SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número5A relação corpo/objeto e o discurso poético das proposições de Lygia ClarkElke Hering: percurso de uma escultura em transformação índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

HABITAR

Borracha, transparência e peso no espaço real: por um novo modo de habitar os desenhos de Lúcia Fonseca

Rubber, transparency and weight in the real space: towards a new way of inhabiting Lúcia Fonseca's drawings

 

Cláudia Maria França da Silva*

*Brasil, artista visual e professora na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Estado de Minas Gerais). Doutorado: Artes / Poéticas Visuais, Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado: Artes Visuais / Poéticas Visuais, Universidade Federal de Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação: Artes Plásticas, Desenho e Escultura, Universidade Federal de minas Gerais (UFMG).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Análise de desenhos de Lúcia Fonseca, artista brasileira. São borrachas vulcanizadas pretas que dialogam mais efetivamente com o espaço real. Meu raciocínio vai à busca de valores reveladores da potência escultórica de tais desenhos. Aproximo esses trabalhos com experimentações de Richard Serra e Robert Morris, realizadas com materiais flexíveis, em que havia uma preocupação com o tectonismo da matéria (Serra) e um interesse pela multiplicidade de situações formais (Morris).

Palavras-chave: peso, presentidade, desenho contemporâneo.

 

 

ABSTRACT
Text about Lucia Fonseca drawings, Brazilian artist. Black vulcanized rubbers establish effective dialogue with real space. My text explores sculptural potency of her drawings with this material. I also bring them near Richard Serra and Robert Morris experiments with flexible materials. These experiments reveal their concerns with tectonism of matter (Serra) and multiplicity of formal situations (Morris).

Keywords: weight, presentness, contemporary drawing.

 

 

Considerações Iniciais

Apresento alguns dos trabalhos mais recentes da artista plástica brasileira Lúcia Fonseca, recortes e composições com borrachas vulcanizadas pretas. Lúcia é natural de Campinas (SP), doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Este texto decorre de minha experiência como curadora de sua exposição individual "Habitar o espaço", realizada no Museu de Arte Contemporânea de Campinas José Pancetti – MACC – realizada entre 16 de novembro e 11 de dezembro de 2011. Em seus trabalhos anteriores, desenhos sobre papel, havia em alguns deles quase que um procedimento similar às gravuras em maneira negra, já que o eixo operacional era o escurecimento do suporte para então criar zonas de luz, gerando o "branco" como acontecimento. Ao escrever sobre os mesmos, eu apontava sobre a presença de uma escuridão, espécie de "noite profunda" que era a base mesma do suporte, sobre a qual a artista ia dilapidando, em camadas sucessivas, "momentos de luz silente", os quais "ilumina[va]m o suficiente para apenas vislumbrarmos formas reconhecíveis dentro daqueles blocos de noite".

Ainda tendo como mirada aqueles desenhos, concluía refletindo que a poética de Lúcia Fonseca seria o enfrentamento do branco e do silêncio inicial do suporte, ao mesmo tempo em que o desenho era também uma construção sucessiva de "blocos de noite" para que ela pudesse, nesse trabalho de escurecer seu mundo de papel, redescobrir o branco, para fazer da totalidade da noite espessa, outros blocos: nuvens de chumbo. Ora, nuvens de chumbo são imagens mentais que podem metaforizar a angústia, mas podem também se relacionar ao peso. Tensão existente entre a força gravitacional e a condição de suspensão no ar, do ser nuvem. A série que ora se apresenta é um enfrentamento do peso físico. Para tal, é importante pensarmos nas operações da artista sobre o suporte. Meu raciocínio na construção desse texto passa pelo suporte como corpo e matéria e me faz pensar se essa nova série de "desenhos" de Lúcia Fonseca não nos revelaria a potência escultórica de suas preocupações poéticas.

 

1. Suporte e Transparência

É muito comum aos desenhistas pensarem que o desenho começa no momento em que os instrumentos gráficos tocam o espaço do papel. Parece haver nisso a ideia de que a ação de traçar é o elemento que funda uma visualidade, ou mesmo de que o corpo do artista se apresenta como figura ou por meio de sua gestualidade. Há um corpo anterior que recebe o traço, o corpo do suporte. Corpo que em muitos momentos foi percebido em sua transparência, como aquilo que permite a visualidade de outra coisa. Corpo anterior como vidro transparente pelo qual se olha, e não para o qual se olha.

