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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

EDITORIAL

Do lado de fora do :Estúdio

Outside Estúdio

 

João Paulo Queiroz*

*Editor. Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Portugal.

Endereço para correspondência

 

 

Editorial

 

 

Editorial

 

 

Visto de longe, um estúdio é uma casa pouco útil. A arte que nele se cria não alimenta, não veste, não dá segurança ou saúde, não paga as contas.

Mas a casa ama. O amor, no estúdio, é um amor criativo, de outro mundo: a arte gosta, incondicionalmente, de todos os seres humanos. Aqueles que a veem e aqueles que ainda não nasceram, e um dia a poderão ver. Os de hoje e os de amanhã.

Fala-se, assim, de uma casa feliz, de um lugar destinado ao futuro, destinado à possibilidade, ao que se pode fazer.

Visto de longe, estamos do lado de fora do Estúdio, no meio de paisagens ora densas e luxuriantes, ora lunares e plenas de sentidos. Olhamos para o Estúdio. Os artistas presentes olharam para nós, para territórios distantes, para grossas florestas, para imensas cidades. Ficaram à porta de casa, anotaram os aborrecimentos, acrescentaram-lhe poesia, inquietude, desassossego. Testaram materiais estranhos: borracha, madeiras velhas, argilas, latex, bonecos articulados, … e ensaiaram esboços, diários, coreografias, raps, graffiti, performances, ações diretas, fotografias, e o mais que encontramos nas páginas que se seguem.

Estar do lado de fora do estúdio é estar do lado de fora do quadro. Esse lugar, inventado há muito pelos pioneiros da perspetiva (em 1305, na capela Scrovegni, Giotto) permitiu organizar objetos vistos de fora. Assim, visto de fora, descobre-se um homem, só, na paisagem. A paisagem para ver, ao longe.

Esta organização, tanto da ordem da taxinomia como da mathesis (Foucault, 1998: 125), enerva o descentramento humano a que se assistiu ao longo destes séculos, na mudança da episteme, na origem da sistematização das ciências humanas: o mapa de Angelo Portulano, de 1296, e os outros "mapas" das anatomias de Andreia Vesálio, De Humanis Corporis Fabrica, 1543, ou ainda os espécimes do Florilegium amplissimum et selectissimum de Emanuel Sweerts (1631-41), são afinal, um uso organizador do observador e do seu novo local utópico, o lado de fora. Do lado de fora também se podem observar as revoluções dos corpos celestes, e localizar o observador fora do centro das coisas (De revolutionibus orbium coelestium, de Copérnico, 1543). E organiza-se: o Systema Naturae, de Carolus Linaeus (1735) indica onde os corpos estão ou onde irão estar, e como se podem relacionar segundo novos métodos.

A Modernidade quer ver o que está do lado de lá, e assim organizá-lo segundo o primado do observador. Ou, de outra forma, a Modernidade organiza o que está do "lado de fora" segundo a dialética da separação hegeliana sujeito / objeto. Se alargarmos o primado do observador, este observador organizador, às discussões sobre ideologia de Althusser (1976), então poderemos dizer que é a própria categoria do Sujeito que organiza a sua localização, caracterizando-a a priori como a de um observador.

Foucault apontou o riso, no seu prefácio de As palavras e as coisas, de 1966 (1998), como um ponto de partida. O seu próprio riso, ao ler, de Jorge Luís Borges, "O idioma analítico de John Wilkins," do livro Outras inquisições, de 1952. Aí Borges refere "uma certa enciclopédia chinesa" segundo a qual

os animais se dividem em (a) pertencentes ao imperador, (b) embalsamados, (c) amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães vadios, (h) incluídos nesta classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) incontáveis, (k) desenhados com um pincel finíssimo de pêlo de camelo, (l) etc…, (m) que acabam de quebrar o jarrão, (n) que ao longe parecem moscas (Borges, 1999: 83).

Está-se perante um riso que nos diz a presença, e também se está perante a procura louca do sistema que nos diz da ausência:

um pensamento sem espaço, a palavras e a categorias sem tom nem som, mas que no fundo repousam num espaço solene, sobrecarregado de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais estranhos… (Foucault, 1998: 50-1).

Este riso de Foucault fá-lo interrogar o autorretrato do homem, aquele que se desenha nas ciências humanas. Fruto da observação das simpatias, similitudes, analogias, das marcas e seus signos, das articulações, do nomeável e do contável. Um retrato do homem por si mesmo, do idêntico em representação descentrada, um frágil esboço na areia, uma "invenção recente." Para mostrar quão recente é este retrato, é convocado, a seguir ao começo do riso, Velázquez, e Las Meninas, de 1656).

Trata-se de olhar o mesmo, através da invenção de disposições espaciais, novos topoi.

No estúdio, saindo para o exterior pode-se ver o próprio estúdio. Um estúdio como o de Velázquez, de onde o pintor saiu para nos mostrar o seu interior, e onde ele pinta, ele próprio.

Neste Estúdio saímos todos para o exterior e mostramos os estúdios dos outros criadores. Este olhar mostra um rosto humano, fala dos homens, das suas diferenças, das suas identidades, riquezas e fraquezas.

Sair do Estúdio é repetir uma passada começada no início da modernidade e que se desenrola, atenta à crítica pós estrutural. Olhar de fora pode ser ofuscante, se o olhar de fora for ideológico, ilusório. Se o olhar de fora for conformista no imaginar de interditos, haréns e odaliscas, escravas e eunucos, tapeçarias e especiarias. A armadilha do orientalismo, da deslocação fetichista, do eurocentrismo.

Neste estúdio sai-se lá para fora e vê-se o estúdio de longe: é um lugar de criação. É um privilégio poder ver o estúdio de longe, de sítios apartados. Com esse fulgor desejamos conhecermo-nos melhor, com uma nova vontade, com ganas.

Visto de longe o estúdio chama: está frio do lado de fora, e lá dentro ama-se.

 

Referências

Althusser, Louis (1976) Idéologie et appareils idéologiques d'État. (Notes pour une recherche) . Paris:: Les Éditions sociales.         [ Links ]

Borges, Jorge Luís (1999) O idioma analítico de John Wilkins. In: Borges, Jorge Luis. Obras completas II. Lisboa: Círculo de leitores, p. 80-4. ISBN 972-42-1897-x         [ Links ]

Foucault, Michel (1998) As palavras e as coisas. Lisboa: Edições 70. ISBN 972-44-0531-1         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: joao.queiroz@fba.ul.pt (João Paulo Queiroz).

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