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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

INTENTO

Joana Vasconcelos: contaminações entre escultura e moda

Joana Vasconcelos: Contaminations between Sculpture and Fashion

 

Alexandra Cabral*

*Portugal, designer de moda freelancer e formadora na Modatex. Mestrado em Design de Moda, Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa (FAUTL). Licenciatura em Arquitectura de Design de Moda (FAUTL, 2004).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
As esculturas de Joana Vasconcelos condensam a relação mente/objecto/corpo em formas significantes onde a moda tem um papel preponderante. A pertinência da moda com obra de arte é desvendada em obras acreditadas internacionalmente, através das quais a escultora analisa o mundo, usando ícones da cultura nacional que são também globais.

Palavras-chave: Joana Vasconcelos, Escultura e Moda, Contaminações, Identidade Nacional, Gestão da Arte.

 

 

ABSTRACT
The sculptures of Joana Vasconcelos condensate the mind/object/body relationship in signifying shapes where fashion plays a distinguished role. The relevance of fashion as work of art is revealed in internationally recognized works, by which the sculptor analyses the world, using icons of her national culture that are also global.

Keywords: Joana Vasconcelos, Sculpture and Fashion, Contaminations, National Identity, Art Management.

 

 

Introdução O tema coloca as obras de Vasconcelos sob o prisma da moda, que tem contribuído para a mediatização e consagração da artista. A validade da crítica social feita à luz da moda coloca-a como uma nova categoria da arte contemporânea. Do percurso da artista nascida em 1971, destacamos o Prémio EDP Novos Artistas, a participação na Bienal de Veneza em 2005 e a retrospectiva no CCB em 2010. A metodologia adoptada foi mista, não intervencionista e qualitativa: pesquisa bibliográfica, análise de obras e fotografias.

 

1. Os poemas e os objectos que os constituem

A contaminação da moda na obra de Vasconcelos tem sido consistente, fértil e abrangente, sempre ligada ao seu papel na sociedade global. Está presente desde o início, porque é "uma expressão humana muito importante, tal como é a arte no sentido das artes plásticas" (Cabral, 2010: 242), como a artista refere. Nas Manobras de Maio de 1994, a artista apresentava Bunis (1994), um desfile de chapéus de esferovite coloridos e orgânicos, tais extensões do pensamento. Já aqui, Vasconcelos levava o espectador a experimentar a autonomia induzida pelas formas apresentadas, questionando-se sobre a inquietação que provocavam; colocava os léxicos estéticos do criador e do fruidor em dicotomia.

A temática enquadrada contempla elementos da identidade nacional, incluindo os da moda, tais como um vestido de noiva, um colar do período barroco ou um coração de filigrana, porque a artista considera que "fazem parte da nossa cultura. São ícones […] da identidade humana." (Granja, 2009: 1). Por a moda pertencer ao quotidiano, é-nos também imediata a sugestão de cenários da cultura e vivência que a contextualizam. Com Dorothy (2007), uma composição de panelas e tampas em forma de sandália, semelhante a uma incrustação de lantejoulas (Figura 1), somos remetidos para o campo de significação da obra. Vasconcelos refere que "a mulher que fica em casa agarrada aos tachos e a tomar conta dos filhos, não é a mesma que vai para as festas de saltos altos." (Soromenho, 2008: 41). No entanto, vemos em Dorothy o retrato da mulher actual, que vai a festas e é simultaneamente dona-de-casa e uma profissional bem-sucedida. Concluímos que aqui o objecto de inspiração perdeu o seu uso, mas não sua simbologia de sensualidade adquirida em sociedade. Como nos diz Barthes (1999: 293), "o objecto cultural possui, pela sua natureza social, uma espécie de vocação semântica: nele, o signo, está sempre pronto a separar-se da função e a operar sozinho" – um signo cuja conotação é exacerbada aqui pela escala.

 

 

Para Vasconcelos, os objectos não se transformam em obras de arte, o que se altera é a leitura e o uso que deles fazemos (Nobre, 2009: 33-34). Para tal, opta por um teor figurativo nas formas, que atrai e confunde: emprega objectos de uso quotidiano para torná-las menos "indecifráveis", mas a sua contextualização origina novas leituras. Diz: "Quando pego nos objectos não os transformo, utilizo e massifico. O pequeno toque é o que faz as pessoas darem-lhe outros significados." (Nobre, 2007: 3). Encerrar as obras da artista numa definição seria então um acto redutor, por isso a revista Art Actuel (2005: 1) definiu-as como poemas-objectos.

