SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número5Enquadramento: AmbivalênciasMiguel Rio Branco: tempo, arte e documento índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

AMBIVALÊNCIAS

Mabe Bethônico e o Colecionador: o exercício de olhar e pensar através de imagens

Mabe Bethônico and the Collector: the exercise of looking and thinking through images

 

Raquel Sampaio Alberti*

*Brasil, artista visual. Graduação: bacharelado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), bacharelado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Especialização em Design Gráfico (UNISINOS). Mestranda em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes, UFRGS (em curso).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Esse artigo busca entender como o trabalho Mabe Bethônico e o Colecionador pode ser representativo de um imaginário e investido de desejos de construção e de reconstrução de memória, resignificando as imagens para além da efemeridade do consumo e transformando-as em novos objetos de interesse.

Palavras chave: Mabe Bethônico, Mabe Bethônico e o Colecionador, coleção, imaginário.

 

 

ABSTRACT
This paper attempts to understand how the work Mabe Bethônico and the Collector can be representative of an imaginary and invested of desire of construction and reconstruction of memory, resignifying images beyond the ephemeral nature of consumption and turning them into new objects of interest.

Keywords: Mabe Bethônico, Mabe Bethônico and the Collector, collection, imaginary.

 

 

Introdução

A artista brasileira Mabe Bethônico começou em 1996 a desenvolver uma coleção de imagens retiradas de jornais, agrupadas primeiramente em quatro grandes temas: destruição, corrosão, construção e flores. Com a grande profusão de imagens na contemporaneidade, a coleção expandiu-se rapidamente e foi ficando mais complexa, e Mabe precisou ampliar sua categorização, incluindo subdivisões para os temas iniciais.

Na ocasião da primeira apresentação do projeto, em Londres, a artista sentiu a necessidade de distanciar-se simbolicamente um pouco do projeto e, para isso, criou o personagem do Colecionador. A ficcionalização da figura responsável por continuar a seleção das imagens deslocou a autoria para além da artista e conferiu mais autonomia a coleção. Nesse momento, o trabalho passou a chamar-se Mabe Bethônico e o Colecionador, ao mesmo tempo título e designação de autoria.

Em 2002, o projeto foi apresentado em Belo Horizonte e totalmente incorporado ao Museu da Pampulha, conquistando completa independência em relação à artista. As pastas contendo as imagens, acondicionadas em caixas de papelão conforme as categorias determinadas por Mabe, foram postas à disposição do público no setor de hemeroteca da biblioteca do Museu. E os próprios funcionários da hemeroteca foram se responsabilizando pela continuidade da ampliação da coleção, que também recebeu colaborações do público.

 

1. Coleções

Mabe Bethônico e o Colecionador (Figura 1 e Figura 2), no momento que se integra permanentemente ao Museu da Pampulha, nos faz pensar sobre a relação das obras com as instituições que as abrigam. O projeto é uma coleção dentro de outra coleção (a de obras do Museu), e a figura do Colecionador, de certa forma, emula o papel desempenhado pela instituição museológica na seleção do que vai ou não fazer parte de seu acervo. As categorias em que estão organizadas as imagens são uma espécie de "texto de apoio", são como pistas para possíveis maneiras de como o espectador pode se relacionar com a coleção.

 

 

 

Desde sua concepção, Mabe Bethônico e o Colecionador é desafiador, começando por sua "leitura", que não é propriamente confortável. É um projeto tem foco nas possibilidades ficcionais dos documentos, e isso, somado a sua possibilidade de permanente mutação, convida a refletir sobre a natureza do objeto de arte e seu comportamento dentro de uma instituição. Através do recurso da coleção, o obra escreve uma história alternativa para as imagens que a compõe e dialoga também com o papel que a instituição tem no registro histórico dentro do campo das artes.

Segundo Walter Benjamin (2009), o ato de colecionar significa trazer para perto de si algo que tem um lugar e uma existência específica. Esse deslocamento que a coleção promove apaga as referências temporais e o contexto em que a imagem estava inscrita inicialmente. Dessa forma, cria novas associações na justaposição de imagens de diferentes origens e conteúdos. E essas novas possibilidades de leitura se dão em forma de teia, que se desdobra infinitamente, assim como se multiplicam as possibilidades de como explorar o conteúdo da coleção.

O Colecionador é uma espécie de coletor compulsivo, como um sorvedor de imagens. Mas, conforme Elisa Campos (2002), as operações de observar, recortar, classificar e guardar, nesse caso,

não correspondem, no entanto, à rigidez do trabalho do arquivista para quem o limite de variantes é necessário para racionalizar as opções de consulta, o Colecionador é mais flexível, movediço, tecendo suas tramas temáticas, permitindo-se voltar atrás para rever e reclassificar uma seqüência que, de repente, saltou-lhe aos olhos (Campos, 2002).

Essas imagens, distanciadas de suas funções originárias, também fazem com que a coleção sejam a antítese do consumo. Ou seja, quando o Colecionador toma posse de uma imagem e a traz para coleção, ele também a desloca de sua condição de mera possessão e a coloca à disposição de uma nova rede de conexões e correspondências. A imagem é testemunha de seu uso para a comunicação massiva mas, fora de seu contexto e também compulsivamente acumulada, ela reencontra sua eficácia.

Colecionar é guardar para poder em outro momento lançar um novo olhar sobre o que se guardou. E a medida que a coleção cresce, cada olhar é novo, e é modificado pelas novas relações que se pode fazer. Assim, através da apropriação e deslocamento dessas imagens, a coleção ajuda também a dar conta e explicitar como a proliferação de imagens veiculadas pelos meios de comunicação ilustram nosso imaginário contemporâneo.

 

2. Imaginário e memória

"Não é a imagem que produz o imaginário, mas o contrário" (Maffesoli, 2001). O imaginário é uma construção histórica de um grupo, país ou comunidade, e é ele quem determina a existência de determinados conjuntos de imagens. E ele é alimentado pela tecnologia, já que as imagens só existem através da técnica. Para Maffesoli, o criador (ou o artista) só é criador se ele consegue captar o que circula na sociedade. E as tecnologias de comunicação (como os jornais, por exemplo) auxiliam imensamente nesse processo, uma vez que o 'imaginário, enquanto comunhão, é comunicação.'

E qual sentido de se colecionar imagens em um mundo onde cada vez mais elas têm um caráter efêmero (e tão abundante que beira a exaustão)? Em The man who never threw anything away (1989), Ilya Kabakov lança um olhar sobre essa questão, também através de um personagem, o homem que nunca jogou nada fora. Kabakov diz que privar-se desses 'testemunhos' seria privar-nos de nossa própria memória. Na memória, todas as coisas tem igual importância e as conexões entre os pontos relacionados a nossas recordações compreendem toda história de nossa vida. Se nos privássemos de todos os objetos que acionam essas memórias, seria como eliminar todo o passado e, num certo sentido, deixar de existir.

Na série de trabalhos entitulada Date Paintings (Figura 3 e Figura 4), o artista japonês On Kawara pinta sobre telas de tamanhos pré-determinados a data do dia em que está executando a pintura. Ele segue algumas regras, e uma delas é que a tela precisa ser começada e finalizada no mesmo dia. Depois, é acondicionada em uma caixa de papelão feita à mão juntamente com um recorte de jornal do local onde Kawara estava naquele dia. As Date Paintings questionam sobre o tempo e o registro de sua passagem – e o recorte de jornal funciona como um documento, um testemunho do dia em que cada pintura foi executada. Além disso, nos oferece mais uma imagem representativa daquele momento.

 

 

 

Cláudia Maria Perrone e Selda Engelman, no artigo "O Colecionador de memórias" (2005), afimam que

Podemos estabelecer um olhar póstumo sobre o nosso presente e, assim, adivinhar o que está sendo criado todo o dia como memória afetiva e sensibilidade. A coleção e o colecionador constituem um jogo de concentração e dispersão de fragmentos-objetos, uma obra inacabada e inacabável, um labirinto com milhares de passagens que constituem as incursões criticas do colecionador (Perrone & Engelman, 2005).

Assim, Mabe Bethônico e o Colecionador lança o olhar sobre o que estamos criando como memória no dia-a-dia, mas propõe um movimento para além do simples olhar para as imagens que chegam a nós. Nos reapresenta esses recortes do cotidiano e nos permite vê-los como novos e criarmos, nós mesmos, novas vias de aproximação, novas histórias a que elas possam pertencer, sem deixar de ser um testemunho contundente do imaginário de onde elas emergem.

 

Conclusão

Mabe Bethônico e o Colecionador é uma coleção dinâmica, que lança um olhar resignificador sobre as imagens que são geradas compulsivamente pelas mídias de comunicação. Cada espectador que entra em contato com o trabalho reaviva suas memórias pessoais, enquanto se relaciona e resignifica a coleção de imagens. Portanto, podemos dizer que essa coleção é investida de desejos de construção e de reconstrução de memória, e reverte o valor de uso das imagens para além da efemeridade do pronto-consumo, permitindo transformá-las em novos objetos de interesse e permitindo também que possamos fazer leituras mais ricas e pessoais.

 

Referências

Campos, Elisa (2002). Mabe Bethônico. [Consult. 2012-01-18]. Disponível em http://www.ufmg.br/museumuseu/colecionador/colecionador/news_002.html         [ Links ]

Chiarelli, Tadeu (2002). Catálogo da exposição Apropriações / Coleções. Porto Alegre: Santander Cultural.         [ Links ]

Cooke Lynne. On Kawara. [Consult. 2012-01-18]. Disponível em http://www.diacenter.org/exhibitions/introduction/86         [ Links ]

Kabakov, Ilya (1989). The man who never threw anything away. In: Ilya Kabakov: Ten Characters. London: Institute of Contemporary Arts. ISBN: 9780905263472.         [ Links ]

Maffesoli, Michel (2001) O imaginário é uma realidade (entrevista). Porto Alegre: Revista FAMECOS nº 15.         [ Links ]

Perrone, Cláudia Maria & Engelman, Selda (2005). O colecionador de memórias. Porto Alegre: Revista Episteme, nº 20.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: raquelalberti@terra.com.br (Raquel Alberti).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons