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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

TROPICALTERIDADE

Raid das Moças e a Cultura da depressão: performance e humor subversivo ou quando Foucalt visita as chanchadas da Atlântida

Raid das Moças: performance and subversive humor or when Foucault visits the popular movies of Atlantis

 

Djalma Thurler* & Marilda Santanna**

*Djalma Thurler: Brasil, diretor teatral, professor no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos, Universidade Federal da Bahia (IHAC – UFBA), e no programa de pós-graduação multidisciplinar em Cultura e Sociedade, UFBA. Doutorado: Letras, Universidade Federal Fluminense (UFF, Rio de Janeiro). Mestrado: Ciência da Arte (UFF); Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-Rio).

**Marilda Santanna: Brasil, cantora e performer. Professora no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (IHAC – UFBA) e no programa Multisciplinar em Cultura e Sociedade da UFBA. Doutorado em Ciências Sociais e Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em História, UFBA.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O Raid das Moças é um grupo performático vocal feminino que há 20 anos vem se apresentando em várias cidades no Brasil. Nosso resumo busca mostrar, com base no último espetáculo de seu repertório, "Cultura da depressão", como um trabalho aparentemente ingênuo e inofensivo pode estar carregado de propostas críticas e conceituais que legitimam e autorizam o humor e a performance como modus faciendi da arte contemporânea.

Palavras chave: Raid das moças; cultura da depressão; estética camp; paródia intertextual

 

 

ABSTRACT:
The Girls' Raid is a female vocal performance group that 20 years ago has served in various cities in Brazil. Our summary seeks to show, based on the last show of their repertoire, "Culture of depression" as a job seemingly innocent and harmless can be loaded with critical and conceptual proposals that legitimize and authorize the mood and performance as modus faciendi of contemporary art.

Keywords: Raid das Moças; Culture of depression;camp aesthetic; intertextual parody

 

 

Introdução

Durante a ditadura militar no Brasil, a resistência artística não se deu exclusivamente através do engajamento de esquerda. Houve uma tendência cultural, detectada por Renato Ortiz (Ortiz, 1988) no ensaio "O popular e o nacional / Do popular nacional ao internacional popular", que o autor nomeia de "Cultura de Depressão". Diz o autor que:

Cultura de Depressão com variações no irracionalismo, no misticismo, no escapismo, e sob o signo da ameaça, eis os traços essenciais que acompanham alguns setores da produção cultural brasileira a partir de 1969. […] Declara-se espúria ou careta a esfera do político e, através de um argumento equivocado do perigo da recuperação via indústria cultural ou pelo establishment, faz-se a profissão de fé do silêncio teórico, isto é, a recusa apologética do discurso conceptualizado sobre a produção artística, sobretudo a musical. Isto tudo mesclado a um culto modernoso do nonsense, a um repúdio à pontilhação racional do discurso. Portanto, ênfase no sujeito "alienado", que busca na droga, no misticismo ou na psicanálise, a forma de expressar sua individualidade; desarticulação do discurso, reificação da linguagem, o que equivaleria a uma desvalorização do conhecimento racional; recusa em se encarar o elemento político (Ortiz,1988: 158).

O presente trabalho apresentará um fenômeno cênico que, advindo da contracultura dos anos setenta viria a ser, na década de noventa e depois, alvo de fervorosas discussões e responsável por uma renovação da platéia brasileira. Híbrido por natureza e essência, o Raid das Moças em sua proposta estética apresenta em cena o pastiche, o nonsense costurado por canções consideradas brega e/ou cafona da música popular brasileira destinada às consideradas camadas populares. Com uma sonoridade que apresenta síntese da música eletrônica com baladas de cunho romântico cujos conteúdos refletem desilusões amorosas e a chamada "dor de cotovelo" alicerçada por interpretações exageradas e melodramáticas, coreografias retiradas de filmes das sessões da tarde e de dançarinas de programas de auditório, respaldada por um figurino que passeia pelo kitsch, pelos cabarés e boites gays; o grupo se debruça neste espetáculo a mapear a partir de uma linha de tempo histórico com inicio na década de sessenta até a atualidade a re/apresentar cada bloco como pequenos esquetes que não privilegia apenas o lado musical, mas traz ainda um forte apelo de teatralidade e humor que resulta num espetáculo cênico lúdico e interativo.

 

1. Paródia e Besteirol

Teatro Besteirol designa montagens de humor não muito exigentes que buscam antes de tudo cumplicidade com a platéia por debochar de temas cotidianos, contando com atores que não hesitam em assumir a paródia até o mais infame cabotinismo. Se a isso se incorporar temas escatológicos e uma estética voluntariamente de mal gosto e mal-acabada, estamos no caminho certo para esse começo de conversa.

Linda Hutcheon, em Uma teoria da paródia (Hutcheon, 1986) assim define a paródia: 'A paródia é pois, repetição, mas repetição que inclui diferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo' (Hutcheon, 1986: 54). Versões irônicas de transcontextualização e inversão são os seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso a homenagem reverencial.

Flávio Marinho comenta que o espectador para usufruir do humor do espetáculo necessita de uma certa formação cultural:

O humor do espetáculo, no entanto requer uma certa informação cultural do espectador e, especialmente, algum conhecimento (ou vivência) teatral para melhor curtí-lo. De outra forma, corre o risco de perder grande parte dos achados cômicos. Seja como for, trata-se de espetáculo altamente recomendável que, devido ao seu caráter meio marginal, talvez estivesse melhor abrigado – e com maiores chances de sucesso em sessões de meia-noite do Cândido Mendes do que no horário vespertino do Teatro dos Quatro (Marinho, 1983: Jornal 'O Globo').

Essa idéia esboçada por ele – a de que o espectador da peça precisa de uma certa formação teatral para melhor usufruí-la – vem ao encontro do que Affonso Romano de Sant'Anna diz a respeito da assimilação da paródia, paráfrase e estilização:

Os conceitos de paródia, paráfrase e estilização são relativos ao leitor. Isto é: depende do receptor […] Isto equivale a dizer, em outros termos: estilização, paráfrase e paródia (e a apropriação, que veremos proximamente) são recursos percebidos por um leitor mais informado. É preciso um repertório ou memória cultural e literária para decodificar os textos superpostos (Sant'Anna, 2006: 26).

Citamos, à guisa de exemplo, o texto que a atriz Kátia Leal fala entre a primeira parte do primeiro bloco e a segunda:

Nesse verão nós decidimos reviver e recontar uma história de sucesso, decidimos ficar em Salvador, na Varanda do SESI tomando nossos bons drink (sic) nesse verão maravilhoso da Bahia e dividindo com vocês esses momentos nossos. E teve boatos que nós ainda estávamos na pior, se isso é tá na pior, poonrra! O que é dizer estar bem, né? (Thürler, 2011: original em cópia)

Esse texto, responsável em si, por boa parte do riso do espetáculo só faz sentido para quem conhece o famoso vídeo da travesti brasileira radicada na Itália, Luiza Marilac (Figura 1).

 

 

Outro momento importante é o que a atriz Kátia Leal assume o papel da Psicopedagoga especialista em linguagem de libras e traduz a música Fico assim sem você , de Claudinho e Buchecha. Guardando algumas mudanças, inserções e releituras, o que fazemos é um processo intertextual e tropicalista como a versão que o ator Raul Franco fez para a mesma música em seu espetáculo solo "Saída de emergência", que ficou em cartaz no teatro Vanucci, no Rio de Janeiro (Figura 2).

 

 

Ainda mais radical é a cena da diversidade, em que a cantora e atriz Marilda Santanna interpreta, invocando a musa Nara Leão, uma típica Bossa Nova. Até aí, nada de muito especial se não fosse esse número uma apropriação da versão escatológica de Mc Grizante para o clássico pop "I Will Survive" de Gloria Gaynor (Figura 3).

