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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

versão impressa ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.esp8 Porto mar. 2021  Epub 31-Mar-2021

https://doi.org/10.19131/rpesm.336 

Artigo de investigação

Consumo de álcool e vulnerabilidade em saúde das pessoas em situação de sem-abrigo

Alcohol consumption and health vulnerability of homeless people

El consumo de alcohol y la vulnerabilidad a la salud de las personas sin hogar

Olga Valentim1  2  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Software, Validação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-2900-3972

Lídia Moutinho3  4  , Concetualização, Análise formal, Metodologia, Software, Redação do rascunho original, Redação - Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0001-5076-0612

Lara Pinho5  2  6  , Redação - Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-1174-0744

Cristiana Firmino7  8  , Redação do rascunho original, Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-0328-7804

Catarina Tomás9  2  10  , Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0003-3713-3352

Ana Querido9  2  10  , Revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-5021-773X

1 Escola Superior de Enfermagem de Lisboa, Portugal.

2 CINTESIS, grupo de investigação “NursID: Inovação e Desenvolvimento em Enfermagem”, Portugal.

3 Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa, Portugal.

4 Escola Superior de Saúde Ribeiro Sanches, Portugal.

5 Universidade de Évora, Escola Superior de Enfermagem São João de Deus, Portugal.

6 Instituto Politécnico de Portalegre, Escola Superior de Saúde, Portugal.

7 Hospital Cuf Infante Santo, Portugal.

8 Escola Superior de Saúde Atlântica, Portugal.

9 ciTechCare (Center for Innovative Care and Health Technology), Portugal.

10 Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de Saúde, Portugal.


Resumo

Contexto:

Em Portugal, 45% das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PSSA) estão a viver na rua, na área metropolitana de Lisboa. Esta população apresenta vulnerabilidades de ordem económica, social e física. No que se refere ao seu estado de saúde, salienta-se o consumo de substâncias, problemas músculo-esqueléticos, respiratórios, cardiovasculares e psiquiátricos. As consequências da Perturbação de Uso de Álcool (PUA) refletem-se a nível socioeconómico e da saúde, pelo que se torna relevante conhecer essa problemática nas PSSA.

Objetivo:

Caracterizar o perfil sociodemográfico, a perceção de saúde e o consumo de álcool entre a população em situação de sem-abrigo na área metropolitana de Lisboa.

Métodos:

Estudo transversal, descritivo e correlacional. Os instrumentos utilizados foram um questionário com a caracterização sociodemográfica e de saúde construído pelos autores e o CAGE. A recolha de dados foi realizada na cidade de Lisboa em março de 2018. A análise de dados foi realizada com o SPSS 25.

Resultados:

A amostra é constituída por 199 participantes de ambos os sexos. 49,2% apresenta PUA, 56,8% fuma diariamente tabaco e o consumo de drogas foi referido ao longo da vida por 52,8% dos participantes. Foram encontradas correlações estatisticamente significativas entre o consumo de tabaco, de bebidas alcoólicas e de drogas ilícitas.

Conclusões:

A intervenção com PSSA, deve basear-se numa visão holística da pessoa e do meio em que se insere, na Redução de Riscos e Minimização de Danos e/ou interrupção dos consumos de álcool. As necessidades em cuidados de saúde mostram a importância da inclusão do enfermeiro nas equipas multidisciplinares que apoiam esta população.

Palavras-Chave: Pessoas em situação de rua; Transtornos relacionados ao uso de álcool; Vulnerabilidade em saúde; Enfermagem psiquiátrica

Abstract

Background:

In Portugal, 45% of Homeless People (PSSA) are living on the street in the Lisbon metropolitan area. This population has economic, social and physical vulnerabilities. Regarding their health status, substance use, musculoskeletal, respiratory, cardiovascular and psychiatric problems are highlighted. The consequences of Alcohol Use Disorder (PUA) are reflected at the socioeconomic and health level, so it is relevant to know this problem in PSSA.

