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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

PROXIMIDADE

Um Metaespetáculo: o corpo em A Pesar de Todo

A metaspectacle: the body in the short film 'A Pesar de Todo' (Walter Tournier)

 

Eliane Muniz Gordeeff*

*Brasil, designer, animadora e diretora de arte. Animadora web na Fundação CECIERJ, e sócia-diretora da Quadro Vermelho Produções. Mestre em Artes Visuais – UFRJ. Bacharelado em Desenho Industrial, habilitação Programação Visual – UFRJ. Professora da Universidade Veiga de Almeida, do curso de Design Gráfico, Ilustração e Animação Digital, e instrutora do SENAI, no Curso Técnico de Multimídia

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar como uma obra de animação nos fornece imagens de profundo apelo emocional, através de sua materialidade. A obra em questão é o curta-metragem A Pesar de Todo (2003), do animador de stop motion uruguaio Walter Tournier, que em certos momentos propicia a semelhança de um espetáculo teatral, efeito produzido por uma falta de diegetização – onde o boneco "vive" no mesmo plano da realidade de seu animador.É um protesto contra a guerra.

Palavras chave: cinema, animação, stop motion, corporalidade, teatro.

 

 

ABSTRACT
The objective of this paper is to present how a work of animation provides us with images of deep emotional appeal through its materiality. The work in question is the short film In Spite of Everything (2003), by stop-motion animator Uruguayan Walter Tournier, who at certain moments gives the appearance of a theatrical performance, effect produced by the use of elements out of diegesis – where the puppet "lives" in the same plane of reality its animator. It is a protest against war.

Keywords: film, animation, stop motion, corporeality, theater.

 

 

Introdução

Walter Tournier é um consagrado animador de Stop motion com bonecos. Nascido no Uruguai em 1944, estudou Arquitetura mas apaixonou-se pelo Cinema. No período de 1969 a 1974 integrou a Cinemateca del Tercer Mundo (C3M), fundando, doze anos depois, com Mario Jacob, a produtora Imagenes, sendo responsável pelo departamento de animação.Em 1994, forma seu próprio estúdio, o Tournier Animaciones (Imagenes, 1986). Entre suas produções, destacam-se o Natal Caribenho (2001), premiado no Festival del Audiovisual para la Niñez e la Adolescencia e Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, ambos em Havana / Cuba; e a série televisiva Direitos das Crianças (2000-2005), produzida para o Instituto Interamericano da Criança (OEA). Atualmente finaliza o seu primeiro longa-metragem em animação, Selkirk, El Verdadero Robson Crusoe, que conta a história inspiração para o romance Robson Crusoé (TournierAnimaciones, 1994).

O curta-metragem A pesar de Todo, foco deste artigo, foi produzido em 2003, e premiado entre outros, no Festival Internacional de Cinema de Valdívia (Chile), no Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano de Havana (Cuba) e na Jornada Internacional de Cinema da Bahia (Brasil).O tema é o destaque desta obra. Politicamente consciente, as imagens do ataque norte-americano à Bagdá (a Guerra do Golfo), em 2003, chocaram Tournier. E assim como outras animações (do Leste Europeu), A Pesar de Todo é um protesto. E apesar de ser uma obra cinematográfica, em certos momentos, guarda semelhança com um espetáculo teatral e apresenta uma falta de diegetização (Aumont, 2008: 120), que surpreende o público.

 

1. A narrativa teatral de A Pesar de Todo

A animação inicia-se em um ambiente aparentemente fechado, com uma pequena luz focal, que permite visualizar pedaços de madeira e alvenaria sobrepostos ao redor de um emaranhado metálico ao centro, com uma cabeça de boneco e duas pequenas mãos.Aos poucos essaestrutura se move. As mãos, a cabeça, as pernas, até levantar-se –mas sempre com um ranger metálico.

O boneco repara que um dos pés está preso à mesa – artifício que o mantém num determinado ponto, no processo de animação. Puxa a perna com as mãos, desprendendo o pé, mas perde um pouco o equilíbrio assustando-se com o som de uma explosão – surge um clarão ao fundo, que destaca os contornos do entulho.

O boneco então olha a si mesmo. Mexe os braços, apalpa, tomando consciência de sua existência. Ele cruza os braços e apoia a cabeça com a mão, pensando em algo (Figura 1). Olha para o chão e se alegra: é uma latinha de óleo que ele pega e bebe. Testa seus movimentos como um esportista,… rebola… sem ruídos. A música é alegre, mas ele logo perde o ânimo ao olhar ao redor, acompanhado de um solitário e contínuo som de goteira. Suspira e senta-se, pensando no que fazer. Então, vira-se e vê alguns objetos. Pega um par de tênis, uma mala e uma caixa de primeiros socorros. Ainda vê alguns papéis. São desenhos. Um deles é de uma boneca, que ele abraça com carinho.E tem uma ideia: abre a mala onde guarda as coisas que achou.

 

 

Ao terminar, inicia-se um vento que desloca algo, ao fundo, deixando a luz de entrar. Esta chama a atenção do personagem. Mostra-se o ambiente externo (Figura 2) – um campo de guerra, ao som de explosões e de metralhadoras. Em zoom out, a câmera passa a focar o boneco desolado, ao som de um solo de piano. Mas ao olhar para frente, este assusta-se levando as mãos ao rosto, pendendo o corpo para trás em desespero (Figura 3). Há uma mão masculina, humana, inerte, com o braço coberto pelos escombros.

 

 

 

Sua consternação é evidente – pela sua expressão facial e linguagem corporal. Cabisbaixo, senta-se sobre a mala e coloca a sua mão sobre a do animador, suspirando. Pega uma estrutura metálica (um boneco inacabado) que está sobre a mesa, largando-a em seguida e voltando à sua tristeza. Ao som do piano, Tournier encerra sua obra-protesto.

 

2. O metaespetáculo da corporalidade

O admirável desta obra é a delicadeza com que aborda um assunto tão violento, sem perder a dramaticidade – através da representação visual, da aplicação de códigos cinematográficos, e sem diálogos. Para tanto, o animador utiliza, pincipalmente, a imagem do corpus material dos objetos. Assim, os destroços, os objetos, as engrenagenssão identificadas por suas significações primeiras – objetos diversos – mas também pela disposição, pelas sequencias das cenas, dos movimentos, dossons, cria-se a narrativa. Como explica Vernet (Aumont, 2008: 93), as relações percebidas têm influência no imaginário,"de uma evolução ficcional organizada por uma instância narrativa."

A cena do clímax não é apenas a morte do animador, mas é a história que não será contada, os sonhos e as esperanças – dele e do boneco – destruídos. E como afirma Pavis (2011: 195), "não se pode ler um texto dramático sem imaginar uma situação concreta, da qual depende das condições psicológicas do momento, […]."Era inevitável um pensamento sobre a população de Bagdá …"

Apesar de não ser um espetáculo teatral, A Pesar de Todo guarda similaridades com este: pelos objetos em miniatura (como no Teatro de Bonecos) e pelo enfoque dado pela câmera (tudo se passa em um único ambiente, como no teatro). A iluminação destaca os objetos – é efeito especial (como as explosões) e conta a história (é a luz que esclarece o ocorrido).Para Pavis (2011: 58), seria o vetor 'secionante' da encenação, pois provoca 'uma ruptura no ritmo narrativo'. E como no teatro, "as emoções são sempre manifestadas graças a uma retórica do corpo e dos gestos nos quais a expressão emocional é sistematizada, ou mesmo codificada" (Pavis, 2011, p.50) – como no estado pensativo do boneco. As emoções não precisam ser reais ao ator, nem ao boneco, mas "devem ser antes de tudo visíveis, legíveis" (Pavis, 2011, p.50).

A corporalidade é fundamental nesta animação. Os corpos do boneco e do animador demonstram a beleza da vida e a tristeza da morte – no contraste entre a anima do boneco, e a imobilidade da mão humana. Há uma ironia, uma inversão de qualidades entre animador e animado. Tournier investe o boneco com as características da alma descritas por Aristóteles (2006) e que destróem qualquer dúvida quanto à vida existente nele: o movimento, o pensar, o entender e o perceber.

 

Conclusão

Na animação, o corpo do boneco não é apenasum objeto, mas o corpo de algo vivo. Ele não representa um personagem. Eleé o personagem. E o seu sofrimento cria uma 'identificação simpática' com o espectador, pois "se apresenta sob o seu aspecto humano e acessível, o que provoca uma identificação por compaixão e sentimentalidade" (Pavis, 2011: 219).

A Pesar de Todo carrega um certo grau metalinguístico já que Tournier criou uma animaçãoque se apropria de seus elementos de produção, inclusive os não diegéticos (a mão do animador, os tijolos das paredes), apresentando uma diegese, acima da que estava sendo contada pelo animador antes de morrer – é como uma suprarrealidade. E esse atrito imagético, entre o boneco vivo e a mão humana, estática, cria um certo desconforto para uma obra cinematográfica (alheia aos aparatos técnicos de sua produção), produzido pela falta de diegetização. Este momento não é somente o clímax do filme mas, utilizando uma expressão de Barthes (1984), é o punctun da narrativa visual. Quem a assiste é levado para fora da história, é levado a pensar no sofrimento de uma guerra, nas vidas que se perdem.

Os tchecos Jirí Trnka, nos anos 60, e Jan Svankmeyer, nos anos 80, foram mestres em utilizar a animação como protesto contra a repressão política. A Mão (1965) e Escuridão, Luz, Escuridão (1989) são obras-primas em simbolismo e força visual. Tournier segue a mesma linha: a da autoridade criativa, transformando simples objetos em fábulas filosóficas.

 

Referências

A Mão (1989). Direção: JiríTrnka. Tchecoslováquia: Kratky Film Praha. [Consult. 2011-15-11]. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=_qzvCZojnWQ         [ Links ]

A Pesar de Todo (2003) [Registo vídeo]. Direção: Walter Tournier. Uruguai: TournierAnimaciones. 1 Disco (DVD, gentileza do Festival Internacional de Stop motion doBrasil); 1 fita (VHS, gentileza do Festival Anima Mundi).         [ Links ]

Aristóteles (2006) De anima. Cap. I. São Paulo: Editora 34. ISBN: 85-7326-351-2.         [ Links ]

Barthes, Roland (1984) A câmera clara. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. ISBN: 85-209-0480-7.         [ Links ]

Escuridão, Luz, Escuridão (1989). Direção: Jan Svankmeyer. Tchecoslováquia: Kratky Film Studio J. Trnky.[Consult. 2011-15-11]. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=6IEUAyFV4Vc         [ Links ]

Imagenes (1986) Walter Tournier – Site uruguaio da produtora e difusora de audiovisual.[Consult. 2011-20-12]. Disponível em http://imagenes.org/CVs/WT.htm.         [ Links ]

Pavis, Patrice (2011) A análise dos espetáculos. São Paulo: Editora Perspectiva. ISBN: 978-85-273-0396-5.         [ Links ]

Tournier Animaciones (1994). Site da produtora de animações.[Consult. 2011-20-12]. Disponível em http://www.tournieranimation.com/         [ Links ]

Vernet, Marc (2008) Cinema e narração. In: Aumont, Jacques. A estética do filme. São Paulo: Papirus Editora. ISBN: 85-308-0349-3.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: gordeeff@quadrovermelho.com.br (Eliane Gordeeff).

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