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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

HABITAR

"Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência": Grupo Poro

Poro Group: "any similarity with real facts are mere coincidence"

 

Joana Aparecida da Silveira do Amarante*

*Brasil, artista visual. Licenciatura em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Atualmente é mestranda na linha de História e Teoria em Artes Visuais do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UDESC (PPGAV/UDESC).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Grupo Poro, formado por Brígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!, através de suas propostas buscam apontar as sutilezas do urbano e tornar visíveis aspectos que a sociedade contemporânea escondeu ou esqueceu. Poro possibilita uma nova vivência, um novo olhar para a cidade. Um olhar com calma, um olhar nos detalhes. Torná-la sua a partir de imagens absurdas. Construir uma memória, uma narrativa à parte do real e, assim, torná-la real.

Palavras chave: Poro, cidade, intervenção urbana, memória.

 

 

ABSTRACT
Poro group is composed by Brígida Campbell and Marcelo Terça-Nada! and aims to point out the subtleties of the urban environment through their proposals, unveiling hidden spects that were long forgotten by the contemporary society. Poro allows a new experience, a new gaze into the city. A slow gaze, a gaze into the details. The city is assimilated through absurd images. Memories are built, fictional narratives made real by their surrealness.

Keywords: Poro, city, urban intervention, memory.

 

 

Introdução

O grupo Poro é formado pela dupla de artistasBrígida Campbell e Marcelo Terça-Nada!,que atuam desde 2002 com trabalhos de panfletagem, intervenções urbanas e cartazes, nos quais procuram apontar as sutilezas do urbano tornando, assim, visíveis aspectos que a sociedade contemporânea escondeu ou esqueceu. Com suas ações, a dupla busca uma reflexão acerca da cidade, dos problemas do excesso de imagem, da banalização da comunicação, do ritmo desenfreado das multidões de pedestres.

Através de suas ações, eles propõem que os transeuntes estabeleçam novas relações com o espaço público, que observem, através dos pequenos desvios, das pequenas inserções na paisagem, vivenciando-a e recriando-a constantemente.

 

Efemeridade compartilhada

Com propostas simples, Poro dilui a autoriatornando-a compartilhada – os artistas acreditam e sempre incentivam a participação espontânea de outras pessoas para realizarem suas ações em outros contextos –, o grupo passa, então, a ser formado por muitos outrosna medida em que os trabalhos exijam maior ou menor participação (algumas ações podem ser feitas de forma solitária). Assim como suas propostas de ocupação da paisagem são efêmeras, o grupo aumenta e dilui-se com o passar do tempo. Segundo eles,

Queremos gerar espaço de encantamento, suspensão e desvio. Fazer com que o sutil, o efêmero, apareça em gotas na cidade acelerada, que é cada vez mais levada a uma verticalização árida, ao concreto e ao asfalto, em suas pistas duplicadas e sem árvores (temos certeza de que a cidade não precisa ser assim) (Campbell; Terça-Nada!, 2011: 7)

Com essa possibilidade paraparticipação de outras pessoas, as propostas de Poro são sempre re-significadas, assim como é a memória, – móvel e dinâmica (Bergson, 2006) – são suas ações nos espaços urbanos pensadas para durar 1 hora, algumas semanas, alguns meses, mas sempre com o intuito de provocar os pedestres desavisados e torná-los co-autores não intencionais.

 

Um "respiro" ao olhar

Através de suas intervenções, a dupla procura uma relação com a paisagem urbana através de ações efêmeras. Partindo dos conceitos trabalhados por Michel de Certeau (2008),o grupo propõea transformação do lugar, que possui uma ordem pré-estabelecida e estática, em espaço, que é móvel; segundo o autor, é o lugar praticado pelos transeuntes 'ordinários' através de uma vivência, que pode ser tanto suscitada por uma memória pessoal diante desse novo espaço, como por uma memória do próprio lugar que até então estava esquecida. É a possibilidade do invisível tornar-se visível e significativo.

Suas ações são como retratos do que foi, ou do que deveria ser a paisagem urbana em algum momento do passado real ou do passado inventado a partir das memórias, lembranças passadas, das percepções presentes que se mesclam.

Os trabalhos da dupla incluem frases indicativas, panfletos e lambes-lambes que procuram quebrar a rotina da cidade.Entre essas ações podemos citar 'Perca tempo,'realizada em 2010, na cidade de Belo Horizonte, que consistia em abrir faixas nos cruzamentos, enquanto o sinal de trânsito estivesse fechado, e distribuir panfletos. Como parte da ação, existia também uma banca, onde as pessoas curiosas quanto àperformance poderiam receber informações de como perder tempo através dos panfletos: '10 maneiras de perder tempo' e '+10 maneiras incríveis de perder tempo.'Algumas maneiras sugeridas para perder tempo eram: acompanhar o caminho das formigas; escutar música; desenhar uma laranja; procurar desenhos em nuvens; fazer listas de coisas improváveis; dormir de tarde; observar o movimento das folhas nas árvores.

Suas propostasconsistem em instruções de ações bem simples, mas que suspendem o pedestre 'ordinário,' por exemplo, quando se depara com a frase: 'Assista sua máquina de lavar como se fosse um vídeo' (Figura 1), em vez de uma propaganda política ou de qualquer outra coisa a que está acostumado.