Aim:

To characterize the sociodemographic profile, health perception and alcohol consumption among the homeless population in the Lisbon metropolitan area.

Methods:

Cross-sectional, descriptive and correlational study. The instruments used were a sociodemographic questionnaire with health characterization built by the authors and the CAGE. Data collection was performed in the city of Lisbon during March 2018. Data analysis was performed with SPSS 25.

Results:

The sample consisted of 199 participants of both sexes. 49.2% had PUA, 56.8% smoked tobacco on a daily basis, and drug use was reported throughout life by 52.8% of participants. Statistically significant correlations were found between tobacco use, alcohol and illicit drugs consumption.

Conclusions:

Intervention with PSSA should be based on a holistic view of the person and the environment, risk reduction and harm minimization, and / or interruption of alcohol consumption. Health care needs highlights the importance of including nurses in multidisciplinary teams to support this population.

Keywords: Homeless persons; Alcohol-related disorders; Health vulnerability; Psychiatric nursing

Resumen

Contexto:

en Portugal, el 45% de las personas sin hogar (PSSA) viven en la calle en el área metropolitana de Lisboa. Esta población tiene vulnerabilidades económicas, sociales y físicas. En cuanto a su estado de salud, se destacan el uso de sustancias, problemas musculoesqueléticos, respiratorios, cardiovasculares y psiquiátricos. Las consecuencias del trastorno por consumo de alcohol (PUA) se reflejan a nivel socioeconómico y de salud, por lo que es relevante conocer este problema en PSSA.

Objetivo(s):

caracterizar el perfil sociodemográfico, la percepción de salud y el consumo de alcohol entre la población sin hogar en el área metropolitana de Lisboa.

Metodología:

Estudio transversal, descriptivo y correlacional. Los instrumentos utilizados fueron un cuestionario con caracterización sociodemográfica y de salud construido por los autores y CAGE. La recolección de datos se realizó en la ciudad de Lisboa. El análisis de los datos se realizó con SPSS 25.

Resultados:

La muestra consistió en 199 participantes de ambos sexos. El 49.2% tenía PUA, el 56.8% fumaba tabaco diariamente y el 52.8% de los participantes informó el uso de drogas durante toda la vida. Se encontraron correlaciones estadísticamente significativas entre el consumo de tabaco, el alcohol y las drogas ilícitas.

Conclusiones:

La intervención con PSSA debe basarse en una visión holística de la persona y el medio ambiente, la reducción de riesgos y la minimización de daños, y / o la interrupción del consumo de alcohol. Las necesidades de atención médica muestran la importancia de incluir enfermeras en equipos multidisciplinarios que apoyan a esta población.

Palabras clave: Personas sin hogar; Trastornos relacionados con alcohol; Vulnerabilidad en salud; Enfermería psiquiátrica

Introdução

A definição de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (PSSA) está conceptualizada a partir da situação habitacional ou do tipo de local onde estas pessoas pernoitam (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2015). O Grupo Implementação, Monitorização e Avaliação da Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas Sem-Abrigo (GIMAE), (2019) refere que em Portugal existem 3.396 pessoas “sem teto” ou “sem casa", das quais 1.443 pessoas estão a viver na rua, em espaços públicos, abrigos de emergência ou locais precários e 1.953 pessoas não têm casa, isto é, estão a viver em equipamentos onde podem pernoitar por períodos de tempo limitados. Na cidade de Lisboa, existem atualmente 644 PSSA, das quais 350 não têm teto. Esta população apresenta diversas vulnerabilidades no que se refere ao seu estado de saúde (Silva et al., 2018). Além do consumo de substâncias (Smith-Bernardin, Kennel, & Yeh, 2019), os problemas mais frequentes são músculo-esqueléticos (30%), respiratórios (20%), cardiovasculares (16%), psicológicos/psiquiátricos (15,5%) e 9,5% afirmam ter problemas de tipo neurológico (Craveiro, Belo, & Cardoso, 2016; Erickson et al., 2018). As vulnerabilidades identificadas nesta população em Lisboa são semelhantes às encontradas em outras partes do mundo (Nvatanga & Snelling, 2018; Silva et al., 2018; Webb, Mitchell, Nyatanga, & Snelling, 2018).

Os processos que levam uma pessoa à situação de sem-abrigo são quase sempre complexos e multifatoriais. A literatura refere dois tipos de causas: as estruturais, como o desemprego, a pobreza, as políticas habitacionais e sociais; e as individuais, onde se situam as doenças físicas e mentais, os consumos de álcool e drogas e as perdas de valores (Ross-Houle, Venturas, Bradbury, & Porcellato, 2017). De acordo com os mesmos autores, a PSSA utiliza habitualmente o consumo de álcool como uma estratégia para lidar com as situações adversas, o que potencia a dependência da substância. O desenvolvimento da resiliência e do estabelecimento de relações interpessoais é importante para interromper o consumo de álcool e a manutenção da abstinência. A interrupção dos consumos é considerada essencial para a adesão a programas de apoio (Opalach et al., 2016) e construção ou reorganização de um novo projeto de vida com a PSSA.

A população portuguesa apresenta uma das taxas de consumo de álcool per capita mais elevadas da Europa (World Health Organization [WHO], 2018), no entanto não está ainda identificada a percentagem de PUA nas PSSA em Portugal. Lisboa é a cidade portuguesa onde há uma maior percentagem de PSSA.

A vulnerabilidade das PSSA tem sido alvo de preocupação para as entidades governamentais em Portugal, pelo que foi constituído um grupo de trabalho com diversos objetivos, dos quais se destacam: assegurar o acesso aos cuidados de saúde e criar condições que garantam a promoção da autonomia através da mobilização e contratualização de recursos disponíveis de acordo com o diagnóstico de necessidades. Torna-se assim fundamental caracterizar as PSSA em termos sociodemográficos e de saúde, com enfoque na problemática do uso de álcool, dando um contributo para o diagnóstico das necessidades destas pessoas, para que se possam identificar possíveis estratégias de intervenção e prevenção eficazes junto das mesmas. Assim, este estudo teve como objetivo caracterizar o perfil sociodemográfico, a perceção de saúde e o consumo de álcool da população em situação de sem-abrigo na área metropolitana de Lisboa.

Métodos

Desenho do Estudo

Estamos perante um estudo transversal, descritivo e correlacional. A amostra foi do tipo não probabilístico, por conveniência, sendo constituída pela população-alvo elegível que se encontrava acessível e aceitou participar no estudo. É composta por 199 participantes em situação de sem-abrigo que se encontravam no momento de aplicação dos questionários no concelho de Lisboa.

Instrumentos

Foi utilizado um questionário realizado pelos autores que incluiu a caracterização sociodemográfica dos participantes, caraterização da situação de sem-abrigo (razões, que contribuíram para a situação de sem-abrigo, tempo que se encontra da situação de sem-abrigo, procura de trabalho, local onde pernoita, existência de apoios sociais), dados relativos à perceção de saúde (perceção do estado de saúde, toma da terapêutica e existência de limitações funcionais físicas ou psíquicas), consumo de tabaco e de álcool. Utilizou-se o CAGE (Cut; Annoyed; Gilty; Eyer) para conhecer o padrão de consumo de bebidas alcoólicas. Este teste de avaliação é de fácil aplicação e é especialmente útil para detetar a dependência e o abuso de álcool. É constituído por quatro perguntas, sendo que as três primeiras se referem à experiência de consumo (“Já lhe aconteceu ter que beber logo ao levantar, para aliviar a sensação de mal-estar?”; “Já pensou que deveria reduzir ou deixar de ingerir bebidas alcoólicas?”; “Já alguma vez se sentiu desgostoso e triste com os seus hábitos de consumo de bebidas alcoólicas?”) e a última questão explora aspetos relacionados com a abstinência alcoólica “Já se sentiu desagradado com os comentários que outras pessoas tenham feito acerca dos seus hábitos de consumo de bebidas alcoólicas?”). É atribuído um ponto a cada resposta positiva. Um resultado superior a dois indica provável abuso excessivo de álcool e dependência alcoólica. A sensibilidade deste questionário situa-se entre os 61% e os 100% e a especificidade entre os 77% e os 96% (Direção Geral da Saúde 2001; Gomes, 2004). Outros estudos realizados utilizando o CAGE, tais como o de Choe, Lee, Choi, Suh, Lee e Kim (2019) em que foi identificada uma sensibilidade entre 43% e 94% e a especificidade de 70% a 97% na identificação do PUA, o de Cardoso, Alexandre e Rosa (2010) realizado em território nacional que identificou uma a sensibilidade e especificidade do CAGE da identificação dos problemas de consumo de álcool de 52% e 95% respetivamente e o de Dhalla e Kopec (2007) em que o CAGE demonstrou uma alta confiabilidade teste-reteste (0,80-0,95), e uma adequada correlação (0,48-0,70) foram argumentos que suportaram a seleção do CAGE como instrumento para identificar a PUA.

