucault.

Results:

The HACF was inaugurated on March 24th, 1883, in Oporto, and its employees belonged to three categories: economic/clinical direction and religious worship. The nursing staff was composed of servants, nurse assistants, nurses and an inspector, belonging to the clinical direction. Nurses were the chiefs of the wards, being responsible for the nurse assistants and servants. Nurses, nurse assistants and servants should ensure the balance of the alienated and their well-being, manage the daily lives of the wards, apply treatments and prevent complications.

Conclusions:

Nurses presented a role of surveillance and control that allowed them to perform a biopower in the HACF's assistance space. They had specific operational responsibilities and an hierarchical structure, being those to whom the alienated resorted in first instance, within the sphere of a well-defined daily life.

Keywords: nursing history; psychiatry; mental health

Resumen

Contexto:

El Hospital de Alienados do Conde de Ferreira (HACF) fue vanguardista en la asistencia a los enajenados a finales del siglo XIX, basado en nuevas ideas formadas en Europa sobre psiquiatría y su asistencia. Abordar el tema de la enfermería profesional implica tratar una historia que empezó en el siglo XIX; hablar de enfermeros significa aludir a una presencia que siempre ha existido en instituciones de salud, particularmente en las psiquiátricas.

Objetivos:

Caracterizar la vida diaria en el Hospital (1883-1885) y analizar las responsabilidades de los enfermeros en esa institución.

Metodología:

Estructura cualitativa, utilizada una metodología de investigación histórica, con investigación/análisis documental y basada en supuestos teóricos de Michel Foucault.

Resultados:

El HACF abrió el 24 de marzo de 1883, en Porto, y sus empleados pertenecían a tres categorías: dirección económica, clínica y culto religioso. El personal de enfermería estaba compuesto por sirvientes, ayudantes de enfermero, enfermeros y inspector, perteneciente a la dirección clínica. Los enfermeros eran los jefes de las enfermerías, responsables de los ayudantes de enfermero y sirvientes. Los enfermeros, ayudantes de enfermero y sirvientes deberían vigilar el equilibrio de los enajenados y su bienestar, gestionar la vida cotidiana de las enfermerías, aplicar tratamientos y prevenir complicaciones.

Conclusiones:

Los enfermeros asumieron un papel de vigilancia y control que les permitió realizar un biopoder en el espacio de asistencia del hospital. Tenían responsabilidades operativas específicas y pertenecían a una estructura jerárquica. Fue para ellos que los alienados recurrieron en primera instancia, en el ámbito de una vida cotidiana bien definida.

Palavras-Clave: historia de la enfermería; psiquiatria; salud mental

Introdução

Falar da história da Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP) em Portugal é falar de uma história inacabada, que se encontra diariamente em construção. Em geral, os enfermeiros, que sempre estiveram presentes nos espaços hospitalares e de assistência, têm um percurso profissional ainda breve. Abordar a temática da enfermagem profissional é abordar uma história que se inicia na transição do século XIX para o século XX (Lopes e Rodrigues, 2009; Nunes, 2003). Porém, abordar a temática dos enfermeiros é abordar uma presença que sempre se fez sentir, e prevalecer, no âmbito da saúde. Ainda assim, a enfermagem é feita por e com os enfermeiros, e é através do conhecimento das suas histórias, em particular nos espaços da psiquiatria e da saúde mental, que podemos contribuir para o desenvolvimento da ESMP.

Durante o século XIX assistimos, em Portugal, a uma evolução da assistência aos alienados, tanto no que diz respeito aos lugares onde eram acolhidos, como aos métodos terapêuticos utilizados. Até 1848 não havia no país uma estrutura própria para assistir estes doentes, que iam sendo internados nas instituições assistenciais das diferentes cidades do país ou ficavam até em reclusão em estabelecimentos prisionais (Esteves, 2010).

Quando eram internados numa instituição hospitalar, os alienados eram conduzidos a um de dois caminhos: serem assistidos numa enfermaria de cuidados comuns, de um hospital geral, ou numa enfermaria específica para alienados, também num hospital geral e já criada para esse efeito. Esta última, habitualmente, era situada em lugar recolhido do espaço hospitalar (Esteves, 2010). Em todo o tipo de enfermarias, fossem elas de carácter geral ou específico, encontravam-se enfermeiros como praticantes da assistência, usualmente auxiliados por ajudantes e criados, sendo os primeiros os chefes desses espaços (Candeias, Sá e Esteves, 2018). Aos enfermeiros competia zelar pelo bem-estar dos doentes internados, aplicando os tratamentos prescritos, as regras de higiene pessoal, a alimentação previamente determinada ou tratando da limpeza dos espaços, fazendo respeitar horários e rotinas.

Relativamente aos estabelecimentos exclusivos para a assistência dos alienados, durante o século XIX existiram quatro datas marcantes no panorama português. Em 1848 abriu portas, em Lisboa, o Hospital de Rilhafoles, que se passou a chamar, mais tarde, Hospital Miguel Bombarda. Em 1883, no Porto, foi inaugurado o HACF. A Casa do Sagrado Coração de Jesus foi criada em 1893, em Sintra, que se tornaria, posteriormente, na conhecida Casa de Saúde do Telhal; e, em 1894, as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus recebiam a primeira alienada numa das suas casas, depois denominada Casa de Saúde da Idanha (Candeias, Esteves e Sá, 2019). Estes marcos cronológicos foram ditando ritmos no desenvolvimento da assistência aos alienados, pois todas estas estruturas trouxeram algo de novo à psiquiatria. Consequentemente, contribuíram igualmente para o avanço da ESMP nos anos de novecentos, visto que moldaram a ação dos enfermeiros à época.

Para a realização deste trabalho selecionámos o HACF, o primeiro hospital psiquiátrico a ser construído de raiz em Portugal. Esta construção deveu-se a Joaquim Ferreira dos Santos (1782-1866), Conde de Ferreira, que deixou em testamento uma parcela do seu património para a edificação de um estabelecimento para alienados no Porto, que deveria ficar sob a alçada administrativa da Santa Casa da Misericórdia da cidade (SCMP) (Sena, 2003 (original publicado em 1884)). Este estabelecimento, aquando a sua inauguração, tinha como diretor clínico o alienista António Maria de Sena que foi o arquiteto conceptual desta construção.

O HACF foi considerado vanguardista ao nível da assistência aos alienados (Candeias, Sá e Esteves, 2020), tendo por base as novas ideias que se estavam a formar na Europa sobre a psiquiatria e sobre a forma de cuidar dos doentes que padeciam de alterações da mente. Para o país, o HACF foi um lenitivo no que dizia respeito ao acolhimento dos alienados, uma vez que, até 1883, apenas Rilhafoles se encontrava nessa linha assistencial tão específica. Deste modo, os objetivos deste trabalho passam por caraterizar o quotidiano no HACF, no período entre 1883 e 1885, e analisar as responsabilidades dos enfermeiros nessa instituição.

Metodologia

Apenas será possível, em referência à enfermagem, projetar um futuro se existir um conhecimento profundo do passado, estabelecendo alicerces para o presente e pontes para os tempos que virão (Ferreira, Canastra e Esteves, 2013). Os estudos científicos no âmbito da história da enfermagem permitem aos enfermeiros um maior entendimento das circunstâncias atuais da profissão e permitem, ainda, antecipar as ações que possibilitam o desenvolvimento da mesma.

Este trabalho inclui-se num enquadramento qualitativo, tendo sido utilizada uma metodologia de investigação histórica, através de pesquisa e análise documental (Júnior, 2011), com base nos pressupostos teóricos de Michel Foucault explanados no livro A Arqueologia do Saber (Foucault, 2016). As fontes primárias utilizadas para esta investigação foram o «Regulamento Geral do Hospital de Alienados do Conde de Ferreira», elaborado pela SCMP, de 1883, e o «Relatorio do Serviço Medico e Administrativo do Hospital do Conde de Ferreira - Relativo ao Primeiro Biennio (1883-1885)», elaborado por António Maria de Sena em 1887, que se encontram na Biblioteca do Centro Hospitalar Conde Ferreira.

Resultados

O HACF foi inaugurado a 24 de março de 1883, localizando-se, à época, na periferia da cidade do Porto, numa zona rural, circundado por uma grande quinta. Foi nesta quinta que a administração da SCMP encontrou espaço para equilibrar a gestão financeira do Hospital, através do cultivo de legumes e da produção de fruta, da criação de animais e da instalação de oficinas de trabalho (Sena, 2003 (original publicado em 1884)).

Entre 1883 e 1884, tal como se pode verificar na Tabela 1 - Admissões dos Alienados entre 1883 e 1884, foram admitidos 270 alienados (Sena, 1887). Destes, 146 eram homens, 124 eram mulheres, nove eram estrangeiros (sete espanhóis, um brasileiro e um outro norueguês) e seis tiveram alta, mas acabaram por ser readmitidos.

Tabela 1 Admissões dos Alienados entre 1883 e 1884 

De realçar que, dos 270 doentes colocados no HACF entre 1883 e 1884, 102 eram do distrito do Porto, trinta e nove do distrito de Braga e trinta do distrito de Viseu, não tendo sido internados alienados do Baixo Alentejo, do Algarve ou das colónias. Só entre 1884 e 1885 é que o HACF recebeu alienados de Angra do Heroísmo e, nesse período, tal como se pode verificar na Tabela 2 - Admissões dos Alienados entre 1884 e 1885, foram admitidas 223 pessoas, existindo um registo de admissões, entre 1883 e 1885, de 493 alienados (Sena, 1887).

Tabela 2 Admissões dos Alienados entre 1884 e 1885 

De acordo com Sena (1887), dos 223 alienados admitidos entre 1884 e 1885, 70 eram do distrito do Porto, trinta e dois do distrito de Braga e vinte e seis do distrito de Viseu; 135 eram homens e 88 eram mulheres, dois eram estrangeiros (espanhóis) e seis tiveram alta, mas foram readmitidos. Neste período, continuaram a não existir admitidos vindos do Baixo Alentejo ou Algarve.

Nos primeiros anos do funcionamento do HACF, os alienados encontravam-se divididos em classes: primeira, segunda, terceira classe e indigentes (SCMP, 1883). Os alienados indigentes eram os únicos que não pagavam o seu internamento (a SCMP assegurava esta despesa), sendo acomodados com os da terceira classe. As enfermarias tinham uma nomenclatura própria, tendo em conta a manifestação da sintomatologia dos alienados que acolhiam: Enfermaria de Tranquilos, Enfermaria de Agitados, Enfermaria de Imundos, Enfermaria de Convalescentes, Enfermaria de Observação e Enfermaria de Moléstias Intercorrentes (SCMP, 1883).

Os funcionários do HACF pertenciam a três categorias: direção económica, direção clínica e culto religioso (SCMP, 1883; Sena, 1887). O corpo de enfermeiros pertencia à segunda categoria e encontrava-se sob a alçada do diretor clínico. Entre 1883 e 1885, de acordo com o Regulamento analisado (SCMP, 1883), deviam trabalhar no HACF sete enfermeiras, três ajudantes (sexo feminino) e vinte criadas, e ainda sete enfermeiros, três ajudantes (sexo masculino) e vinte criados. Na Tabela 3 - Salários dos Funcionários da Direção Clínica do HACF em 1883 exemplificam-se as diferenças salariais existentes entre os funcionários que pertenciam ao corpo clínico do HACF (SCMP, 1883).

Tabela 3 Salário dos Funcionários da Direção Clínica do HACF em 1883* 

*A ordem de apresentação dos salários na Tabela 3 é a mesma que é apresentada no Regulamento de 1883.

Os enfermeiros eram os chefes das enfermarias, tendo sob a sua liderança os ajudantes de enfermeiro e os criados, embora nenhum destes elementos tivesse qualquer formação específica. Quando não existissem enfermeiros suficientes para chefiar as enfermarias, seria escolhido um dos ajudantes para esse efeito. As enfermeiras chefiavam as enfermarias femininas e os enfermeiros as masculinas, nas quais residiam, enquanto os restantes funcionários habitavam noutros espaços do Hospital (SCMP, 1883). Todo este pessoal encontrava-se sob a supervisão do fiscal, que durante os primeiros vinte e nove anos de funcionamento da instituição foi o enfermeiro António Augusto Cerqueira de Barros.

Cada enfermaria do HACF, de acordo com o Regulamento analisado (SCMP, 1883), era composta por dormitórios comuns ou quartos individuais, uma sala de recreio, um refeitório, uma sala de utensílios e um jardim ou parque anexo. Os alienados indigentes teriam de usar uniforme no dia-a-dia, que se encontrava, juntamente com a roupa de cama, numa sala própria da enfermaria, à guarda do enfermeiro. As enfermarias estavam fechadas à chave: os alienados só podiam entrar nas respetivas enfermarias e os funcionários estavam proibidos de permanecer em enfermarias onde não exercessem funções.

Os enfermeiros, ajudantes de enfermeiro e criados faziam levantar os doentes ao primeiro toque da manhã, com exceção dos chamados alienados furiosos ou convalescentes, cujo ritmo deveria ser respeitado (SCMP, 1883). Era promovido o seu descanso na manhã e durante o resto do dia (Sena, 1887).

Depois de levantados, os doentes, se fosse necessário, eram ajudados pelos enfermeiros, ajudantes e criados a cuidar da sua higiene e a vestir-se, apoiando aqueles que não o conseguissem fazer, promovendo a ajuda entre os mesmos. As escarradeiras e os bacios deviam ser limpos por estes funcionários, exceto os pertencentes aos alienados de terceira classe e indigentes que fossem autónomos (SCMP, 1883). Os alienados eram encaminhados para os banhos terapêuticos, isto é, para a hidroterapia, caso estivesse prescrita. A hidroterapia preconizada no HACF poderia ser em forma de duche ou imersão (Sena, 1887). Os banhos de duche incluíam os de caldeira, de chuva, banhos circulares ou banhos de lança, e os banhos de imersão incluíam os banhos simples, sinapizados ou com efusões frias.

Às 8 horas, os alienados teriam a primeira refeição do dia, seguida de passeio, que durava até ao momento da visita médica. Os enfermeiros eram responsáveis por acompanhar esta visita, dando indicação aos médicos das ocorrências das últimas 24 horas e de qualquer alteração considerada importante (SCMP, 1883). A segunda refeição era servida pelas 13 horas, após a qual os doentes teriam uma hora e meia de recreio, entretendo-se com jogos nas enfermarias, ou passeando pelos jardins e parques do espaço do Hospital. Depois deste momento de lazer, os alienados que tivessem atividades de ocupação ou trabalho prescritas seriam encaminhados para as oficinas de costura, tipografia, padaria, vassouraria, ou então para trabalhos de lavoura, jardinagem e criação de animais (Sena, 1887).

A última refeição do dia era servida por volta das 20 horas. Depois, os alienados eram encaminhados para os dormitórios ou quartos individuais, sendo estes últimos para os de primeira ou segunda classe. Antes de se deitarem, era-lhes pedido para cuidarem da sua roupa e para realizarem a sua higiene, com ordem e tranquilidade (SCMP, 1883). De realçar que, em todas estas rotinas, os doentes eram acompanhados e vigiados pelos enfermeiros, ajudantes de enfermeiro e criados, atuando estes praticantes da assistência como agentes de controlo (Sena, 1887). A Figura 1 - Quotidiano no HACF ilustra o dia-a-dia dos alienados no HACF.