 

 

A paisagem urbana está cheia de simulacros, ou seja, está com excesso de imagens vazias de significação. Os transeuntes não conseguem mais observar atentamente a paisagem que se modifica constantemente. O que existe é um movimento desordenado das pessoas, um movimento de uma massa informe que nem sequer mais sabe onde vive ou consegue efetivamente vivenciar/experimentar a cidade. O grupo Poro tenta resgatar essa memória dos lugares, torná-los vistos e vivenciados, torná-los espaços.

 

A paisagem inventada

Simon Schama nos coloca que,'o poder da arte é o poder da surpresa perturbadora' (Schama, 2010: 11). Poro busca essa 'surpresa perturbadora' nos distraídos, nos 'pedestres ordinários' que de repente se deparam com imagens, objetos estranhos no meio do caminho e que fazem com que as pessoas pensem acerca disso,se perguntem se aquilo é possível ou não, se é uma ilusão ou é real. São ações que procuram confundir-se com o real, mas ao mesmo tempogritam 'não somos verdadeiras,' 'não acreditem em nós.'

A dupla convoca o espectador/pedestre passivo a vivenciar a cidade de outras formas ou, simplesmente, observá-la com outros olhos, dando a ele seu tempo, pois o olhar, na contemporaneidade, não possui mais tempo para olhar a cidade.

Através de pequenas inserções de imagens ou objetos dentro da paisagem, que se transformam em puctunspara o observador atento, o grupo permite que o detalhe, o insignificante, possa nos surpreender, dando-nos assim, a visão do todo. No detalhe podemos ter a paisagem e sua memóriacomo um todo, apenas através de suas ações simples que enganam nosso olhar.

E as ações que enganam nosso olhar são: 'Azulejos de papel' (Figura 2), lambe-lambes no formato de azulejos reais com 15x15 cm instalados em fachadas de casas abandonadas, muros caindo, calçadas, que passam a sofrer a ação do tempo, assim como a superfície na qual essas imagens foram instaladas.

 

 

Assim como os azulejos de papel, quese camuflam na paisagem urbana, confundindo a história real com uma história inventada, são as 'Folhas de ouro' (Figura 3), compostas por folhas secas pintadas de dourado e colocadas novamente nas árvores.

 

 

Poro quer que acreditemos que esses simples objetos, lambe-lambes colados nas paredes, tornaram-se reais e verdadeiros, que fazem parte da paisagem urbana, como se sempre estivessem ali.

Azulejos que se confundem com os reais, falsos azulejos de papel, que irão se desgastar, descolar, rasgar, enganar o olhar daquele transeunte que acha que já viu tudo e que não consegue mais diferenciar nenhuma imagem por estar com o olhar sem tempo. Mas aquele que flana pela cidade, que perde tempo olhando o desgaste do muro, a movimentação das folhas das árvores, percebe que há algo errado. Mesmo que se engane por um curto período, o crime já foi cometido e não há mais volta.Agora ele é obrigado a parar e prestar atenção a sua volta, a pensar, seu caminho foi perturbado e agora ele precisa perder tempo para poder continuar.

 

Ilusões próximas ao real

Poro apenas propõe, cabendo a nós inventar novas paisagens e memórias, que serão compartilhadas com outras através de detalhes imperceptíveis. Somente um flâneur descuidado perceberá essa incongruência do que é ou não verdade, e no seu descuido perceberá a ironia da paisagem.

A dupla possibilita uma nova vivência, um novo olhar para a cidade. Um olhar com calma, um olhar nos detalhes. Torná-la 'caseira' de forma lenta. Torná-la sua a partir de imagens absurdas, construindo uma memória, uma narrativa à parte do real e, assim, tornando-a real. Como Italo Calvino coloca no seu livro As cidades invisíveis:

Eu também imaginei um modelo de cidade do qual extraio todas as outras – respondeu Marco – É uma cidade feita só de exceções, impedimentos, contradições, incongruências, contra-sensos. Se uma cidade assim é o que há de mais improvável, diminuindo o número dos elementos anormais aumenta a probabilidade de que a cidade realmente exista. Portanto, basta subtrair as exceções ao meu modelo e em qualquer direção que eu vá sempre me encontrarei diante de uma cidade que, apesar de sempre por causa das exceções, existe. Mas não posso conduzir a minha operação além de um certo limite: obteria cidades verossímeis demais para serem verdadeiras. (Calvino, 2009: 67)

E Poro, em mais uma ação em forma de cartaz nos coloca: 'Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.'

 

Referências

Bergson, Henri (2006). Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes. ISBN: 85-336-2341-0         [ Links ]

Campbell, Brígida; Terça-Nada!, Marcelo (org) (2011). Intervalo, Respiro, Pequenos deslocamentos: Ações poéticas do Poro. São Paulo: Radical Livros. ISBN: 978-85-98600-14-7.         [ Links ]

Certeau, Michel de (2008). A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 14 ed. Petrópolis, RJ: Vozes. ISBN: 978-85-326-1148-2         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: joanaaparecida@gmail.com (Joana Amarante).

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