 

2. Questionar barreiras da cultura

O acto de se eleger um elemento de uso quotidiano para lhe alterar o significado com um novo título, materiais e escala é semelhante ao do processo criativo em design de moda, na correspondência entre tema, matérias-primas e silhuetas. A transposição de barreiras entre "alta" e "baixa" culturas, que se pretende em moda como obra de arte, verifica-se quando Vasconcelos dá uma leitura erudita a objectos triviais. A artista adapta materiais e conhecimentos às realidades das suas peças e questiona a sua potencialidade: "por que razão este material, pouco nobre, não pode ganhar nobreza?" (Rodrigues, 2009: 50). Tal ocorre na série Coração Independente (2004-2006), três corações gigantes inspirados nos de Viana do Castelo (Figura 2); o rigor e minúcia advêm de um saber que produz peças de joalharia, mas a concepção como "esculturas-jóias", feitas de plástico, decorre da sua visão crítica.

 

 

No atelier da artista, assistimos ao acto de vestir figuras de loiça com croché comprado nas feiras. Identificamos uma reciclagem aliada ao pensamento criativo: processo com origem na simetria de vestir um corpo humano e de adequar motivos geométricos e cores a loiças particulares. Os motivos florais destinam-se aos sapos e os geométricos e angulosos aos lobos (Figura 3). Quando um touro veste uma peça de croché vermelha ou um cavalo uma peça branca, existe uma ligação evidente: esse "vestir" é comparável ao acto de vestir pessoas, onde estilo e personalidade se fundem no visual criado. Contudo, o uso do têxtil reveste-se de vários significados e por isso Varina (2008) é uma colcha feita de raiz (Figura 4), onde as 1500 executantes de Stª Maria da Feira registaram os seus conhecimentos. Pela dimensão desmesurada, a obra artesanal comporta uma ligação irónica com a lógica repetitiva da produção em massa. Passamos, assim, para a vertente consumista da moda, facilitada pelo design e pela produção em série, que a artista igualmente explora.

 

 

 

 

3. Moda e consumismo: design e arte

Vasconcelos relaciona-se com a moda ao criticar a sociedade de consumo, por ser paradigmática dos seus excessos. Fala-nos sobre a vaidade que nos impele e sobre o delírio incontrolável do consumo desenfreado, usando secadores de cabelo em Spin (2001) ou centenas de collants em Wash and Go (1998) (Figura 5). Em Airflow (2001), cria um expositor de gravatas agitadas pelo vento, feito com acessórios do próprio cliente (Figura 6).

 

 

 

Conjuga duas ligações, a da arte com a vida e a da arte com o design e confronta-nos com uma redundância que a própria comenta: "A pessoa […] comprou desesperadamente uma atitude consumista." (Cabral, 2010: 241). O cliente adquire uma obra de arte funcional, tal como acontece na moda ou em Plastic Party (1997), que Vasconcelos descreve como tendo "duas vidas, uma prática e uma abstracta (mais conceptual, digamos assim)" (Cabral, 2010: 241).

 

4. A moda como instrumento de crítica social

O poder aprisionador da moda e do vestuário é escrutinado. Em Burka (2002), a artista apela aos direitos humanos, pondo a nu as opressões que sofrem as mulheres, usando várias sobreposições de fatos oriundos de países diferentes, tal saia-da-Nazaré (Figura 7); mostra-nos que muitos códigos do vestir feminino são influenciados ou impostos pela cultura e pelo sexo masculino: "é uma alegoria a uma condição feminina que existe ainda no mundo e, apesar disso, é um objecto de moda, completamente carismático, uma vestimenta que é também uma prisão, é tanta coisa!" (Cabral, 2010: 239). Desse modo, Super Napron (2005) encerra uma ironia às imposições masculinas: um homem é subjugado ao poder feminino, pacífica e subtilmente, quando completamente revestido a croché. O resultado é inquietante, no limbo da parecença entre dois super-homens: um delicado como o material têxtil, outro vigoroso, pelo ar fetiche da pele que se vislumbra.

 

 

A associação da moda ao estatuto social é evidenciada no cenário amargo de Menú do Dia (2001), onde luxuosos casacos de peles são pendurados em portas de frigorífico desprovidas de alimentos. A sensação entre calor e frio torna arrepiante o contraste sugerido entre ostentação e pobreza extrema, coexistentes na sociedade. O uso de vestuário alude à presença humana: serão pessoas famintas ou pessoas ricas e viciadas no consumo, atitude frívola insinuada pelas portas vazias? A obra consegue, com um número mínimo de elementos, expor factores sociais, aludir à moda e recriar sensações físicas. A relevância de um retrato social feito à luz da linguagem da moda, também acontece em Noiva (2001) que põe em confronto o individual e o colectivo (Figura 8). A escultura, feita de tampões e em forma de lustre, é comparável a um vestido de noiva. Vasconcelos associa Noiva à "condição da mulher [que] já não é o que era. Porque há tampões, porque há a pílula." (Ribeiro, 2005: 60), e a um mundo global de gestos de consumo semelhantes e excessivos. Analisando também Valquíria Victória (2008), feita em veludo, lantejoulas e dezenas de outros acessórios (Figura 9), encontramos mais uma conotação do vestuário adquirida em contexto social: "Ao contrário das minhas outras 'valquírias' […] concebi para Paris uma toda de preto. É mais chique." (Soromenho, 2008: 37).

 

 

 

 

5. Moda e corpo usados como meio

Não podemos falar de moda sem referir o uso do corpo como meio, tão comum entre as valquírias de Vasconcelos. Em Joujoux (2007), criada como cenário de bailado, vemos o estreitar da ligação entre conceito, objecto, mente e corpo. Enorme, imponente e observada no conjunto do movimento dos corpos, a peça, que já em si se refere a eles, funde-se na sua performance artística. Umbiga (2004), embora mais pequena, é inclusivamente descrita por Rubio (2004: 17) como "eco do corpo que se converte numa aparição de diversos apêndices." Assim, os objectos criados por Vasconcelos ganham vida própria por "vestirem" uma ideia. Nesta alegoria, somos valquírias, personificamos loiças revestidas a croché, cobiçamos o vestido de noiva para sermos um objecto luxuoso. Neste momento transitivo e transpositivo da relação entre a escultura/corpo vestido, dá-se a "transformação" da escultura em moda.

 

6. Vasconcelos une moda e arte

A artista diz-nos que moda e arte são um importante contributo para a sociedade, essencial para criticar as atitudes humanas. Nas obras que idealiza, Vasconcelos tenta reflectir aquilo que preconiza como futuro da moda e da arte: "um futuro de maior capacidade de análise da realidade e […] daquilo que, de facto, nós precisamos para mudar." (Cabral, 2010: 242)

A sua actuação não se restringe ao plano das ideias, reflecte a conjugação entre "a ideia de marca […] e a ideia de autoria […] praticada no circuito da arte contemporânea." (Melo, 2001: 33) e no da moda, gerando bens de consumo com valor cultural – que têm sido reconhecidos pelo público e legitimados pelas instituições. Assim, Vasconcelos criou a sua própria "indústria criativa", integrando mecanismos de produção e divulgação, nacional e internacional, que resultam da sua faceta multidisciplinar e da sua capacidade de gestão da arte.

 

Conclusão

A diversidade de linguagens plásticas que Joana Vasconcelos combina através da escultura é equiparável à do universo da moda como arte. Ao descontextualizar os seus significados para criar novos signos e mensagens, comprova a existência de processos e argumentos na prática artística em moda – afirma-se a moda como obra de arte.

 

Referências

'Banco! Joana Vasconcelos' (2005) Art actuel, le magazine dês arts contemporains, nº 36 (Jan/Fev), 1p., [Consult. 2009-03-15] Disponível em www.joanavasconcelos.com

Barthes, R (1999) Sistema da Moda. Lisboa: Edições 70.         [ Links ]

Cabral, A. (2010) Moda e Obra de Arte Contemporânea: Processos, Percursos e Contaminações na Obra de Joana Vasconcelos. Dissertação de mestrado. Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa.         [ Links ]

Granja, V. (2009) 'Coração Independente', VISUAIS & BARULHOS, 43 (Abr), [Consult. 2009-08-07]. Disponível em http://www.ruadebaixo.com/coracao-independente.html.         [ Links ]

Melo, A (2001) Arte. Coimbra: Quimera Editores,         [ Links ]

Nobre, S (2007) 'Lugar de Passagem', TABU, suplemento do semanário Sol, Newshold S.A, Lisboa, (24 Fev) 3p., [Consult. 2009-03-15]. Disponível em http://www.joanavasconcelos.com

Nobre, S (2009) 'Ninguém me Leva a Sério', Lisboa: TABU, Newshold S.A., 121 (3 Jan) pp.32-38, 7p.

Soromenho, A (2008) 'A Marca de Joana Vasconcelos e a Artista "Made In Portugal"', Lisboa: ÚNICA, suplemento do Jornal Expresso, Sociedade Jornalística e Editorial S.A., 1838 (19 de Janeiro) pp.32-36 e pp.37-43.

Ribeiro, A M (2005) 'Joana Vasconcelos: Um Novo Objectivismo.' Lisboa: ELLE, Hachette Filipacchi. Publicações, 202 (Jul) pp. 58-61, 4p. [Consult. 2009-03-15]. Disponível em http://www.joanavasconcelos.com.

Rodrigues, C S (2009) 'Joana Vasconcelos, Quinze Anos a Trabalhar', NOTÍCIAS MAGAZINE, suplemento do Diário de Notícias, Controlinveste Media SGPS, S.A., Lisboa 50 (Mar) p.50, 1p.

Rubio, A P (2004) Joana Vasconcelos. Porto: Mimesis.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: cabral.fashion@yahoo.com (Alexandra Cabral).

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