É necessário que ampliemos nosso conceito de "transparência". Para Colin Rowe (1985: 54-5), a transparência é um termo abrangente, podendo assumir diversas significações. Assim, temos a transparência como (1) "busca constante [do intelecto] de tudo aquilo que deveria ser facilmente detectado", como (2) condição física de determinadas matérias que permitem passar a luz para outro meio. A transparência também é entendida como (3) qualidade de caráter, opção pela sinceridade e ausência de dissimulação. Para o entendimento desse texto, trabalhamos com o conceito nos sentidos de clareza de raciocínio e postura ética, dentro das postulações de Rowe.

Munida de tais referências para o conceito de transparência, refiro-me então à escolha e presença do suporte no mundo, como corpo primeiro com o qual o corpo do artista trabalha. A corporeidade do suporte fica ainda mais clara quando a artista investiga placas pretas de borracha vulcanizada. Elas lhe fornecem extensão, espessura, cor, maleabilidade, cheiro e peso (Figura 1 e Figura 2).

Não há como não se olhar para elas.

 

 

 

A artista tem de lidar com várias características do material "antes" de começar seus "desenhos": carregar as placas – experimentar o peso físico do material, ao mesmo tempo do peso visual – prevenir-se das manchas de graxa, organizar espaços de guarda e de manipulação das placas, conviver com o cheiro da borracha. Conviver não mais com "blocos de noite" construídos por seus gestos gráficos, mas com "noites" pré-existentes, enroladas e envolvidas em seu mistério intrínseco de ocultarem sua formatividade – pois nessa latência são apenas manchas pretas e informes.

Ao lado da desenhista que se empenhava ao máximo em conservar a planura e alvura de seus suportes intocados – talvez Lúcia se pegue pensando que agora cabe vez à desenhista que compreende que o ser do plano de borracha seja um ser recolhido, envolvido, acostumado a uma invisibilidade que agora grita com sua "presença" no cotidiano da artista. Ou talvez perceba que a "nova" série é uma deliberação em se trabalhar com a Física no interior do Desenho.

Essa condição do suporte – placas enroladas – passa a ser percebida também como potência para "situações formais". Ou seja: a artista executa no plano da borracha vários cortes que produzem manchas e linhas negras, unidades que em conjunto produzem texturas e outras composições. Mas há também fragmentos longos de placa enrolada em diversos tamanhos. Consubstanciam volumes de alturas diversas, mas sempre sujeitos ao peso do próprio material. A artista também constrói estruturas rígidas (Figura 3 e Figura 4), suportes metálicos para suspender linhas e manchas, numa busca de tectonismo para o próprio desenho no espaço real.

 

 

 

Quando me refiro a "situações formais", isso se dá pela submissão do material à força gravitacional. Mesmo que Lúcia faça um percurso com uma linha de borracha no espaço real, levantando-a em alguns momentos, dependurando-a em algum suporte, ou mesmo construindo sobreposições de rolos, os resultados formais não são absolutamente estáveis, porque o peso das borrachas introduz graus de entropia nas composições, o que as torna vinculadas não mais a um conceito de forma como da ordem do estável e do constante.

Essas novas situações remetem a algumas experiências de Robert Morris e Richard Serra, a partir de 1967. Robert Morris formula o conceito de "anti-forma" durante experimentações com materiais moles como o feltro e com disposições espaciais aleatórias e desordenadas. Morris está atento às oposições entre o caráter bem-construído e o não-construído, em uma obra de arte. O conjunto do que o homem construiu para fazer oposição à ação gravitacional – o emprego do mármore e do bronze, por exemplo, pertence ao domínio do bem-construído, da "forma". A "anti-forma" seria o pólo oposto, em que o desejo de formar sucumbe à inexorabilidade da gravidade.

Richard Serra, por sua vez, insiste no tectonismo, mesmo com grossas borrachas galvanizadas, dependurando-as em paredes, ou içando-as parcialmente. Nessas ações, o artista percebe a força gravitacional como elemento desestabilizador da noção de uma forma estável. Serra refere-se a uma "transparência" no trabalho, não mais somente como a apresentação das operações que o constituem, mas preocupando-se em tornar "transparente" a força gravitacional como partícipe daquela visualidade.