 

 

 

2. A Estética Camp e o esteticismo escandaloso

Foi comum durante os dias de espetáculo e frente à divulgação maciça na imprensa brasileira a dúvida sobre a identidade sexual das performers Claudia Sisan, Kátia Leal e Marilda Santanna (Figura 4. A provocação intencional teve origem através do conceito de camp, que para nós, pode ser entendido a partir das palavras Halperin (Halperin, 2007), como uma forma de resistência cultural que repousa sobre a consciência compartilhada de estar situado dentro de um poderoso sistema de significações sociais e sexuais. O camp, segundo o autor, resiste ao poder desse sistema de dentro dele por meio da paródia, do exagero, da amplificação, da teatralização e da explicitação de códigos tácitos de conduta – códigos cuja autoridade provém de seu privilégio de nunca ser enunciado explicitamente e, por conseguinte, de sua imunidade à crítica.

 

 

Contrastando com outras posturas, a estética camp equivale, de alguma forma, à estética gay, o aspecto camp mais marcante no espetáculo Cultura da Depressão, aliás, é importante lembrar que, muitas vezes, as representações estereotipadas com personagens afeminados e com uma estética camp, que, de acordo com Sontag (1987), pode ser caracterizada pela "predileção pelo inatural, pelo artifício e pelo exagero" (1987: 318) ou como "um certo tipo de esteticismo […] uma maneira de ver o mundo como fenômeno estético" (1987: 327).

 

Conclusão

O camp é arte que se propõe a si mesmo como séria, mas que exige, para sua recepção, uma atitude de valorização de seu artifício e exagero, sua incorporação nostálgica e intelectual do mau gosto. "Cultura da depressão" deve ser vista a partir das referências culturais a gêneros considerados inferiores na Arte que nos permite visualizar o tema da memória, a cultura de massa e uma postura kitsch frente aos objetos sobrecarregados mediante um discurso sentimental, só assim foi possível que o Raid das moças inserisse uma marca pessoal na experimentação autoral com modelos populares.

 

Referências

Franco, Raul (2008) 'Fico Assim Sem Você' interpretado por Raul Franco. Gravação de mímica [Consult. 2011-12-15] Acessível http://www.youtube.com/watch?v=YqFygccDgRg         [ Links ]

Halperin, David (2007). San Foucault. Para uma hagiografia gay. Buenos Aires, Ediciones literales.         [ Links ]

Hutcheon, Linda (1985). Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições 70.         [ Links ]

Marilac, Luiza (s.d.) Se isso é tá na pior… porrãn! q q quer dizer tá bem né? Vídeo [Consult. 2011-12-15] Acessível em http://www.youtube.com/verify_age?next_url=/watch%3Fv%3D9Gb3TWe6IcE         [ Links ]

Marinho, Flávio (1983). Quem tem medo de um jogo teatral muito divertido? Jornal O Globo. Rio de Janeiro.         [ Links ]

Mc Grizante, (s.d.) Vai Wilson Vai. Canção [Consult. 2011-12-15] Acessível em http://www.cifras.com.br/cifra/mc-grizante/vai-wilson-vai         [ Links ]

Ortiz, Renato (1988); "O popular e o nacional" – "Do popular nacional ao internacional popular" In: A moderna tradição brasileira, São Paulo, Brasiliense.         [ Links ]

Sant'anna, Affonso Romano de (2006) Paródia, Paráfrase & Cia. São Paulo: Editora Ática, 7ª Edição.         [ Links ]

Sontag, Susan (1987). "Notas sobre o camp". In: Contra a interpretação. Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Thürler, Djalma (2011). Cultura da Depressão. Salvador: original, 2011.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: djalmathurler@uol.com.br (Djalma Thurler).

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