Procedimentos

Os princípios éticos foram tidos em consideração ao longo de todo o processo, sendo garantida a confidencialidade dos dados e o anonimato. Foi obtida autorização da Comissão de Ética da Escola Superior de Saúde Atlântica (dia 15 janeiro de 2018) para a realização do estudo e foi obtido o consentimento informado dos participantes após explicação dos objetivos e procedimentos. Os dados foram recolhidos através da aplicação dos questionários por heteroavaliação, presencialmente, em entrevista face-a-face, com a colaboração das equipas de rua e da Câmara Municipal de Lisboa, durante o mês de março de 2018.

Utilizaram-se estatísticas descritivas para caraterização da amostra, e inferenciais para verificar a existência de associação entre o consumo de tabaco, bebidas alcoólicas e drogas ilícitas. Partindo do Teorema do Limite Centra e considerando a dimensão da amostra, optou-se pela utilização de estatísticas paramétricas, especificamente o teste da significância do r de Pearson, considerando os resultados estatisticamente significativos para um nível de significância de 5% ou 1% (Marôco, 2011). Isto é, para p<0,05 ou p<0,01. A análise de dados foi realizada com o programa SPSS versão 25 para Windows.

Resultados

A amostra é constituída por 199 participantes, maioritariamente do sexo masculino (88,4%), e de nacionalidade portuguesa (76,4%), com uma média de idades de 50,25 anos (DP=11,14). A maior parte dos participantes frequentou o ensino básico (59,8%), é solteira (60,8%) e sem filhos (57,8%). 43,7% dos participantes apontam diversas razões sem especificar nenhuma em particular para que se encontrem na situação de sem-abrigo, e uma percentagem de 20,1% atribui esta situação ao facto de estar desempregado. A análise do período de emprego superior a seis meses de apenas 17,6% da amostra realça a dificuldade desta população em obter rendimento de forma regular.

Em relação à situação habitacional, os dados mostram que 81,4% dos participantes dorme na rua diariamente e 10,6% mais de duas vezes por semana. O tempo em que os participantes vivem na rua oscila entre um mês ou mais de 3 anos. A maior parte vive sem teto há mais de 3 anos (41,2%) (Tabela 1).

Tabela 1: Características sociodemográficas da amostra (N=199) 

Variáveis n (%)
Género
Feminino 23 (11,6)
Masculino 176 (88,4)
Habilitações Literárias
Aliteracia 18 (9,0)
Ensino Básico 119 (59,8)
Ensino Secundário 49 (24,6)
Formação Universitária 6 (3,0)
Outra 7 (3,5)
Estado Civil
Solteiro 121 (60,8)
Casado 16 (8,0)
Divorciado 46 (23,1)
Viúvo 16 (8,0)
Nacionalidade
Portuguesa 152 (76,4)
Dupla nacionalidade 13 (6,5)
Outra 34 (17,1)
Filhos
Sim 84 (42,2)
Não 115 (57,8)
Emprego com duração superior 6 meses
Sim 35 (17,6)
Não 164 (82,4)
Motivo da situação de Sem-abrigo
Diversas razões não especificadas 87 (43,7)
Carência económica (desemprego) 40 (20,1)
Rotura familiar 29 (14,6)
Despejo da habitação 28 (14,1)
Não sabe / não responde 15 (7,5)
Duração da situação de Sem-abrigo
< 1 mês 6 (3,0)
1 a 6 meses 41 (20,6)
6 a 12 meses 29 (14,6)
1 a 3 anos 40 (20,1)
>3 anos 82 (41,2)
Não sabe / não responde 1 (0,5)
Situação habitacional (pernoitar na rua)
Todas as noites 162 (83,9)
Mais de duas vezes por semana 21(10,9)
1 a 2 vezes por semana 3 (1,6)
De vez em quando 7 (3,5)

Os resultados da amostra referentes ao estado de saúde das PSSA mostram que 7,0% considera que o seu estado de saúde é muito bom, 29,1% bom, 45,7% regular. Os restantes referem que o seu estado de saúde é mau (15,6%) ou muito mau (2,5%). 21,6% dos participantes reconhece a existência de limitações funcionais de ordem física ou psíquica.

No que se refere à medicação, 43,9% diz tomar habitualmente medicamentos. No que se refere ao consumo de substâncias, concluiu-se que a maioria fuma diariamente tabaco (56,8%), consome bebidas alcoólicas (51,8%) e tem história de consumo de drogas ilícitas ao longo da vida (52,8%) (Tabela 2).

O consumo de álcool foi alvo de uma análise mais detalhada, de que se realça a quantidade de álcool ingerido, que oscila entre um a 30 copos. As bebidas alcoólicas de baixa graduação são ingeridas na maior parte dos casos diariamente e 54,8% dos participantes não responderam a esta questão. As bebidas alcoólicas de alta graduação são ingeridas diariamente na quantidade de um copo por 48,4% dos participantes. Uma percentagem de 3,2% refere ingerir mais de 20 copos por dia, no entanto a maior parte dos participantes (84,4%) não respondeu à questão. Sobre as consequências do consumo, os resultados mostram que a maior parte dos participantes já se sentiu criticado pelos consumos (32,7%), culpado (37,7%) e com necessidade de ingerir bebidas alcoólicas pela manhã (33,2%). 49,2% dos participantes não responderam.

Tabela 2: Dados relativos à saúde e consumo de substâncias 

Variáveis N (%)
Perceção do estado de saúde
Muito Bom 14 (7,0)
Bom 58 (29,1)
Regular 91 (45,7)
Mau 31 (15,6)
Muito mau 5 (2,5)
Tem reconhecida alguma limitação funcional ou psiquica
Sim 43 (21,6)
Não 155 (77,9)
Medicação
Sim 86 (43,2)
Não 110 (55,3)
Não sabe / não responde 3 (1,5)
Consumo de Tabaco
Diariamente 113 (56,8)
Sim, mas não diariamente 20 (10,1)
Não 66 (33,2)
Consumo bebidas alcoolicas
Sim 103 (51,8)
Não 96 (48,2)
CAGE
PUA 98 (49,2)
Sem PUA 101 (50,8)
Consumo de drogas ilícitas
Sim 105 (52,8)
Não 92 (46,2)
Não sabe / não responde 2 (1,0)

Foram encontradas correlações positivas estatisticamente significativas entre o consumo de tabaco e bebidas alcoólicas (r=0,17; p=0,013) e correlações negativas entre o consumo de tabaco e drogas ilícitas (r=-0,26; p=0,0001). Ou seja, o consumo de tabaco está associado a um maior consumo de bebidas alcoólicas, e inversamente relacionado ao consumo de drogas ilícitas. Ao analisar o resultado do CAGE, concluímos que 49,2% apresentam PUA, isto é, CAGE ≥ 2. Não obstante a constatação de PUA, os resultados apontam para uma perceção maioritariamente positiva sobre a sua situação de saúde (81,8%), entre regular (45,7%) e muito boa (7,0%).

Discussão

A percentagem de PSSA do sexo masculino, a baixa escolaridade e o facto de terem apresentado atividades laborais por períodos inferiores a seis meses são dados comuns a outros estudos (INE, 2015; Opalach et al, 2016). Um estudo realizado por Ross-Houle e colaboradores (2017) indica que parece existir relação entre a baixa escolaridade, a dificuldade em manter um emprego e a situação de sem-abrigo. Os resultados do presente estudo mostram ainda a existência de necessidades das PSSA na saúde, situação económica e habitacional e também alertam para a reduzida rede de apoio e de relações afetivas desta população. Tendo em conta a escolaridade e os curtos períodos laborais da nossa amostra e as afirmações apresentadas pelo estudo referido, consideramos que estes poderão ser fatores potenciadores da situação de sem-abrigo.

No que respeita à perceção do estado de saúde, um estudo recente com uma amostra de 2437 PSSA realizado em Espanha (83,8% género masculino), demonstra que a maioria refere um estado de saúde regular (43,8%), sendo que 39,7% menciona que o estado de saúde é pobre (Fajardo-Bullón, Esnaola, Anderson, & Benjaminsen, 2019), dados idênticos ao presente estudo. Estes dados indicam-nos que as PSSA têm noção de que a sua saúde tem fragilidades, podendo não reconhecer a PUA como um problema de saúde, remetendo ainda mais para a importância da vigilância de saúde desta população.

Relativamente ao uso de substâncias, este é um dado preocupante, dada a elevada taxa de consumos nas PSSA. No estudo de Fajardo-Bullón e colaboradores (2019), 45,5% das PSSA consumiam álcool (42,6% consumo moderado e 2,9% consumo elevado). Na presente investigação, o consumo de álcool nas PSSA foi mais elevado (51,8%) com 49,2% com PUA. Já nos Estados Unidos, uma em cada cinco PSSA tinham abuso de substâncias e/ou outro problema de saúde mental no ano de 2016 (United States Department of Housing and Urban Development, 2016). Na nossa amostra de PSSA, 49,2% sofrem de PUA, desconhecendo-se a prevalência de outros problemas de saúde mental. No que respeita ao consumo de drogas ilícitas, o estudo de Fajardo-Bullón e colaboradores (2019) demonstra que 44,4% das PSSA consome ou já consumiu drogas, sendo esta prevalência mais elevada no presente estudo (52,8%).

A associação entre o tabagismo e consumo abusivo e/ou dependência alcoólica é referida por vários autores (Ferreira, Bispo Junior, Sales, Casotti, & Braga Junior, 2013) o que não acontece relativamente às drogas ilícitas, que no presente estudo se encontra correlacionado negativamente.

O consumo e abuso de álcool ou drogas ilícitas é mais elevado em Portugal nas PSSA nos estudos analisados, sendo um dado preocupante tendo em conta todas as consequências para a saúde que daí advêm, aliadas à ausência de habitação. O facto de a situação de sem-abrigo resultar de acontecimentos de vida adversos como desemprego ou ruturas afetivas remete para a utilização das bebidas alcoólicas como estratégia para lidar com situações adversas. A percentagem de PSSA que não sabe especificar o(s) motivo(s) que os levaram à situação de sem-abrigo (43,7%) alerta para a dificuldade desta população na identificação das situações problema e consequentemente em estratégias que permitam a sua resolução. Como referem Ross-Houle e colaboradores (2017) a utilização de bebidas alcoólicas para lidar com estados emocionais negativos potencia a evolução dos consumos para situação de dependência. Por outro lado, o contrário também se pode verificar, ou seja, poderá ter sido o consumo abusivo de álcool que levou à rutura familiar ou aos acontecimentos de vida adversos, como o desemprego, tendo em conta as elevadas taxas de alcoolismo na população geral em Portugal e a acessibilidade à substância. Assim, é importante perceber se é o consumo de álcool que leva à situação de sem-abrigo ou se é o contrário, para que possam ser implementadas estratégias atempadamente. Importa ainda perceber a presença de outras perturbações mentais nesta população e implementar estratégias para a habitação e cuidados de saúde.

Conclusão

Os resultados alertam para a existência de necessidades em saúde pelas PSSA. A percentagem de consumidores de substâncias (tabaco e drogas ilícitas) e de álcool em particular, remete para o risco de aumentarem as consequências no estado de saúde e o comprometimento da integração e sucesso de programas de apoio a esta população. Os resultados confirmam a necessidade de equipas multidisciplinares na abordagem às PSSA, onde os enfermeiros especialistas em saúde mental e psiquiatria (EESMP) têm um papel essencial. Ficou demonstrada a existência de necessidades das PSSA na área da saúde no que respeita à falta de insight sobre a PUA. A diferença percentual entre as PSSA que reconhecem a existência de limitações funcionais de ordem física e psíquica e os que tomam habitualmente terapêutica denotam a iliteracia em saúde desta população, sendo por isso importante a existência do profissional de saúde perito em estratégias comunicacionais e de relação terapêutica para ajudar cada um no reconhecimento das situações de doença e procura de tratamento. O treino desta população em competências socias e relacionais que lhes permitam lidar com as vulnerabilidades existentes em diversas áreas de vida, e a identificação das situações de consumo de substâncias, para intervenção ou encaminhamento alertam para a importância do ESSMP nas equipas de apoio á PSSA principalmente ao nível dos comportamentos aditivos. Além disso, torna-se essencial atuar ao nível da promoção e proteção da saúde mental, bem como da prevenção da doença mental nesta população.

Implicações para a Prática Clínica

Tendo em conta os resultados deste estudo, que demonstram o elevado consumo de substâncias nas PSSA, podemos inferir que a intervenção junto desta população requer uma avaliação pormenorizada do consumo de substâncias e em especial do consumo de álcool e da inventariação de problemas de saúde existentes, além da situação socioeconómica. A triagem do consumo de álcool, o encaminhamento adequado, a Redução de Riscos e Minimização de Danos, mostram ser intervenções de primeira linha a considerar junto das PSSA.

A dificuldade demonstrada na identificação dos problemas, e consequentemente nas estratégias que conduzam à sua resolução mostram que o EESMP é um elemento fulcral nas equipas de apoio a PSSA. Na sua prática clínica, o mobilizar de um conjunto de saberes e conhecimentos científicos, técnicos e humanos e os elevados níveis de julgamento clínico e tomada de decisão, traduzidos num conjunto de competências clínicas especializadas, permitem ao EESMP facilitar a integração da PSSA no seu processo terapêutico e a vivência de experiências gratificantes nas relações interpessoais e intrapessoais.

Tendo em conta as competências do EESMP (Ordem dos Enfermeiros, 2018), que inclui a coordenação, implementação e desenvolvimento de projetos que promovam e protejam a saúde mental, torna-se urgente e essencial o seu envolvimento ativo na construção de programas específicos para este grupo da comunidade, no sentido de prevenir consequências como por exemplo o abuso de bebidas alcoólicas. Esta intervenção deverá ser dirigida a todos os grupos de risco podendo passar pela intervenção ao nível das Unidades de Cuidados na Comunidade e pelas Equipas Comunitárias de Saúde Mental, reguladas pelo Despacho n.º 2753/2020 (Ministério da Saúde, 2020).

Importa ainda refletir sobre o processo de desinstitucionalização psiquiátrica e sobre a possível necessidade de intervenção focada nos cuidados continuados em saúde mental para as PSSA, dada a elevada taxa de comportamentos aditivos.

Referências Bibliográficas

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Recebido: 31 de Dezembro de 2019; Aceito: 20 de Maio de 2020

Autor de Correspondência: Olga Valentim, Avenida Prof Egas Moniz 1600 - 190 Lisboa, Portugal, ommvalentim3@gmail.com

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