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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

INTENTO

O Simulacro em Ana Vieira: uma leitura deleuzeana

Simulacrum in Ana Vieira : a deleuzean reading

 

Joana Tomé*

*Portugal, escultora artista independente. Licenciatura em Escultura, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Frequenta o mestrado em Ciências da Arte e do Património, FBAUL.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Perscruta-se na obra de Ana Vieira uma leitura à luz do simulacro deleuzeano enquanto ponto de partida para uma reminiscência da Caverna Platónica enquanto ventre.

Palavras chave: Ana Vieira, simulacro, Deleuze, Irigaray, Platão, Alegoria da Caverna

 

 

ABSTRACT
It is intended to investigate Ana Vieira's work as connected to a deleuzean simulacrum as a means to a reminiscence of Plato's Cave as womb.

Keywords: Ana Vieira, simulacrum, Deleuze, Irigaray, Plato, Cave

 

 

Considerações Iniciais

Toma-se em análise a obra da artista plástica portuguesa Ana Vieira (Coimbra, 1940), num ensaiar da aproximação de obras como Ambiente, de 1971 (Figura 1) e Ambiente, de 1972 (Figura 2), a um entender deleuzeano de simulacro. Nascida em Coimbra, cresce em S. Miguel, nos Açores, e forma-se em Pintura na Escola Superior de Belas-Artes (1964); de percurso marcado por um questionar do médium, trabalha o espaço em ambientes, instalações, cenografias, recortes e montagens que se parecem oferecer de bom grado a uma análise assente na ligação ao simulacro que se espera pertinente e fecunda.

 

 

 

Defender-se-á, em primeira instância, o simulacro enquanto poder positivo na insubmissão ao Logos, ligado, deste modo, à condição feminina, invocando, para o efeito, os proeminentes teóricos franceses Gilles Deleuze e Luce Irigaray; estendendo-se, de seguida, tal noção aos objectos construídos pela artista, por forma a pensar, em última análise, a subversiva potencialidade da invocação do mesmo,sob uma perspectiva deleuzeana, nas obras em estudo.

 

1. A Reminiscência da Caverna

Perscruta-se em Deleuze, na sua investida em derrubar o platonismo – propondo uma reversão do mesmo –, uma legitimação do simulacro, reivindicando o direito deste sobre ícones ou cópias e afirmando o seu poder positivo na negação do original e da cópia, do modelo e da reprodução. Numa subversiva análise da Alegoria da Caverna de Platão, o autor (Deleuze: 1990) investiga a distinção platónica entre cópias e simulacros apontando como verdadeiro propósito do dualismo platónico o proceder a um seleccionar de entre os demandantes da verdade, colocando-os numa estrutura de oposições onde se separa o puro do impuro, o autêntico do inautêntico, e se testa a mesmidade e a semelhança excluindo o que aí não cabe (Deleuze, 1990: p. 254): as cópias, operando no sistema de representação, são autorizadas pela semelhança que prestam à Ideia – correspondem, por analogia e sob o princípio da identidade –; já os simulacros se olham como falsos, corrompidos pela dissemelhança cujo âmbito é o do sensível – de índole, deste modo, inferior, subversivo e contra a Ideia, o Pai. O neófito outrora acorrentado, ao voltar o olhar na direcção da fogueira, não reconhece modelo nos artefactos que aí encontra e que projectam sombras na parede.

Irigaray empenha-se, de modo idêntico, na desconstrução do mesmo texto platónico, defendendo uma ligação da caverna ao ventre da mulher, ao útero (Irigaray: 1985b): a caverna é a representação – invertida a partir de um eixo de simetria – de algo sempre aí, da matriz original. Amorfa, excede tudo; furta-se ao domínio do Logos, da lei do Pai. Platão nega-lhe, no entanto, a condição de origem, pensando-a como mera superfície reflectora sobre a qual origens transcendentais – a luz do Sol, das Ideias, e da fogueira análoga – se projectam, e a mulher é assim tomada enquanto receptáculo (Platão, Timaeus: 50e): sem face, sem forma autorizada, diferente, é sujeita às invasivas impressões do Pai. A diferença é, contudo, impossível de anular, por mais que se lhe imprima a mesmidade. Ora, tendo por simulacro 'an image without resemblance' (Deleuze, 1990: p. 257), e seguindo Irigaray, à mulher parece pertencer tal posição: o simulacro constrói-se em torno da diferença, da dissimilitude, da condição de Outro - termo cunhado por Simone de Beauvoir, referente à alteridade correspondente à condição feminina, por oposição ao mesmo, masculino por excelência – que escapa à ordem do mesmo, não se reportando a qualquer modelo, qual cópia.

Os objectos de Ana Viera, ora reais, na obra de 1972 (Figura 2), ora virtuais, na obra de 1971(Figura 1), habitam, sós, os espaços criados, e mesmo aqueles primeiros teimam em apresentam-se, ininterruptamente, na condição dos últimos – são perversão e desvio; continuamente outros; simulacro. O objecto desmaterializa-se numa falsa semelhança e, qual espelho carrolliano, esconde o seu reverso, confundindo-se as fronteiras entre real e virtual, presente e ausente, dentro e fora, próximo e distante, opaco e translúcido, acessível e inacessível, público e privado. A artista aborda a arte como passagem para um mundo interior (Melo: 2011), arriscar-se-ia, um ventre qual Caverna de Irigaray, um espaço interior de reflexo que se clama origem. Constrói ambientes, cenários, qual Caverna em que se projectam as sombras, explorando o real e as suas limitações e pressupostos num ensaio de ausências e presenças.