Figura 1 Quotidiano no HACF 

Aos enfermeiros, ajudantes de enfermeiro e criados era pedido que atuassem com carinho, brandura e discrição, fazendo cumprir as normas e promovendo a ocupação contínua (Sena, 1887). Não lhes era permitido utilizar força nem violência, tanto verbal como física, mesmo que fossem maltratados ou agredidos pelos alienados. Se um doente se mostrasse agitado, com comportamento desadequado, aos enfermeiros e restantes funcionários era permitido segurá-lo e imobilizá-lo, devendo chamar o médico o quanto antes (SCMP, 1883). Não podiam utilizar castigos ou meios contentivos (e.g. camisas-de-força, quartos fortes) sem indicação médica.

A esses funcionários não era permitido sair do espaço hospitalar, a não ser por indicação do diretor clínico, e podiam usufruir de uma folga a cada quinze dias, com a devida autorização prévia, tendo o dever de pernoitarem no edifício (SCMP, 1883). O turno da noite, que se iniciava quando os doentes se deitavam, era composto por três rondas: a primeira tinha a duração de 4 horas, a segunda de 3 horas, e a terceira ronda englobava o tempo que sobrava até os alienados se levantarem (SCMP, 1883). Os enfermeiros, ajudantes de enfermeiro ou criados que fizessem a segunda e a terceira ronda deviam ser poupados no trabalho diurno seguinte.

As rondas dos turnos noturnos eram organizadas pelo fiscal do serviço clínico, que era responsável por todo o trabalho das enfermarias e por todos os funcionários internos das mesmas. Competia-lhe, entre outras funções, visitar cada uma das enfermarias pelo menos três vezes ao dia, assegurando que os enfermeiros, ajudantes e criados cumpriam as suas responsabilidades (SCMP, 1883). Aos enfermeiros, e ao pessoal que deles dependia, incumbia igualmente a aplicação dos métodos terapêuticos, que passavam por uma dieta apropriada, hidroterapia, uma boa higiene, trabalho e ocupação, recreio e distração quando necessário, contenção ou a aplicação de fármacos preparados pela farmácia (Sena, 1887).

Discussão

Através dos resultados encontrados, verificámos que o espaço do HACF era organizado, vigiado e controlado. Relativamente aos diversos funcionários que trabalhavam no Hospital, aqueles que se encontravam em contato direto com os alienados, durante um período mais alargado de tempo, eram os enfermeiros e seus subordinados. Em cerca de dois anos o HACF atingiu a ocupação máxima de leitos disponíveis, ocupados com alienados de todo o país, inclusive das colónias. Esta realidade vai de encontro apresentada por Brimblecombe (2006), referente ao Reino Unido, ou Boschma (2003), em relação à Holanda, visto que ambos mencionam que os enfermeiros, e seus funcionários, eram os agentes assistenciais que passavam mais tempo com os alienados nas instituições psiquiátricas no final do século XIX e, consequentemente, eram eles que geriam os tempos desses espaços de assistência. Se, por um lado, assistimos ao exercício de poder por parte da classe médica em relação aos enfermeiros, por outro lado, notámos que estes últimos desenvolveram ações que visaram o fomento de um biopoder em relação aos alienados.

O facto de existirem mais alienados no HACF com origem no Norte do país parece-nos natural, visto que este era o hospital psiquiátrico mais próximo das localidades dos distritos do Porto, Braga e Viseu. No que diz respeito ao número de estrangeiros internados, também não surpreende que a nacionalidade espanhola fosse a mais representada, dado a contiguidade geográfica. Em Rilhafoles, a maioria dos internados pertencia à região de Lisboa (Necho, 2019).

Os alienados do HACF encontravam-se divididos por classes. Os que pertenciam à primeira classe eram os pensionistas que pagavam uma avença mensal mais elevada, mas também tinham mais regalias ao nível da assistência por parte dos funcionários (SCMP, 1883). Tinham refeições de melhor qualidade e permissão para disporem do seu tempo como entendessem, embora estivessem obrigados a cumprir os tratamentos prescritos. Os indigentes, aqueles alienados que não pagavam o seu internamento, tinham de fazer prova da sua pobreza, através de um certificado passado pelas autoridades eclesiásticas, policiais ou administrativas. Deviam participar ativamente nas tarefas de manutenção do hospital e no trabalho braçal (Candeias, Esteves e Sá, 2019), tendo direito a uma alimentação mais pobre e menos variada.

Os tratamentos dos alienados, aplicados pelos diferentes elementos que compunham o corpo de enfermeiros, podiam ser divididos em duas categorias: os incluídos no tratamento moral e os inseridos no tratamento físico (Charland, 2011; Matos, 1884). Do primeiro faziam parte, por exemplo, o trabalho ou, então, a contenção. Do segundo era exemplo a alimentação, a hidroterapia ou a aplicação de fármacos, como o ópio ou a hiosciamina. No HACF utilizava-se uma combinação entre diferentes métodos terapêuticos (Sena, 1887), não existindo uma separação estrita entre o tratamento moral e físico. Dois dos fármacos mais utilizados eram o brometo de potássio e o hidrato de cloral, em combinação com métodos contentivos ou hidroterápicos, o que estava em consonância com a realidade internacional da época, como se pode verificar nas diversas instituições apresentadas por George A. Tucker em 1887 (Tucker, 1887).

Os funcionários das enfermarias do HACF estavam organizados de acordo com uma hierarquia rígida, composta por criados, ajudantes de enfermeiro, enfermeiros e fiscal, sendo os criados aqueles que se encontravam em maior número. Cabia aos enfermeiros a liderança das enfermarias, a sua organização e manutenção, sendo o fiscal o supervisor de todas as atividades internas do HACF. Essa hierarquia era característica das realidades assistenciais do final do século XIX (Brimblecombe, 2006; Boschma, 2003; Lobo de Araújo, 2014), conduzindo à sensação de ordem e disciplina, que visava a governamentabilidade tanto dos espaços como das pessoas que compunham as vivências hospitalares.

Um enfermeiro auferia, aproximadamente, 34% do salário do médico ajudante e 13% do salário do médico adjunto. Uma enfermeira auferia, aproximadamente, 29% do salário do médico ajudante e menos 17% que um enfermeiro. Aliás, em média, as enfermeiras, ajudantes de enfermeira e criadas auferiam menos do que os seus pares masculinos, isto é, 83,6% do salário dos enfermeiros, ajudantes de enfermeiro e criados, respetivamente.

Das responsabilidades inerentes ao pessoal que constituía o corpo de enfermeiros, destacamos aquelas que se relacionavam, e utilizando uma linguagem corrente, com intervenções inerentes à promoção e manutenção do autocuidado, intervenções psicoeducativas e psicossociais, intervenções de gestão do regime terapêutico e intervenções dirigidas às situações de crise. Como agentes vigilantes e controladores, os enfermeiros deviam zelar pelo equilíbrio dos alienados e bem-estar da população em geral do HACF, podendo relacionar-se com os mesmos durante todas as horas do dia.

Atendendo ao Handbook for the Instruction of Attendants on the Insane (Medico-Psychologival Association, 1885), considerado, até ao momento, o primeiro manual para enfermeiros de instituições psiquiátricas, a assistência dos alienados seguia duas linhas gerais de atuação, a gestão da condição corporal e a gestão da condição mental, onde se espelham igualmente as responsabilidades dos enfermeiros do HACF. Na primeira estava incluída, por exemplo, a promoção e a manutenção do autocuidado, assim como a vigilância das funções corporais, e a segunda compreendia todas as intervenções que dissessem respeito à manifestação da doença mental, como por exemplo a aplicação de tratamentos ou a vigilância da ideação suicida.

Tendo em conta a condição assistencial do HACF, eram os enfermeiros, ajudantes de enfermeiro e criados os funcionários que melhor conheciam os doentes, os seus hábitos, as suas vontades e as suas enfermidades. Integrando as suas vidas pessoais na vida quotidiana do HACF, os enfermeiros tinham competências lhes permitia o estabelecimento de uma relação íntima e de confiança com os doentes que assistiam.

Conclusão

Os enfermeiros no HACF, durante o período analisado e de acordo com as fontes consultadas, possuíam responsabilidades de atuação específicas, pertenciam a uma estrutura hierárquica e eram aqueles a quem os alienados recorriam em primeira instância, na esfera de um quotidiano bem definido e que foi caraterizado. Num período em que os tratamentos passavam por uma combinação entre métodos terapêuticos morais e físicos, os enfermeiros assumiam um papel de vigilância e controle que lhes permitia a execução de um biopoder no espaço assistencial do HACF. Os enfermeiros, à época, não tinham qualquer formação específica - a sua preparação era feita nos contextos assistenciais. Esta aprendizagem realizada através da observação e experiência, muitas vezes supervisionada pelos médicos, serviu de base para a organização primária da ESMP, que se veio a desenvolver em meados do século XX. Aliás, podemos concluir que a atual ESMP é influenciada por essa organização primária, embora encontrando-se em contínuo desenvolvimento tendo em conta as necessidades encontradas nos contextos de saúde modernos, em especial no que diz respeito ao desenvolvimento de intervenções psicoterapêuticas.

Os contextos de trabalho foram igualmente importantes para o desenvolvimento da ESMP, tal como foi referido, sob a forma de compassos rítmicos que determinaram as aprendizagens dos enfermeiros no âmbito da psiquiatria e da saúde mental. Não podemos descurar a importância que as ordens religiosas tiveram no progresso da ESMP, em especial no que diz respeito à transição do século XIX para o século XX, com a abertura de várias casas de apoio aos alienados, e que perduram até aos dias de hoje.

Implicações para a Prática Clínica

A par da evolução das tecnologias e da sofisticação que se encontra ligada aos cuidados de saúde, as diferentes conceções e paradigmas neste âmbito também têm evoluído. Assistimos, na sociedade atual, à procura da melhor terapêutica para a diminuição do impacto da doença e para a contínua satisfação, devendo ser a Pessoa o centro da atenção dos profissionais de saúde e dos cuidados, tendo em conta as prioridades estratégicas do International Council of Nurses, devendo igualmente a saúde mental ser essencial a esse nível de concetualização da enfermagem. Tendo em conta estas linhas estratégicas, a ESMP é igualmente afetada por essas transformações. Foi no âmbito dos antigos hospitais psiquiátricos que as suas intervenções foram desenvolvidas, através do contacto com os alienados e influenciadas pelas caraterísticas sociais e legislativas de cada época. É necessário estudar o passado, para que seja possível avançar para o futuro com instrumentos que possibilitem a transição de paradigmas, pensamentos e até de culturas. As fontes analisadas, e os resultados provindos desta análise, demonstram que a evolução em relação à psiquiatria e à saúde mental foi gradual. Os cuidados neste círculo da saúde são ainda influenciados por um estigma derivado de conceções ainda antigas, que é passível de ser transformado se for desenvolvido um rigoroso estudo das experiências anteriores, permitindo uma comparação para nos situarmos na evolução da ESMP.

Referências bibliográficas

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Recebido: 31 de Março de 2020; Aceito: 24 de Setembro de 2020

Autor de Correspondência: Analisa Candeias E-mail: acandeias@ese.uminho.pt

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