Tenho constantemente tentado tornar a tectônica transparente, não como um imperativo ético ou lógico, mas como um assunto no senso comum da construção. Princípios de construção que satisfazem sua função sob dadas limitações estão abertos à inspeção de qualquer um (Serra, 2004: 50-1).

Assim, na lida com o peso físico e outras características do material escolhido, na escolha entre deixar que a força da gravidade estabeleça a imobilidade final das coisas e experimentar momentos de resistência a essa força, os trabalhos resultantes passam a estabelecer intensas conversas com o espaço real. Existe então um alto valor para a experimentação, no sentido de resgate de uma "presentidade" da forma.

Robert Morris escreve sobre a presentidade no campo da experiência subjetiva, afirmando que o "espaço real não é experimentado a não ser no tempo real." (Morris, 1978/2006: 404). Morris afirma isso no seio de uma discussão sobre as diferenças de subjetividade na experiência real ("experiências do tipo eu", consideradas como o sujeito lidando com o espaço e o tempo reais) e na experiência memorialista, quando destacamos o objeto lembrado de seu contexto espacial, generalizando-o e estatizando-o (a "modalidade mim", em que o sujeito lida com o dado retrospectivo e que é representável). Um desenho projetivo é da ordem dessa experiência memorialista, por conta do valor mental dessa representação. Mas ao chamar a atenção para experiências de presentidade, Morris quer co-estender o objeto ao espaço real e ao tempo imediato. Por meio desse pensamento, percebemos em que medida o desenho como projeto ou outra maneira de antecipação revelam sua impotência diante do "peso" da realidade palpável. Os projetos têm validade para orientações genéricas. Mas a dinâmica interna da forma, essa é um mistério que só se revela na manipulação e jogo das formas, no equilíbrio precário com o qual se impõem.

Isso me ficou muito claro quando Lúcia Fonseca abandonou estudos em papel e partiu para uma maquete do Museu (MACC). As borrachas pequenas, proporcionalmente reduzidas, permitiram configurações que não foram garantidas na escala real. A partir dessas constatações, um acordo tácito estabelecido entre as borrachas e a artista foi o de que o espaço do museu teria de se transformar em espaço de trabalho – em espaço de atelier – já que convencionalmente, é no espaço do atelier que se experimentam possibilidades, que há o espaço para o erro e para as tentativas. Lúcia Fonseca "habitou" o museu/atelier durante o tempo de sua exposição, compondo novas situações formais com as borrachas. Isso garantiu um dinamismo ainda maior ao que já se percebia no espaço real, pois as condições físicas ditavam o estabelecimento das diferenças.

 

Considerações Finais

Trabalhar com as borrachas abriu a prerrogativa para outra transparência: o enfrentamento da matéria com a realidade do espaço e tempo reais. Uma transparência do tipo "espaço em obra" (Tassinari, 2001), gerando diálogo da obra com o mundo, aliou-se à transparência da gravidade para fornecerem o jogo da performatividade da matéria em situações composicionais.

Compreende-se que o ato de habitar trabalhos artísticos no espaço expositivo, no caso de Lúcia Fonseca, merece vários "modos". O modo com que a borracha vulcanizada se comportou como corpo flexível determinou o modo de atuação do corpo da artista, imprimindo ao espaço do museu um modo poïético, dado na constante reconfiguração das placas. Todos esses modos, por sua vez, desembocaram no corpo do espectador, que percorreu e experimentou o diálogo das matérias, das situações formais, da transparência das soluções artísticas, consubstanciando um modo de habitar que foi só seu.

 

Referências

Morris, Robert (2006) "O tempo presente do espaço" In: Ferreira, G.; Cotrim, C. Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar.         [ Links ]

Rowe, Colin (1985) "Transparência literal e fenomenal". Gávea, Rio de Janeiro, PUCRJ, n.º2, setembro.         [ Links ]

Serra, Richard (2005) "Questions, contradictions, solutions: early work". In: SERRA et alli. The matter of time. Bilbao: Guggenheim Museum.         [ Links ]

Tassinari, Alberto (2001) O espaço moderno. São Paulo: Cosac & Naify.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: claudiamfsg@yahoo.com.br (Cláudia França).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons