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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

RISCO

O Mundo Bate do Outro Lado

The world knocks on the other side

 

Beatriz Furtado*

*Brasil, artista visual, (instalações vídeo). Professora no Instituto de Arte e Cultura, Universidade Federal do Ceará. Atualmente faz pós-doutorado em Cinema e Arte Contemporânea, na Universidade Paris III – Sorbonne Nouvelle.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Neste artigo, parte de uma pesquisa mais extensa, nos propomos a analisar a obra do artista brasileiro Ticiano Monteiro, "O Mundo que Bate do Outro Lado da Minha Porta", em sua relação com outras obras, fundamentais para o pensamento contemporâneo da arte. Partimos da problematização das noções de mundo e intimidade como um jogo de forças, que nem é absolutamente da ordem do dentro, nem tampouco absolutamente da ordem do fora, tensionando a idéia de sujeito na obra.

Palavras chave: Mundo; Intimidade, Jogo de forças; Sujeito; Arte Contemporânea

 

 

ABSTRACT
In this article, part of a more extensive search, we propose to analyze the work of a brazilian artist TicianoMonteiro, "O mundoque bate do outro lado da minhaporta", in relation to others works, fundamental to the thinking of contemporary art. We start questioning the notions for intimacy like a power game,wich is absolutely not in the order ofinside, neither in the order of outised, tensing the idea of subject in the work.

Keywords: world, intimacy, power game, subject, contemporary art

 

 

1. Uma ideia de mundo

Em "O Mundo que Bate do Outro Lado da Minha Porta"(2006), uma video-instalação, 8', Ticiano Monteiro (1982) leva seu quarto para um rio de águas baixas e calmas, um resto de natureza em meio a cidade desordenada e caótica de Fortaleza, no Nordeste do Brasil. Cama, colchão, lençóis, travesseiros, mesa de cabeceira, alguns livros, um rádio de pilha, um cabide, uma velha televisão e outros objetos pessoais formam um lugar de habitar e constituem um mundo em meio as coisas, desprovido de repartições. Ticiano Monteiro inscreve esses objetos de individuações, que compõem a vida familiar, em um artifício de experimentação das fronteiras, dos desenhos entre o particular, o pessoal, o construído, e o espaço aberto, público, transparente ao olhar do outro.

O mundo é uma temática recorrente em obras de arte, uma noção que inclui o lugar onde os seres humanos habitam, se confundindo às vezes com o planeta Terra, seu aspecto físico, geográfico, natural, mas, sobretudo, o mundo é uma constatação da forma de existência, uma espécie de realidade que transcende o espaço e se articula com as maneiras pelas quais a vida é apropriada. O cineasta Jia Zhang-Ke fez de 'TheWorld' um mundo flutuante, que toma Pequim como um universo à deriva. Para conhecer o mundo, Jia Zhang-Ke não precisa sair de Pequim. Todos os principais monumentos de todas as cidades mais cobiçadas pelo turismo mundano e comercial, toda a obra urbana e monumental da humanidade, se encontram num grande parque de diversões, para onde o tempo se entrelaça e se sobrepõe numa única camada.

Zhang-Ke descreve o mundo em que os raros momentos de afeto, de proximidade, se dão através de mensagens por celulares. 'O Mundo que Bate'… de Ticiano Monteiro, ao contrário, é uma ode à natureza, ao despreendimento, uma retirada do mundo racional. Não há monumentos, nem regras sociais. Seu mundo é um quarto (uma parte) que se desgruda do espaço construído, que nega as particularidades de uma vida de assinalada pela ordem doméstica. O único personagem de 'O Mundo que Bate…', o próprio artista,que transporta o quarto para as águas, se retira do mundo da razão. Leva seu quarto para formar paisagem com as garças, que vivem em bandos nos rios e lagoas para se alimentar dos peixes de suas águas. Se situa na contra-mão dos exercícios diários, pautados que são pelas finalidades, os resultados e a suas racionalidades, para apenas experimentar seus desfazimentos.

"O Mundo que Bate…"é um enorme horizonte sob céu aberto, coberto pelos traçados de luz e desorganizado pela inquietude do vento. O quarto é parte do mundo onde não há mais o lá fora. Tudo está no mesmo espaço e como uma fita Moebius, os limites do interior e exterior, do direito e do esquerdo, se perdem, se desalinham. Não há o outro lado. O desfazer dos traçados que o abrigo do quarto determina é um gesto do artista diante do mundo submetido à ordem. O que sobram são os objetos, mas sobretudo, a dimensão do esvaziamento das configurações dos espaços lógicos, fundados sobre os usos e as finalidades. O quarto agora é mundo, sem portas e sem determinação de fronteiras nem apartações, é o ordinário da vida de que fala Maurice Blanchot (1986).

No centro da ação performativa de 'O Mundo que Bate…' está uma questão mais que tudo estética para qual Hélio Oiticica (1937/1980) já havia proposto, na década de 60, uma formulação. Em "O Museu É o Mundo"(1966), Oiticica afirma o lugar da arte para fora das quatro paredes que a apartavam do mundo. O sentido de apropriação, tão caro a arte contemporânea, se estende às coisas do mundo, escrevia Oiticica, em sua contundência crítica em relação às instituições e o circuito do mercado da arte. A obra de Ticiano Monteiro bebe da mesma fonte de Oiticica. Seu quarto não encontra lugar no museu, nem em galerias de arte e é, sobretudo, parte de uma ação do artista que põe em crise o conceito de exposição e reafirma as posições de artistas como Oiticica, para os quais as obras se efetivam no mundo, na experiência cotidiana.

Os "Parangolés", série de obras iniciadas em 1964, expressam o investimento de Oiticica na vida e mundo como lugar da arte. Um gesto que estava presente em Kasimir Malevitch (1878-1935), com a sua pintura sem ordem gravitacional, que em Oiticica se converte em um mundo concreto, com estrutura espaço-temporal. Os "Parangolés", espécies de capa, bandeira ou estandarte, feitos de algodão ou náilon com poemas em tintas, foram criados para serem vestidos e assim dá a ver tons, cores, formas, texturas, grafismos e textos. Com os 'Parangolés', Oiticica veste o ritmo do corpo e o ator/espectador passa a perceber seu corpo afetado pela dança.

Essa mesma perspectiva de mundo está presente no trabalho de Ticiano Monteiro. Mas, se há essa presença direta no mundo concreto, das ruas, dos morros, das cidades, tanto em um artista quanto no outro, suas obras trazem dimensões estéticas distintas. Não se trata de uma variação sobre o mesmo problema, mas de produções informadas por questões distintas, outra maneira de estender a arte ao mundo. O mundo de Ticiano Monteiro é para ser levado de um canto a outro e está contido nos elementos de seu quarto. 'Estava passando por um momento de reclusão, sentindo uma espécie de apagamento. O quarto era esse lugar de conforto, de intimidade, um ninho, ele me continha, eu estava imanente a ele' (2011).

É fácil escutar nessa fala de Ticiano Monteiro uma certa ideia da obra como representação de situações interiores. No entanto, quando o quarto sai das quatro paredes que envolvem o espaço da reclusão e dirigi-se ao mundo aberto, visível, em "O Mundo que Bate…", não é um mundo interior que vemos se deslocar. Então, afinal, o que faz Ticiano Monteiro quando leva o seu quarto para um lugar do outro lado da sua porta? Nossa aposta teórica é de que nesse transporte do quarto, "O Mundoque Bate…" (Figura 1) nos faz ver a impossibilidade de se pensar a arte de dentro, a arte do sujeito, mesmo que esse dentro seja um quarto. A arte de se faz da tensão no entre desses universos sem pontas.

 

 

 

2.Uma arte sem sujeito

O sujeito é um itinerário interior fora de mim (Clark, 1999:164). Essa afirmação de LygiaClark (1920/1988) diz do paradoxo da arte que é, a um só tempo, dentro e fora e a sua negação, e explica o quão essas noções de interior e exterior são insuficientes para dizer do que está em jogo na experiência artística. LygiaClark fez uma obra tomada, não poucas vezes, como da pele para dentro enquanto a obra de Hélio Oiticica se daria da pele para fora. Esse tipo de busca por um sujeito, que estaria definido nas obras, é negado de forma contundente por LygiaClark, quando afirma que "Caminhando" só existe como um ato, é apenas uma potencialidade, é uma realidade imanente. Portanto, não há nada antes nem depois. A experiência de LygiaClark com "Caminhando" é da ordem desse sujeito que é um itinerário do fora. "Caminhando só passou a ter sentido para mim quando atravessando o campo de trem, senti cada fragmento da paisagem como uma totalidade no tempo, uma totalidade se fazendo". O fora é o itinerário de LygiaClark, atravessado pelo paradoxo de 'mim'.

De uma outra perspectiva, em "Quarto em Arles'(1888), de Van Gogh, esse (sem) sujeito tensionado com o foratambém negam representar o frágil d'alma atordoada do artista apenas porque seus elementos não se alinham em composições equilibradas, ressaltam fendas no chão, descrevem desníveis e tortuosas paredes, que são convidados para narrar sua doença. É o próprio Van Gogh, em carta ao seu irmão Théo, que conta sobre essa obra como quem apenas fala de cores, que se encontra na sua pintura. Ao contrário das versões que sucumbem à leitura da obra como expressão da doença do artista, o que vemos é uma imponência de cores que saltam do seu quarto como um tratado estético.

As paredes são de um violeta pálido. O chão é de quadros vermelhos. A madeira da cama e das cadeiras é de um amarelo de manteiga fresca; o lençol e os travesseiros, limão verde muito claro. A colcha é vermelha escarlate. O lavatório, alaranjado; a cuba, azul. As portas são lilases. E isso é tudo – nada mais neste quarto com as persianas fechadas. O quadrado dos móveis deve insistir na expressão de repouso inquebrantável. Os retratos na parede, um espelho, uma garrafa e algumas roupas. A moldura – como não há branco no quadro – será branca (Van Gogh, 2002:33).

Gilles Deleuze, em sua estética fundada sobre a ruptura com o modelo da representação, faz a crítica radical tanto da noção de intimidade, crítica esta que passa por compreender a impossibilidade de um fora do mundo, quanto seus aos valores universais. É no meio, na tensão do entre, que, em pensando após Deleuze, se pode falar de uma estética não da intimidade, mas da vida, quer dizer, uma arte que expressa a vida, um arte vitalista. E a vida, diz Deleuze (1993), não é redutível a qualquer gênero. Deleuze afirma uma arte figural (não figurativa, não representativa), cujas bases teóricas estão assentadas numa arte de captação de forças semi organizadas (caosmicas).Na arte que, nesses termos, torna sensíveis forças não sensíveis por elas mesmas.

Jacques Rancière (1998), ao se perguntar se é possível falar de uma estética em Deleuze, explica que o lugar central dado em suas obras à 'aisthésis' faz com que a teoria da arte figural não procure dar um sentido as obras criadas e coloca no centro de seu pensamento sobre a arte o que designa o presente de uma vida impessoal. A arte, portanto, não procura narrar uma história nem imitar um antes do mundo ou renovar uma força existente. Em uma estética deleuziana o que temos na arte é a presença de um movimento indeterminado da vida.

 

Entre conclusões

Embora o quarto seja um desenho do espaço privado moderno, da sua concepção de íntimo e de acolhimento e ao mesmo tempo de isolamento em relação ao lado de fora, "O Mundo que Bate…" faz a crítica ao indivíduo, ao particular, ao próprio. Ao integrar outros espaços, ao levar seu quarto para mundo, o que faz Ticiano Monteiro é produzir uma arte que resiste às identidades, a instauração de um sujeito. O quarto vai ao mundo não para dizer de um mundo da intimidade do artista, mas para se fazer atravessado pela paisagem do mundo, marginalizando suas regras de funcionamento. O "Mundo que Bate…" é de uma arte sem sujeito determinado, que tornar-se uma singularidade qualquer, que se deixa contagiar por Oiticica, Clark, Van Gogh, e cuja potência se dá num jogo entre as forças que dizem do particular e do mundo, que nem é absolutamente dentro nem tampouco absolutamente fora, mas atravessada.Como o artista mesmo afirma, "O Mundo que Bate…" me fez sair dos limites do sujeito para me diluir em composição com o mundo, redistribuir as vizinhanças'.

 

Referências

Blanchot, Maurice (1986) La communauté inavouable. Paris: Minuit.         [ Links ]

Clark, Lygiaet al. (1999) LygiaClark. Barcelona/Rio de Janeiro: FundacióTapies e Paço Imperial. (Catálogo da Exposição LygiaClark).         [ Links ]

Clark, Lygia (s.d) Associação Cultural O Mundo de LygiaClark. Diários de Lygia. [Consult. 2012-01-10]. Disponível em http://www.lygiaclark.org.br/arquivo_detPT.asp?idarquivo=17         [ Links ]

Deleuze, Gilles (1993) "La littérature et la vie", Critique et clinique, Paris, Minuit.         [ Links ]

Rancière, J.(1998) "Existe-t-il une esthétiquedeleuzienne?", In É. Alliez (dir.), Gilles Deleuze. Une vie philosophique, Le Plessis-Robinson, InstitutSynthélabo, 1998, p. 525-536         [ Links ]

Van Gogh, Vincent. (2002), Cartas a Théo, L&PM, Porto Alegre.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: sylviabeatrizbezerrafurtado@gmail.com (Beatriz Furtado).

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