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SOCIOLOGIA ON LINE

versão On-line ISSN 1647-3337

SOCIOLOGIA ON LINE  no.31 Lisboa jun. 2023  Epub 27-Jul-2023

https://doi.org/10.30553/sociologiaonline.2023.31.3 

Artigo Original

DECRESCIMENTO E CUIDADO NAS PRÁTICAS DAS INICIATIVAS LOCAIS

DEGROWTH AND CARE IN THE PRACTICES OF LOCAL INITIATIVES

Graça Rojão1  , Concetualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Validação, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição
http://orcid.org/0000-0002-8799-8912

1 Universidade da Beira Interior, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e CooLabora - Intervenção Social, CRL. Rua Combatentes da Grande Guerra, 62, 6200-020 Covilhã, Portugal, E-mail: graca.rojao@ubi.pt


Resumo

Neste artigo refletimos sobre a presença do decrescimento e da perspetiva feminista sobre o cuidado nas Iniciativas Locais Alternativas desenvolvidas em Portugal continental. Estas duas perspetivas partem de matrizes emancipatórias e partilham preocupações com a manutenção da sustentabilidade da vida no Planeta, em condições de justiça social. Analisamos os dados coligidos através do trabalho de campo realizado junto de 52 iniciativas locais e, por fim, discutimos a pertinência do decrescimento e do cuidado no reforço do potencial emancipatório destas experiências locais.

Palavras-chave: decrescimento; cuidado; iniciativas locais.

Abstract

In this article we reflect on the presence of degrowth and the feminist perspective on care in Local Alternative Initiatives developed in mainland Portugal. These two perspectives depart from emancipatory matrices and share concerns with maintaining the sustainability of life on the Planet, in conditions of social justice. We analysed the data collected during the fieldwork phase with 52 local initiatives and, finally, we discussed the pertinence of degrowth and care in reinforcing the emancipatory potential of these local experiences.

Keywords: degrowth; care; local initiatives.

Introdução

A pertinência de uma reflexão sobre as Iniciativas Locais Alternativas (ILA) portuguesas à luz das propostas do decrescimento e da perspetiva feminista do cuidado advém do facto de ambas concederem centralidade às preocupações com a sustentabilidade da vida na Terra, em condições de justiça social. Este artigo baseia-se nos dados empíricos resultantes do trabalho de campo realizado entre 2019 e 2021 junto de 52 iniciativas locais, no âmbito da elaboração da tese de doutoramento sobre o decrescimento e cuidado nas ILA (Rojão, 2022) e analisa várias das principais dimensões consideradas nesse processo.

Adotamos como prisma de análise as propostas do decrescimento por concederem especial relevo às preocupações ecológicas e por tecerem uma crítica ao crescimento económico definido como fim em si e não como meio. Partimos também da perspetiva feminista do cuidado, que desafia as relações de género e de produção prevalecentes ao problematizar as noções de economia, trabalho e (re)produção social.

Começamos por fazer o enquadramento teórico, partindo da crise sistémica que enfrentamos. Em seguida, delimitamos as conceções de decrescimento e de cuidado e fundamentamos a opção por uma abordagem focada nas iniciativas locais. Na secção seguinte damos conta das opções metodológicas e técnicas a que recorremos. Posteriormente discutimos estas matrizes transformadoras no contexto das ILA e terminamos o artigo com uma reflexão conclusiva sobre o potencial emancipatório da articulação entre decrescimento e cuidado nas práticas das iniciativas locais.

Conceitos chave: decrescimento, cuidado e iniciativas locais

O carácter sistémico da crise que o mundo atravessa envolve problemas de índole diversa, mas claramente marcados pela interdependência. As questões ecológicas, cuja face mais visível está patente nas alterações climáticas, no esgotamento de recursos naturais e na perda de biodiversidade estão também associadas ao crescimento das desigualdades e das injustiças sociais, à persistência do patriarcado e ao desequilíbrio nas relações planetárias entre o Norte e o Sul globais (Santos & Meneses, 2009).

A transversalidade desta crise é sublinhada por Pablo Solón quando destaca que “a humanidade enfrenta não só uma crise ambiental, económica, social, política, institucional ou civilizatória. Todas estas crises são parte de um todo. É impossível resolver uma destas crises sem abordar as outras no seu conjunto” (Solón, 2017, p. 7). O reconhecimento do carácter sistémico desta crise marca de forma indelével algumas das propostas alternativas que visam desenhar caminhos para a sua superação e que, embora possam adotar perspetivas diversas, partilham uma visão de futuro que procura recuperar a fratura entre os seres humanos e a natureza. Entre essas propostas de pensamento crítico que que situamos no campo das alternativas societais, destacamos aqui o decrescimento e a perspetiva feminista do cuidado, pela sua relação com o nosso contexto sociocultural e também pela relevância que assumem em três campos distintos: a academia, os movimentos sociais e as experiências locais.

Decrescimento

O decrescimento radica nas preocupações ligadas à finitude dos recursos e na necessidade de redução da produção e do consumo. As suas raízes estão também na procura de alternativas ao desenvolvimento dito sustentável, pela constatação de que ele não consegue impedir o agravamento dos problemas ambientais e das desigualdades sociais, já que se mantém preso a uma orientação económica regida pelas lógicas do crescimento económico contínuo, pelo extrativismo e pelo consumismo.