Vieira questiona, em Ambiente de 1972 (Figura 2), o plinto e o ritual sacralizante, quase fúnebre, a ele circunscrito, numa, dir-se-ia, aberta refutação da mimese que opera na cópia platónica – a submissão ao modelo da Ideia. Aí se entrevê uma Vénus – símbolo da celebração greco-romana da mimese – que se afasta do mundano e se vê rodeada de silêncio, cadeiras sem ocupantes. Crítica à monumentalidade e ideais clássicos e a um entendimento da arte que fetichisa e afasta as obras do espectador, a Vénus exila-se agora perante um público de ausências e transfigura-se. Entre ela, as cadeiras vazias e o espectador, um véu apolíneo que ora oculta ora revela – oferece a ambiguidade de um espaço simultaneamente aberto e fechado, onde um interior se insinua e esconde, a um tempo, perante o olhar voyeur.

O véu volta a fazer-se presente em Ambiente, de 1971 (Figura 1) – e de resto, ao longo de grande parte da obra da autora –, onde a mobília da casa de jantar de faz de sombras, de simulacros. É o véu apolíneo que permite a sobreposição das sombras que ora ocultam ora revelam – e revelam não só o espaço e as cópias que o habitam, mas permitem que o olhar o atravesse e alcance igualmente o espectador em potência no lado contrário da obra. Convida-se um olhar deambulante, um olhar háptico, a passear num espaço que se transmuta com a sua passagem – é sempre diverso, de face para face; de máscara para máscara.

O conhecimento faz-se, no texto de Platão, na medida em que o filósofo abandona a caverna; apenas se liberto dela e das suas correntes – vestígios do mundo sensível – pode o homem aceder às Ideias: apenas se liberto do feminino, parece dizer-nos Platão, pode o homem transcender. Quando um dos habitantes da caverna é forçado a sair e a encarar a luz solar do Pai, tudo na caverna deve ser esquecido por forma a lembrar somente o que é verdadeiro: o mesmo – o mais, o verdadeiro, o correcto, claro, inteligível, masculino – deve prevalecer sobre o outro – o menos, o diferente, o fantástico, obscuro, sensível, materno, feminino (Irigaray, 1985b: p. 275). O feminino, o materno, é inviabilizado; tolerado apenas na medida em que assegura a reprodução/produção de duplos, cópias, simulacros, na medida em que se vê transformado em cenário, em palco e ecrã de projecção.Ana Vieira parece poder ler-se na linha de uma proposta de reversão desta lógica platónica: a reminiscência a ter lugar deve ser da matriz/ventre em detrimento do sol/Ideia. Parece propor-se, por meio da legitimação do simulacro, um lembrar do ventre que se foi obrigado a esquecer. Aí o espectador reencontrará não só a matriz original, a mulher, mas igualmente a si próprio: na caverna não era ainda peremptoriamente impossível o reflexo do eu e a reflexão sobre ele; banindo a "fantasia" da caverna, bane-se o próprio início do homem e a sua estória – a sua origem passa a ser a Ideia.

Deleuze, no seguimento de Nietzsche, sustenta que, dado o grau de colonização da caverna/matriz pela Ideia e suas projecções, existe, dentro daquela, uma caverna outra, mais profunda. Aí o Pai não mais se reconhece (Deleuze, 1990, p. 263), não mais se conhece dono de mitos por contar e transformar em fundação: tal caverna mais profunda não reconhece o mito ou a analogia, é real ainda que virtual; nela impera o simulacro. Deleuze denomina-a de devir, e o devir não produz outra coisa que não ele mesmo. Parece ser desta caverna mas profunda que nos fala Ana Vieira, lembrando que o simulacro se rodeia da libertação imensa da Ideia, do modelo, existindo por si só, autónomo, diferente. Interrogando o modo como olhamos e aquilo para que olhamos, a artista cria um espaço háptico que se insinua palpável ao olhar: o olho adquire uma função táctil. Este espaço nómada, do devir, apela à participação mas esconde o seu reverso: é perpetuamente impenetrável, obrigando o espectador a rever a posição que ocupa face ao sistema de representação. O olhar atravessa-o, mas nunca o corpo – a ele se veda a proximidade e o toque.

 

Conclusão

Ana Vieira actualiza, em última análise, o simulacro na sua condição feminina: trá-lo à superfície num último e derradeiro desafio ao sistema de representação falogocêntrico. É por mão do simulacro que se conduz o espectador a um espaço interdito, a uma caverna mais profunda, para que a ela o olhar desça e dela se traga a criativa subversão à ordem do Pai.

 

Referências

Ana Vieira (s.d.) [Consult. 2011-15-11]. Disponível em http://www.anavieira.com/         [ Links ]

Beauvoir, Simone (2009) O Segundo Sexo, Quetzal Editores, Lisboa.         [ Links ]

Deleuze, Gilles (1990) The Logic of Sense, Nova Iorque: Columbia University Press.         [ Links ]

Irigaray, Luce (1985) This Sex Which Is Not One, Ithaca/Nova Iorque: Cornell University Press.         [ Links ]

Melo, Jorge Silva (2011) Ana Vieira – E O Que Não É Visto, Midas Filmes, DVD.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: joana.tee@gmail.com (Joana Tomé).

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