Serão as associações de cultura, recreio e desporto uma escola de democracia? E de cidadania? Quais são os seus efeitos democráticos? E como se caracteriza esse tipo associativo, em Portugal? A obra Associações, Democracia e Utopias Reais. O caso das associações de cultura, recreio e desporto1 da autoria de Sérgio Pratas, doutorado em Sociologia pelo Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, traz à discussão um conjunto de problemáticas que, tendo raízes na Sociologia Clássica, continuam a comportar singular relevância sociológica (política e cultural) para a compreensão das sociedades contemporâneas e da vida coletiva.
Interligando os conceitos de “associações”, “democracia” e “cidadania”, o autor propõe-se a analisar um objeto tão presente no quotidiano (e no imaginário) popular português, que é massa constitutiva dos bairros, aldeias e cidades e, ao mesmo tempo, tem sido arredado da investigação sociológica portuguesa: as coletividades, associações e clubes de cultura, recreio e desporto. Tendo como objetivos principais i) a caracterização do associativismo de cultura, recreio e desporto; e ii) a compreensão da sua constituição (ou não) como uma escola de democracia, Sérgio Pratas procura igualmente desencobrir o contributo e a mais-valia que essas organizações associativas têm tido (e poderão ter) para o aprofundamento da democracia, da participação e da cidadania.
Para isso, convoca, primeiramente, os quadros teóricos sobre ação coletiva e associações voluntárias, a partir da contraposição das escolas tocquevilliana e marxista e, num segundo momento, o debate sobre as ameaças e desafios da democracia, apoiando-se na descrição de três vias distintas para o seu aprofundamento (democracia participativa, democracia associativa e democracia deliberativa), sobre o papel das associações voluntárias em cada uma e sobre os seus efeitos democráticos. Numa terceira parte, aborda a democracia nas associações, isto é, a sua democracia interna, discorrendo sobre os critérios para uma governação democrática e transparência organizacional.
O modelo de análise desenvolvido abarca a discussão teórica e os principais conceitos, nomeadamente “associações de cultura, recreio e desporto”, “escola de cidadania”, “democracia interna” e “escola de democracia” e, sem condicionar a investigação a uma análise estrita de causa-efeito, o autor procura, sim, compreender os diversos elementos presentes num sistema complexo de interações. Empiricamente, emprega uma estratégia metodológica mista, conjugando complementarmente métodos e técnicas qualitativas e quantitativas. Para responder ao primeiro objetivo, utiliza dados secundários e realiza duas dezenas de entrevistas semi-directivas aos dirigentes do Conselho Nacional do Associativismo Popular e das estruturas descentralizadas da Confederação Portuguesa das Colectividades de Cultura, Recreio e Desporto. Para o segundo, Sérgio Pratas desenvolve um estudo de caso centrado no concelho de Loures, a partir de dois inquéritos por questionário integrados num projeto de investigação e do desenvolvimento de pesquisa de terreno focada incisivamente sobre duas associações do concelho: uma associação mista e um clube desportivo.
Constituindo-se como uma pesquisa verdadeiramente assente na lógica de trabalho cumulativo, a obra e o seu autor não deixam de percorrer um caminho próprio. Apoiando-se numa já densa investigação internacional sobre o contributo das associações voluntárias para a democracia, e em alguns desenvolvimentos da investigação sociológica em Portugal2, a obra destaca-se pela articulação de teorias, com enfoque sobre a maior família associativa presente em território nacional. Procurando ir mais longe, o autor aprofunda a discussão sobre o que se entende por “associativismo popular”, “associações populares” e “coletividades”, e de como estas podem constituir um travão à emergência do populismo.
A obra tem a mais-valia de relançar o debate científico e sociológico em Portugal, num campo fortemente marcado pela produção amadora e própria sobre as coletividades de cultura, recreio e desporto (Melo, 2007). Neste contexto, Associações, democracia e utopias reais. O caso das associações de cultura, recreio e desporto constitui um avanço importante para quem procura compreender as dinâmicas sociais, os processos de ação coletiva e de transformação social e cultural da sociedade civil (portuguesa), ao mesmo tempo que deixa pistas para a construção de sociedades mais democráticas, participadas e inclusivas. Como as suas antecessoras, a obra não encerra o debate em si mesma, mas, pelo contrário, abre novos caminhos para análises futuras.