A sociedade crescentista desloca os custos ecológicos e sociais que este modelo comporta para os países do Sul global e para as gerações futuras, como ilustra o consumo de matérias-primas que levaram milhares de anos a ser criadas e que hoje são consumidas a um ritmo vertiginoso. O mesmo acontece com a produção de resíduos, cuja dimensão e velocidade são incompatíveis com o tempo necessário à sua regeneração pelos ecossistemas. Uma parte da humanidade está hoje a delapidar velozmente um património que levou milhões de anos a construir, assinala Serge Latouche (2012), um dos pensadores fundacionais deste debate, concluindo que:

o crescimento atual só é rentável na condição de fazer recair o seu peso e o seu preço sobre a natureza, as gerações futuras, a saúde dos consumidores, as condições de trabalho dos assalariados e, ainda mais, sobre os países do Sul. (Latouche 2012, pp. 47-48)

Existe, portanto, uma clara incompatibilidade entre o decrescimento e as propostas que partem da possibilidade de existir um crescimento sustentável (Burkhart et al., 2020).

Embora o decrescimento conceda especial atenção ao elevadíssimo volume de produção e consumo que são característicos das sociedades ocidentais, ele vai além dos limites impostos pela finitude de recursos e do combate ao consumismo, pois questiona a própria ideia de felicidade, que acabou por ser capturada pelas próprias pressões consumistas e utilitaristas. O decrescimento não se confina, portanto, a produzir e consumir menos ou de forma mais ecológica. Ele aponta para uma sociedade com um metabolismo distinto, só possível através da alteração da nossa vida individual e coletiva, o que vai mais além que um mero acerto do passo entre o consumo e os limites ecológicos do planeta (Kallis, 2011). O decrescimento é incompatível com os princípios do capitalismo e, portanto, a sua proposta só poderá ser concretizável num quadro pós-capitalista (Latouche, 2012; Löwy, 2013).

O decrescimento propõe uma mudança nos modos de produção, distribuição e consumo de forma a reduzir o impacto da ação antropogénica sobre os ecossistemas, mas dá também especial atenção às questões imateriais ligadas à vida humana e não-humana. Entre as suas propostas assume especial centralidade a redistribuição da riqueza, quer entre o Norte e o Sul global, quer dentro de cada país. Destaca-se ainda a defesa da frugalidade como estilo de vida, sob o slogan “viver melhor com menos”, a defesa da transição para uma sociedade mais convivial e democrática e o reforço da autonomia económica local.

Para autores como Serge Latouche (2010) a ideia de decrescimento surgiu como um slogan político capaz de convocar um imaginário alternativo à sociedade crescentista e veio progressivamente a constituir-se como movimento social ou mosaico de movimentos (Burkhart et al., 2020). A designação, ainda que polémica, não é facilmente capturável, pois trata-se de uma “palavra míssil”, expressão de Paul Ariès (2005) que aponta o seu forte poder de interpelação e a sua capacidade de focar o debate em torno do questionamento da ideia crescimento económico, propalada de forma acrítica. O seu objetivo não é, claro está, negar a relevância de qualquer crescimento, mas sim desmantelar a ideologia crescentista que estabelece o crescimento como um fim e não como um meio. O decrescimento aponta na direção de um futuro desejado, onde o cuidado, a convivialidade, a partilha, a frugalidade ou os recursos comuns são “significado básicos de como essa sociedade pode ser” (Kallis et al., 2016, p. 24).

Cuidados

A economia feminista aportou um contributo especialmente significativo na problematização das relações de género e no questionamento do sistema capitalista patriarcal. Silvia Piris assinala que este é dos movimentos sociais mais atacados por questionar as relações de poder entre homens e mulheres, tornando mais visíveis as desigualdades e os privilégios, bem como a tessitura socioeconómica e política que os permite manter (Piris, 2015).

A reflexão da economia feminista, enquanto perspetiva crítica face à economia neoclássica, é aqui particularmente pertinente pela sua proposta de redefinição dos conceitos de economia, de trabalho e de (re)produção social (Ezquerra, 2011), o que abre espaço para uma conceptualização mais lata de cada um deles e reforça a visibilidade do cuidado. A economia é aqui vista como campo de provisão, integrando as atividades não mercantis fundamentais à sustentação da vida. Ao questionar a dicotomia entre produção e reprodução, a economia feminista mostra a indissociabilidade de ambas e a secundarização da reprodução social já que a produção surge frequentemente associada à “economia real”, presumindo-se que tudo o resto tem um lugar acessório.

O cuidado assume um papel central na nossa vida e não se restringe a estados passageiros, como situações de doença ou a fases específicas do ciclo da vida. O cuidado está na interdependência e na vulnerabilidade próprias da condição humana, pois ninguém é absolutamente autónomo. Tem, portanto, uma função especialmente central na manutenção das condições de sustentabilidade da vida, motivo pelo qual deveria ser socialmente valorizado e tratado como responsabilidade social primordial a assumir coletivamente. Porém, o peso e a responsabilidade relativos ao esforço que os cuidados implicam não estão distribuídos pela diversidade de agentes que os poderiam assegurar, nomeadamente dentro das famílias, por homens e mulheres, o que é agravado pelo aumento da população com necessidades de cuidados mais intensas, devido ao envelhecimento populacional e à retração do Estado Social, cujo espaço tem progressivamente vindo a ser assumido pelo mercado, reduzindo-se assim as possibilidades de acesso, já que este é condicionado pelo nível de rendimento (Pérez Orozco, 2010).

Ao destacarmos a relevância do cuidado e ao assumirmos a necessidade da sua des-familiarização1, isto é, ao recusarmos que a responsabilidade da sua provisão esteja confinada ao espaço doméstico, como se fosse exclusiva deste, questionamos também a desigualdade na distribuição do trabalho de cuidado, que recai maioritariamente sobre as mulheres. Socializar os cuidados é assumir a necessidade de uma co-responsabilização coletiva e o dever de todas e todos na sua provisão (Sanchís, 2020).

Maria Atienza et al. (2019) sublinham que temos a dupla condição de seres interdependentes, porque a nossa vida não poderia dispensar o cuidado das outras pessoas e também de seres ecodependentes, já que as nossas necessidades basilares, como a respiração ou a alimentação são dependentes da natureza. A perspetiva feminista do cuidado destaca a necessidade de reconhecimento da vulnerabilidade inerente à condição humana por parte do sistema socioeconómico, o qual se deveria focar na preservação da diversidade da vida na Terra e assegurar que esforço necessário à sustentação da vida fosse repartido de forma equitativa. Neste sentido, a noção de cuidados integra outras dimensões, sejam materiais ou imateriais, e é mais vasta que uma visão estritamente vinculada à esfera doméstica ou a situações de dependência inerentes a fases da vida específicas, já que diz também respeito ao cuidado ambiental e ao cuidado comunitário (Prieto, 2015).

Iniciativas locais alternativas

As propostas de transformação social podem constituir teorias académicas ou ideias políticas, podem também animar movimentos sociais ou iniciativas concretas de experimentação e demostração de outros modos de organização da vida, comportando visões de possíveis futuros alternativos. As ILA configuram espaços de experimentação e de desenvolvimento de ideias, muitas vezes numa lógica laboratorial, que mostram como o campo de possibilidades de organização da vida social é lato. Materializam aquilo que Erik Olin Wright (2011) designa por utopias reais. Estas experiências, de modo geral, vivem num ambiente socioeconómico marcado por valores distintos dos seus, onde predominam lógicas de dominação patriarcal, a obsessão pelo crescimento económico e uma cultura mercantilista, o que espoleta relações tensas com o seu contexto.

O prisma que aqui adotamos é de abertura face aquilo que está a emergir, ao “ainda-não”. Procuramos conhecer estas iniciativas e o modo como se organizam, sem pretendermos encontrar uma suposta perfeição ou adequação a modelos pré-desenhados. Adotamos um posicionamento de abertura, que visa conhecer o seu potencial emancipatório, sem estar preso às métricas próprias de uma perspetiva neoliberal e sem um foco exclusivo nos limites ou fragilidades que estas experiências também revelam.

O campo das iniciativas locais alternativas é amplo e de difícil categorização. Por um lado, comporta uma grande diversidade de tipologias, por outro, existe uma sobreposição de designações face a experiências cujo conteúdo por vezes é coincidente. Sánchez Hernández (2019, p. 34) refere: “fala-se de economias diferentes, comunitárias, transformadoras, pós-capitalistas, autónomas, morais, colaborativas, solidárias, de transição ou dos cuidados, mas também de inovação social e de práticas económicas alternativas”.

Adotamos aqui o conceito de ILA construído no âmbito do trabalho de doutoramento sobre este tema, a que já aludimos (Rojão, 2022) e que as circunscreve a:

ações coletivas, formalizadas ou não, enraizadas em territórios concretos, que ensaiam soluções organizativas alicerçadas em princípios e valores não capitalistas. Podem ter um caráter mais multisetorial ou centrar-se em questões específicas, como a preservação ambiental, a justiça social ou a qualidade dos processos democráticos e participativos, entre outras. (Rojão, 2022, p. 177)

Seguindo o mesmo trabalho de investigação, definimos iniciativa como:

uma ação coletiva organizada (o que exclui as ações individuais ou as iniciativas coletivas espontâneas), com alguma estabilidade temporal (não correspondendo, portanto, a uma ação única ou isolada), independentemente de estar ou não formalizada, isto é, de possuir um estatuto jurídico específico, que desencadeia atividades organizadas em função de um ou mais objetivos comuns. (Rojão, 2022, p. 178)

O segundo termo da designação que usamos é locais, o que remete para intervenções territorialmente ancoradas, capazes de desencadear processos de mudança nos territórios em que se inscrevem e de criar soluções adaptadas ao contexto, escapando, portanto, à pressão globalizadora das respostas universais. Nesta perspetiva, o potencial transformador das ILA advém também da sua capacidade de reconhecer a singularidade de cada local e de privilegiar a proximidade, sem cair numa posição localista (Hillenkamp et al., 2014).

O terceiro termo da designação, a ideia de alternatividade, é claramente um conceito relacional. A partir de Sánchez Hernández e Gluckler (2019) delimitamos as alternativas àquilo que se afasta do mainstream convencional e que reúne os três aspetos que os autores consideram essenciais na configuração da alternatividade: os objetivos que perseguem, os seus fins e o respetivo modelo organizativo. Concluímos que as ILA analisadas se movem por objetivos que as singularizam, já que a sua ação não tem como ponto fulcral a busca do lucro e a acumulação, como acontece nas organizações capitalistas. Identificamos ainda finalidades distintas, já que o seu foco está na satisfação de necessidades humanas de cariz coletivo. Considerar uma determinada ILA alternativa implica atendermos ao contexto geográfico em que esta se inscreve, nomeadamente às suas características socioeconómicas, culturais e institucionais. Propostas que podem configurar uma alternativa num determinado local, noutros poderão não o ser, daí que não possamos pensar as alternativas fora do seu contexto (Sánchez Hernández, 2017).

Metodologia do trabalho empírico

Este artigo, como já referimos, parte de alguns dos dados empíricos que serviram de suporte à elaboração da tese de doutoramento Decrescimento e Cuidado nas Iniciativas Locais Alternativas (Rojão, 2022). O trabalho de campo seguiu uma metodologia qualitativa, dada a natureza do objeto e adotou uma abordagem por aproximações sucessivas, tendo em vista a compreensão mais profunda da ação das ILA. Começámos por um questionário às iniciativas, seguiram-se grupos de discussão regionais, entrevistas e por fim grupos focais. Recorremos à combinação de métodos e técnicas sem quaisquer propósitos de descoberta de uma suposta “verdade absoluta”, mas porque ela tem potencial para captarmos as várias dimensões das ILA. Estas aproximações tornaram possível a construção de uma representação progressivamente mais próxima da realidade.

No trabalho de campo aplicámos um questionário online sobre as práticas de decrescimento e de cuidado nas ILA, que obteve 52 respostas e serviu de base à caracterização do universo de iniciativas e das respetivas práticas. A partir deste questionário selecionámos um grupo de iniciativas, com base nos seguintes critérios: i) práticas de decrescimento e cuidado presentes na ILA e respetiva intensidade; ii) relevância dessas práticas; iii) representatividade das temáticas de intervenção; e iv) representatividade regional. A aplicação destes critérios reduziu o universo de estudo de 52 para 11 iniciativas. Procedemos então à realização de uma entrevista semi-estruturada a pessoas com responsabilidades na condução das iniciativas, que foram realizadas através da plataforma Zoom, uma vez que decorreram no ano 2020, com enormes restrições ao trabalho presencial devido à pandemia COVID-19. Por fim, realizámos focus groups presenciais com iniciativas que haviam já sido entrevistadas, pela relevância que assume nesta investigação aceder a perspetivas mais coletivas e resultantes da interação entre membros. Devido aos condicionalismos criados pela pandemia nesse período (verão e outono de 2020), das 11 iniciativas entrevistadas previamente apenas 7 aceitaram realizar o focus group, cujo formato era obrigatoriamente presencial. Elaborámos posteriormente uma grelha sinóptica que organiza por categorias a informação recolhida em cada entrevista individual e em cada focus group. Por fim, analisámos os dados recolhidos através do trabalho empírico e confrontámo-los com a nossa matriz teórica. Por necessidade de síntese, não detalhamos neste artigo tais fases, que se encontram amplamente documentadas na referida tese em que nos baseámos.

Discussão

Começamos por apresentar sucintamente as ILA, a partir das 52 respostas ao questionário online. Constatámos um equilíbrio na representação de ambos os sexos nas respostas, já que 48% das pessoas respondentes eram mulheres e 52% homens. A resposta ao questionário foi maioritariamente assegurada por membros com responsabilidades na gestão da iniciativa. Em 84% das situações, a pessoa respondente estava ligada aos órgãos de direção ou à coordenação da ILA. Em 10% das situações, a resposta foi assegurada por membros participantes e em 4% das situações por membros da equipa técnica ou de outros órgãos sociais, que não a direção (2%).

Estas iniciativas estão distribuídas por todo o território continental português, ainda que se concentrem especialmente nas duas cidades com maior dimensão, já que em Lisboa temos a resposta de 6 iniciativas e no Porto de 7. Atendendo à distribuição das ILA respondentes pelas regiões-plano, 11 delas situam-se no Norte de Portugal, 14 na região Centro, 9 no Alentejo e 17 na região de Lisboa e Vale do Tejo. No Algarve tivemos apenas uma resposta.

Há uma notória diversidade de territórios de intervenção nestas 52 iniciativas e algum equilíbrio entre as ILA que trabalham exclusivamente em áreas urbanas ou periurbanas (38% do total) e em territórios rurais (35%). Há ainda 27% de iniciativas cuja intervenção ocorre em contextos diversos, não identificáveis como predominantemente rurais, urbanos ou periurbanos.

A diversidade é também uma das características que encontrámos em termos de dimensão populacional dos territórios onde estas iniciativas se inscrevem. Existe uma predominância de territórios com 15 mil habitantes ou menos, que representam 44% do total.

O número de pessoas que participam nestas ILA é significativo. Entre os e as participantes consideramos trabalhadores/as e voluntários/as. Segundo os dados obtidos através do questionário, podemos estimar que em 2019 as ILA inquiridas tenham envolvido cerca de 4 mil pessoas, maioritariamente mulheres (66%). As iniciativas que envolvem até 30 pessoas têm um peso significativo, já que representam 71% do total. Em seguida surgem as ILA com 70 pessoas, que representam 19% do total. Com um volume de participantes entre 100 e 500 temos 8% das iniciativas e, por fim, temos uma iniciativa que sozinha envolve cerca de 1830 pessoas.

Estas iniciativas perseguem objetivos intrinsecamente vinculados à busca da transformação social. Materializam ações de índole diversa, que podemos agregar segundo as temáticas de intervenção priorizadas, tal como é evidenciado na Figura 1. A definição de categorias revela alguma complexidade já que são iniciativas diversas, com uma atuação em áreas cujos limites são pouco vincados, ao que acresce o facto de a maioria das iniciativas intervir em mais do que uma temática. O questionário evidenciou que as ILA que adotam como foco principal as problemáticas ecológicas representam 17,3% do total. Seguem-se, com 15,4%, as ILA com uma intervenção mais especifica nas temáticas agroecológicas. Se as somarmos, verificamos que 32,75% das ILA respondentes têm preocupações desta natureza. As iniciativas cuja intervenção é multissetorial, representam 9,6% do total e envolvem dimensões como o abastecimento de produtos agrícolas de base local, a realização de atividades ligadas à fruição cultural, etc. Segue-se, em termos de peso, as iniciativas focadas na cultura que totalizam 11,5% do total de respostas ao questionário e as centradas na educação e formação, também com 11,5% do total. As ILA cuja atividade se relaciona especialmente com questões da vida cívica representam 9,6% do total e aquelas que se focam na criação de espaços de convivialidade, bem como as associações de desenvolvimento local correspondem a 5,8% das respostas. Há ainda iniciativas que dificilmente poderemos ligar a uma temática específica e que colocámos na categoria “outras” como é o caso das finanças éticas, das iniciativas ligadas à espiritualidade, etc.

Nota: gráfico retirado de Rojão, 2022, p. 213.

Figura 1 Tipologia de intervenção das 52 iniciativas inquiridas 

A Tabela 1 apresenta uma caraterização sintética das 11 iniciativas entrevistadas, partindo das 6 categorias de análise às iniciativas de economia social e solidária propostas por Hespanha e Lucas dos Santos (2016) que são: agente, objetivo, Estado, mercado, democracia e gestão, tendo nós acrescentado ainda território e número de pessoas envolvidas. Evidencia o predomínio da associação, enquanto figura jurídica mais frequente entre as iniciativas. Mostra também que estas ILA, embora visem atingir objetivos distintos, partilham um ideário similar, com preocupações ligadas, por exemplo, à sustentabilidade ecológica, à reciprocidade e à solidariedade. É notória uma preocupação com a articulação entre a reflexão sobre as ideias que a ILA propõe e a demonstração efetiva da sua possibilidade, através de ações concretas. Há uma procura de independência face ao Estado, ainda que em muitos casos este possa estar presente através da cedência de terrenos e edifícios ou mesmo por via de programas de financiamento a que as ILA concorrem. Existe uma relação com o mercado, mas esta não é orientada pela busca do lucro. Do ponto de vista da gestão, a tabela mostra uma forte preocupação com a democraticidade interna e modelos de funcionamento baseados na horizontalidade.

Tabela 1 Caraterização das ILA entrevistadas. Adaptado de Hespanha e Lucas dos Santos (2016, p. 41) 

Nota: quadro retirado de Rojão, 2022, pp. 253-254.

A partir dos dados do trabalho de campo procurámos identificar o papel do decrescimento e do cuidado nas visões e nas práticas das ILA, tendo como referência um conjunto de dimensões que previamente estabelecemos com base na revisão da literatura.

Para o decrescimento, a partir do trabalho a que já aludimos (Rojão, 2022), foram definidas 5 dimensões: i) redução da produção e do consumo, tendo em vista uma sociedade com outro metabolismo; ii) descolonização do imaginário que associa consumo, reconhecimento social e bem-estar; iii) criação de maior autonomia local; iv) redistribuição da riqueza e do rendimento; e v) transição para uma sociedade mais convivial, participativa e democrática. As seis dimensões estabelecidas para o cuidado foram: i) visibilização das relações de poder entre homens e mulheres e dos papéis de género que lhes são tradicionalmente atribuídos; ii) atenção ao impacto da pertença a múltiplas categorias sociais na inclusão/exclusão de pessoas; iii) problematização da atribuição de valor às atividades, de acordo com a sua natureza considerada produtiva ou reprodutiva; iv) promoção de práticas favorecedoras da conciliação entre a vida pessoal, familiar, laboral e cívica; v) corresponsabilização pelos cuidados, tendo em conta a sustentabilidade da vida humana e não humana; e vi) promoção dos cuidados mútuos enquanto elemento de sociabilidade” (Rojão, 2022).

Na análise das respostas ao questionário constatamos uma presença muito significativa do decrescimento, já que este foi assinalado por 98% das ILA. As dimensões que surgem de forma mais expressiva dizem respeito ao contributo para criar uma sociedade mais convivial e participativa, identificada por 89% das ILA. Em seguida, ambas com um peso nas respostas de 83%, estão as preocupações com o impacto ambiental da atividade humana e a busca de uma maior autonomia local. Seguem-se, com 77%, a recusa do imaginário consumista e, por fim, mas com uma presença ainda significativa, já que foi assinalada por 67% das iniciativas, surge a preocupação com a redistribuição da riqueza.

No que diz respeito à identificação de aspetos da intervenção das ILA que podemos associar ao cuidado, foi notória uma presença menos intensa destas dimensões face à registada para o decrescimento, tendo mesmo 11,5% das iniciativas indicado não ter qualquer atividade relacionada com o cuidado. Os cuidados mútuos, enquanto mecanismo de sociabilidade, foram a dimensão mais assinalada, com um peso de 65%; segue-se a igual valorização de atividades relativas ao trabalho produtivo e ao trabalho dito reprodutivo, que está presente em 64% das iniciativas. Mais de metade, isto é, 54% das ILA referem ter preocupações sobre o impacto na inclusão ou exclusão pela pertença a múltiplas categorias sociais. Com um valor inferior a 50% surgem as preocupações com a visibilização das desigualdades de poder entre homens e mulheres (48%) e ainda a preocupação com mecanismos promotores da conciliação entre a vida pessoal, familiar, laboral, cívica, assinalada por 44% das ILA inquiridas. Com uma expressão de apenas 35% está a dimensão relativa à corresponsabilidade pelos cuidados a nível pessoal, coletivo e social.

Na Figura 2 identificamos as dimensões relativas ao decrescimento (a verde) e ao cuidado (a laranja) e ordenamo-las de acordo com a relevância da sua presença nas iniciativas. Destaca-se uma presença muito menos intensa de qualquer das dimensões ligadas cuidado, quando comparada com a intensidade das dimensões associadas ao decrescimento.

Nota: figura retirada de Rojão, 2022, p. 225.

Figura 2 Intensidade da presença de cada dimensão de decrescimento (a verde) e de cuidado (a laranja) nas 52 ILA inquiridas  

Cruzando os dados do questionário, das entrevistas individuais e dos focus groups constatamos a existência de um alinhamento significativo entre as propostas do decrescimento e as preocupações das ILA, ainda que o termo não esteja amplamente difundido. Um entrevistado refere:

O essencial da questão não é tornar o sistema um pouco mais verde, um pouco mais ecológico, mas é mudar radicalmente de sistema. Mudar de um sistema extrativista para um sistema de equilíbrio com os ecossistemas naturais; mudar de um relacionamento que perceciona as pessoas como mão de obra para um sistema com maior justiça social. (Entrevista 3, retirado de Rojão, 2022, p. 287)

Os dados mostram também o relevo que nestas iniciativas assumem as dimensões relacionadas com a convivialidade, a participação e a democracia. O trabalho de campo mostrou que as ILA concedem especial atenção à criação de espaços capazes de favorecer o convívio e a aprendizagem coletiva, o que que em algumas corresponde mesmo ao seu objetivo central. A título de exemplo, numa das iniciativas entrevistadas é referido:

Nas atividades que vamos desenvolvendo como almoços comunitários, geralmente não estabelecemos um preço, apelamos a uma dádiva consciente das pessoas, como nos concertos que muitas vezes se desenvolvem aqui (…) pequenos teatros, assembleias, passagem de filmes, coisas assim, na zona ao ar livre, lá no alto. (Entrevista 11, retirado de Rojão, 2022, pp. 292-293)

A preocupação com processos decisórios participativos e horizontais é muito significativa neste universo de iniciativas. Estes processos podem assumir graus de estruturação diversos, mas em comum partilham o objetivo de contrariar as lógicas hierarquizadas, como está patente nesta descrição:

Temos o grupo de trabalho da direção, mas as coisas que dizem respeito ao comum ou comunitário são levadas a conselho de colaboradores. Então, o que este grupo e os diferentes grupos de trabalho fazem é mastigar a fundo os assuntos, trabalhar os temas, levar as propostas já analisadas, refletidas e apresentar as várias possibilidades, as várias propostas a este conselho de colaboradores que é composto por todas as pessoas que aqui trabalham e que aqui vivem. (Entrevista 4, retirado de Rojão, 2022, p. 262)

As preocupações com o impacto ecológico da produção e do consumo de bens e a procura de estilos de vida que facilitem a relação com a natureza estão muito presentes no universo de pessoas ligadas às iniciativas locais. Num dos focus groups é afirmado o seguinte:

Eu acho que isto é perfeitamente racional. Se uma pessoa ouvir os cientistas, eles estão fartos de dizer o que é que vem aí do ponto de vista ambiental. Eu não acho que isto seja uma coisa ideológica. Isto é racionalismo, é uma questão de sobrevivência, realidade pura e dura, pragmatismo total. (Focus group 7, retirado de Rojão, 2022, p. 327)

No que diz respeito aos processos que reforçam a autonomia local, uma ideia muito relevante no decrescimento, as ILA analisadas concedem uma atenção especialmente significativa às atividades económicas ligadas à alimentação de proximidade e com menor impacto ambiental, como revela este exemplo:

A loja tem princípios decrescentistas, ou seja, dá-se prioridade aos produtos locais, só se vendem produtos que não sejam locais se forem bens essenciais, pouco transformados. Tenta-se usar o menos de embalagens possível, os vegetais não estão embalados, tenta-se usar o mínimo de plástico possível, não só na loja como em geral. (Entrevista 6, retirado de Rojão, 2022, p. 289)

Há uma perspetiva crítica face ao uso da tecnologia, alinhada com as propostas do decrescimento, que também se cruza com a ideia de autonomia, como, por exemplo as frequentes oficinas do it yourself - DIY. Refere um entrevistado:

deve haver uma maior consciência das pessoas da sua capacidade de se tornarem mais autónomas, menos dependentes dos processos do mercado e também do recurso consciente ao uso das tecnologias. (...) nós realizamos algumas atividades como Install Parties de distribuição de software livre. Todos os equipamentos que temos (...) são reciclados e instalados com software livre. (Entrevista 11, retirado de Rojão, 2022, p. 292)

Quando analisamos a dimensão relativa à descolonização do imaginário, na aceção de Serge Latouche (2012) que questiona a equiparação entre consumo e bem-estar, as iniciativas mostraram que esta é uma questão presente de forma transversal.

As preocupações com a redistribuição da riqueza estão visíveis nas ILA. Há ações destinadas a sensibilizar para esta questão, mas há também atividades que visam a redução do consumo de recursos ou que facilitam o acesso a bens, sem os mercantilizar. Destacam-se as práticas relacionadas com mecanismos de troca, a ajuda mútua nas reparações e o acesso gratuito a atividades. Muitas ILA evidenciaram preocupações face à centralidade que hoje o trabalho remunerado assume na vida de cada pessoa, uma ideia bastante presente nas correntes decrescentistas e na economia feminista, que alertam para todas as atividades fundamentais à vida, mas que fazem parte do trabalho não-remunerado. Num focus group foi adiantada a seguinte ideia:

Não nos identificamos com o modelo convencional de desenvolvimento empresarial ou de emprego. Nenhum de nós seria feliz se tivesse um trabalho do tipo 9h às 17h, robótico. Acho que isso é uma das coisas que nos une em termos de ideologia, mas cada um está aqui por razões diferentes. (Focus group 2, retirado de Rojão, 2022, p. 323)

Concluímos que no universo das ILA há maior diversidade de posicionamentos e de práticas no que diz respeito a dimensões que associamos às propostas das correntes feministas ligadas ao cuidado que aquela que encontramos face às dimensões associadas ao decrescimento. Ao contrário das preocupações ecológicas, o cuidado parece estar menos presente e surgiram com alguma frequência posições que o restringem à esfera privada, dando primazia à premência da crise ecológica ou a outros ideais emancipatórios, sem atender à conexão entre as várias dimensões da crise sistémica.

Mesmo neste universo de iniciativas que se posicionam como alternativas ao sistema dominante, há uma naturalização dos papéis de género e um escasso reconhecimento das desigualdades estruturais que marcam as relações de poder entre homens e mulheres. Algumas ILA referem ter uma organização marcada pela horizontalidade, o que, em seu entender, retira pertinência a uma análise das relações de género. No entanto, embora a organização interna baseada na horizontalidade consiga atenuar muitas hierarquias, há relações de poder implícitas que se podem manter, nomeadamente as relações de poder patriarcais. Existe um consenso social que naturaliza aquilo que supostamente são papéis sociais adequados a homens e a mulheres e que os associa a vocações, sensibilidades especiais ou aptidões inatas próprias de um género ou de outro.

Os cuidados mútuos e a sociabilidade são as dimensões relativas ao cuidado mais presentes nas ILA analisadas. Se, por um lado, os aspetos que dizem respeito ao relacionamento interpessoal dentro das iniciativas foram frequentemente reportados como uma dificuldade quotidiana, a vertente relacional é também uma das suas principais realizações, fundamental para criar comunidade, como surge nesta afirmação:

o facto de este grupo ter uma história já com quase 10 anos, desde as suas primeiras assembleias populares à horta e agora estar aqui, criou aqui uma solidez (...) o pensamento em diálogo não é igual ao pensamento em monólogo. (Entrevista 5, retirado de Rojão, 2022, p. 337)

A criação de espaços de convivialidade é, como já referimos, muito presente nas iniciativas aqui analisadas. Essa preocupação materializa-se em atividades diversas, sejam as de carácter mais festivo, ligadas à música e às danças, por exemplo, ou outras, como o trabalho coletivo em torno de uma horta urbana, caminhadas, etc. A dimensão de corresponsabilidade pelos cuidados também está presente nestas ILA, ainda que sem uma problematização das desigualdades de género que a atravessam. Concretiza-se através da produção de bens e serviços destinados aos respetivos membros, por exemplo, refeições coletivas, festas, cinema, desporto, etc. cujo acesso pode ser gratuito ou com base num donativo livre. Este aspeto é especialmente relevante se tivermos em conta que o cuidado tem vindo a ser progressivamente organizado sob princípios mercantis, que fazem depender a possibilidade de acesso da capacidade aquisitiva das pessoas.

Constatámos que as ILA valorizam de forma significativa o trabalho não pago, especialmente no que diz respeito aos cuidados mútuos, onde foi evidente um consenso mais significativo, o que está em consonância com os objetivos destas iniciativas pois concedem especial relevo à criação de espaços conviviais, a oportunidades de aprendizagem entre pares e à desmercadorização do acesso a bens e serviços. Foi visível que as ILA incorporam noções de economia e de trabalho alinhadas com as propostas da economia feminista crítica: “Eu acho que (...) se valoriza igualmente todos os tempos e, portanto, o tempo de produzir de facto não é valorizado em relação a outros tipos de tempo. Isto permite que se concretize a igualdade na prática” (Entrevista 1, retirado de Rojão, 2022, p. 294).

No que diz respeito à integração de uma perspetiva interseccional, foi possível constatar que na maioria da ILA, embora esteja presente uma reflexão sobre as desigualdades cumulativas e sobre o modo como diferentes categorias se podem concatenar na discriminação, deixam frequentemente o género fora dos fatores de discriminação, afastando-se do conceito de interseccionalidade proposto por Kimberlé Crenshaw (1990) que procura desnaturalizar as diversas hierarquias e eixos de opressão, atendendo a categorias como género, raça e classe e às simbioses que elas podem estabelecer ente si. Nas iniciativas constatámos uma grande diversidade entre os membros envolvidos, em termos de países ou continentes de origem e ainda o acolhimento positivo de uma certa originalidade individual, uma diversidade que as iniciativas reconhecem como enriquecedora.

Ao analisarmos os dados que dizem respeito às preocupações relativas à conciliação entre a vida pessoal, profissional, familiar e cívica, constatamos duas situações distintas. Nas ILA mais alicerçadas no voluntariado dos seus e das suas participantes, que geralmente possuem um trabalho remunerado exterior à iniciativa, a participação pode implicar dificuldades significativas de conciliação entre a vida cívica, pessoal e familiar. Porém, o reverso também acontece, sobretudo quando os membros têm um vínculo laboral à iniciativa, já que foram reportados mecanismos de facilitação da conciliação muito relevantes como, por exemplo, numa ILA que reduz o horário laboral em 50%, sem perdas remuneratórias, para casais com crianças até aos 3 anos de idade, desde que residentes na iniciativa, para que pelo menos um deles se possa ocupar da criança.

A disponibilidade e o trabalho voluntário dos membros estão frequentemente condicionados pela sua participação no mercado de trabalho formal. É notório em muitas ILA que as escolhas individuais relativas à eventual participação ou não no mercado de trabalho formal são condicionadas por fatores socioeconómicos, nomeadamente pelo acesso a fontes de rendimento independentes do mercado de trabalho. Se para algumas pessoas a possibilidade de ter uma vida mais frugal é uma opção, para outras é uma condição já que o acesso ao trabalho remunerado pode ser fundamental para satisfação de necessidades básicas.

Destacamos ainda que em algumas ILA o cuidado e o decrescimento são entendidos como indissociáveis, um mais centrado na dimensão relacional entre humanos e o outro na relação com a restante vida natural.

Conclusões

As iniciativas locais são animadas por horizontes utópicos distintos e a leitura das suas propostas de transformação social tem de ser feita atendendo ao contexto em que se inscrevem e à realidade que visam superar. Nas entrevistas foi bastante visível um posicionamento muito crítico face ao capitalismo e aos seus valores ligados à procura do lucro. A ação das ILA é animada por uma visão pós-capitalista e, porque segue valores distintos, enfrenta tensões permanentes. É nas brechas do sistema que a experimentação social promovida pelas ILA procura florescer. São patentes fricções entre os modelos de funcionamento interno horizontais, democráticos, centrados na resposta a necessidades e as exigências burocráticas, predominantemente homogeneizadoras, nomeadamente dos regulamentos ou de programas financiadores destinados a apoiar esse trabalho.

O facto de as ILA estarem inseridas num contexto social cujos valores predominantes são opostos aos seus obriga a negociações contínuas, gerando um processo tenso para manter a coerência interna. Um exemplo dessas tensões e negociações ocorre, por exemplo, nos espaços de restauração coletiva destas iniciativas, frequentemente abastecidas apenas por produtos de proximidade, preferencialmente de agricultura biológica, o que se pode traduzir num acréscimo de custos. Em momentos em que há dificuldade financeiras mais significativas, como ocorreu durante a pandemia COVID-19, podem ser procuradas outras estratégias, nomeadamente o recurso a produtos mais baratos, ainda que oriundos da agroindústria. No trabalho de campo foram relatadas várias tensões e conflitos entre o ideário que anima as iniciativas e a necessidade de lidarem quotidianamente com um contexto adverso. Os processos de negociação nas zonas de fronteira são difíceis porque obrigam a cedências mútuas, que podem até configurar recuos estratégicos, para garantir a própria sobrevivência dos coletivos.

Os posicionamentos face à transformação social inscrevem-se num continuum que oscila entre a mitigação dos efeitos nefastos do capitalismo, a oposição ou a superação. Estes diferentes impulsos podem convivem na mesma iniciativa, ainda que tenham racionalidades distintas, numa hibridação que faz com que as ILA possam incorporar também lógicas próprias da economia capitalista. O trabalho de campo permitiu constatar que a maioria das iniciativas que responderam ao inquérito e que quase todas as iniciativas entrevistadas assumem ter um posicionamento predominantemente anticapitalista. Porém, a sua ação inscreve-se num eixo que pode oscilar entre uma posição mais radical ou assumir algumas contemporizações, que de um ponto de vista tático permitem assegurar a sobrevivência dos processos. Porém, em algumas organizações, a contemporização pode antes traduzir-se numa adesão ao sistema, visando-se apenas resolver alguns dos seus males, num realismo pragmático que não busca transformar a sociedade e que dispensa utopias orientadas para a justiça social.

Erik Olin Wright (2019) destaca a necessidade de articulação entre estratégias intersticiais, isto é, entre experiências locais que materializam relações económicas não capitalistas e que brotam nas fissuras do sistema, com estratégias centradas na alteração da regulação, isto é, top-down. A combinação de ambas e a articulação entre o papel transformador da ILA e as pressões para a criação de políticas capazes de abrir caminho ao pós-crescimento podem desencadear um ambiente mais favorável para que estas iniciativas que hoje vivem em contra-corrente possam florescer, nomeadamente pela alteração de quadros regulamentares que as espartilham e sufocam.

Será necessário contrariar a tendência para uma atuação relativamente atomizada já que uma maior articulação entre iniciativas contribuirá para reforçar a aprendizagem entre pares e para potenciar a própria ideia de transformação social que as ILA visam alcançar.

A nossa análise foi realizada a partir do prisma do decrescimento e da perspetiva feminista do cuidado, que têm como chão comum o reconhecimento da dupla condição humana de ecodependência face à natureza e de interdependência, já que ninguém pode sobreviver em absoluta autonomia. O universo das ILA é diverso e incorpora práticas muito relevantes que podemos ligar quer ao decrescimento quer ao cuidado. Foi percetível o contributo destas noções nos processos de transformação social e a sua relevância face a preocupações que hoje são cruciais: a justiça, nomeadamente tendo em conta as categorias relativas ao género, classe e raça; a democracia e a subjugação da economia à decisão política; e a ecologia, já que ela diz respeito a desafios prementes de que faz parte a possibilidade da nossa vida na Terra, nas condições em que a conhecemos.

A perspetiva feminista do cuidado concede especial relevância à questão da sustentabilidade da vida, em condições de justiça social e a perspetiva decrescentista sublinha a necessidade de vivermos de acordo com os limites do planeta, para que a vida continue a ser possível. A presença destas duas noções nas ILA não é simétrica, pois as ideias ligadas ao decrescimento estão bastante mais enraizadas e gozam de maior reconhecimento que as ideias que associamos à perspetiva feminista do cuidado. As organizações têm frequentemente dificuldade em reconhecer e remover práticas patriarcais pois estas, por estarem naturalizadas são muito menos visíveis. Uma maior articulação entre as propostas decrescentistas e feministas pode ter um papel relevante na ampliação do potencial transformador destas ILA já que a dominação da natureza e a subalternização das mulheres partilham a mesma raiz: a tentativa de subordinar a vida aos interesses mercantis do capitalismo e à sua busca do lucro, seja pela transformação da natureza em recurso, seja pela apropriação do trabalho não pago ou mal pago das mulheres.

Uma agenda de transformação social que tenha em conta estas duas dimensões terá de contrariar a centralidade que a economia mercantil hoje detém, revalorizar a economia dita reprodutiva e promover uma redistribuição do esforço relativo à provisão de cuidados, cujo peso hoje recai sobretudo nas famílias e, dentro destas, nas mulheres. Isso comportará também uma transformação do trabalho pago, para que a ideia de colocar no centro a sustentabilidade da vida se efetive através da partilhado do esforço de cuidados pelo todo social (Ezquerra, 2018), seja na esfera doméstica, seja pela provisão pública, mercantil ou comunitária. Ao invés de procurarmos democratizar o modelo masculino de provedor universal, propomos uma outra hierarquia de valores em torno da ideia de “pessoa cuidadora universal” (Fraser, 2015).

Face à pressão e à urgência de ação que hoje os problemas ecológicos clamam, importa assegurar que a agenda feminista do cuidado não seja remetida para um plano secundário, pois “uma transformação radical da sociedade, para além do paradigma do crescimento, só pode ser alcançada abordando o crescimento capitalista e suas profundas raízes patriarcais em conjunto” (Saave-Harnack et al., 2019, p. 30).

Notas

Por decisão pessoal, a autora do texto escreve segundo o novo acordo ortográfico.

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1Recorremos à expressão “des-familiarização” e não “des-domesticação”, ainda que esta última seja frequentemente utilizada na literatura sobre esta problemática, para evitar o risco dos equívocos que uma leitura como “docilização” ou “adestramento” comportariam.

Recebido: 15 de Abril de 2022; Aceito: 13 de Outubro de 2022

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