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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

CORPOS

Expor intimidade/Falar intimidade: Elina Brotherus e Carla Filipe

Intimacy exposed / intimacy spoken: Elina Brotherus and Carla Filipe

 

Sónia Patrícia Inácio Neves*

*Portugal, artista visual. Docente na Escola das Artes na Universidade Católica Portuguesa, Porto (UCP). Graduação: Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Doutoranda em estudos artísticos na Facultad de Bellas Artes de Pontevedra da Universidad de Vigo e bolseira da FCT. Integra o Centro de Investigação em Ciências e Tecnologia das Artes (UCP – E.Artes / CITAR).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Promove-se um diálogo entre a obra de duas artistas, mais concretamente sobre trabalhos que resultam de experiências vivenciais e que apresentam diferentes modos de 'dizer' intimidade. A apresentação divide-se em duas partes onde o entendimento de identidade será observado através do discurso auto-referencial de cada uma–expondo e falando.

Palavras-chave: intimidade, auto-representação, alteridade, percurso, espectador

 

 

ABSTRACT
It promotes a dialogue between the work of two artists, specifically about pieces that result from life experiences and have different ways of 'saying' intimacy. The presentation is divided into two parts where the understanding of identity is observed through the self-referential discourse of each one–exposing and speaking.

Keywords: intimacy, self-representation, otherness, course, spectator

 

 

Introdução

Ao longo da história foi dado ao artista a possibilidade de um outro olhar sobre a criação artística, onde o centro é transferido voltando-se por vezes para a produção exterior. Este exercício de falar sobre o 'outro' legitima um pensamento próprio em que o artista continua a direccionar os seus interesses sobre assuntos que o agitam, o que garante que a arte se reflicta e se repita nos diversos âmbitos. O tema para esta comunicação é a intimidade baseada num discurso auto-referencial e define-se em duas acções: expor e falar. Cada parte é protagonizada por uma artista promovendo-se um encontro geracional e um diálogo conceptual entre duas autoras com geografias distintas: Elina Brotherus e Carla Filipe.

Sobre o percurso artístico, e numa breve nota, Elina Brotherus nasceu em Helsínquia em 1971, formou-se em Fotografia pela University of Art and Design Helsinki no ano 2000, expõe desde 1998 e tem vindo a ser financiada pelo Arts Council of Finland. Em 1999 faz uma residência artística em França e criou um vínculo ao país, vive entre Helsínquia e Paris. Carla Filipe nasceu no distrito de Aveiro em 1973, licenciou-se em 2002 pela Faculdade de Belas Artes no Porto, expõe desde 2001 e co-organizou dois projectos com mostras em espaços independentes–Salão Olímpico e Apêndice. Em 2010 sai de Portugal para Londres numa residência financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, voltou para o Porto onde vive actualmente.

 

1. Expor Intimidade: O autêntico

Vi pela primeira vez uma fotografia de Elina Brotherus na capa de um livro intitulado The Photograph as Contemporary Art (2004) da autoria de Charlotte Cotton. No interior encontro-a no capítulo "Intimate Life" ao lado de Nan Goldin, Nobuyoshi Araki, Larry Clark e a geração seguinte de Juergen Teller, Corinne Day, Wolfgang Tillmans, entre outros. Embora estes nomes pertençam ao legado da snapshot aesthetics, em Elina Brotherus o instantâneo não é compreendido como imagem mas como vivência que é convertida em episódio e documentado numa linguagem mais controlada e conduzida da fotografia contemporânea, uma construção. As suas fotografias resultam de uma acção intuitiva e imediata de 'dias decisivos' (Brotherus, 1999) e da serialidade dessas acções; o médium fotográfico permite-lhe uma condição para a auto-observação, sendo que a experiência do instantâneo é simultaneamente real e profunda e não uma documentação credível do quotidiano, num registo que defino como descomprometido. A suspensão que existe entre o momento e o resultado é muito importante no seu processo porque acontece um afastamento–somente possível na fotografia analógica–, e daí advém uma capacidade para ver o problema de fora, numa atitude, como a própria diz, voyeurista e catártica. A sua obra consolida-se na auto-representação, subtilmente comprovado pelo indício do cabo do disparador da câmara fotográfica: um fio condutor que une o retratado ao observador.

Brotherus acredita numa profunda semelhança entre sujeitos, um ser global, onde a ideia do 'outro' se dilui pela compreensão familiar de certos episódios–ou instantes–da sua vida. A artista empresta o seu corpo à arte, um corpo veículo que se dispõe a ceder sentimentos, neste sentido a fotografia surge como uma superfície sobre a qual se projectam sensações e desejos–que tanto acontece na experiência do cinema. A série Das Mädchen sprach von Liebe (1997-1999), que traduzido significa a menina falou de amor, fala-nos sobre "o amor e seus efeitos colaterais" (Brotherus, 1999) que documentam uma relação amorosa curta e fracassada. Honeymoon, I hate sex, Divorce portrait, This is the first day of the rest of your life, Love bites, False memories, The fundamental loneliness, Landscapes and escapes e Epilogue, dão título às fotografias e colocam marcos emocionais pelos quais a artista passou. Em Epilogue (1999) a encenação aparece, simbolicamente, como o desfecho de uma história de amor, as luvas que agarram a cara da artista corporizam o ex-marido (já não se tocam). O momento fotográfico é inquietante, experienciam-se tensões antagónicas de amor e ressentimento, descontrolo e domínio. Esta figura que reveste o fundo escuro, o 'assassino', submete-a ao confronto do olhar fora-de-si, obrigando-a a reconhecer o fim. The new painting (2001-2004) segue outra direcção, deriva de um projecto em que a paisagem invade o quadro fotográfico e se manifesta numa visão subjectiva de um interior: "Where self-portraits are windows into myself, landscapes are windows opening outward from me." (Brotherus, 2000) O tema central da série é a paisagem natural, onde é evocado o legado pictórico da natureza enquanto entidade imponente e auspiciosa. Brotherus ocupa parte dessas paisagens, quer sejam no exterior ou no interior de uma casa a figura humana é entendida como um objecto a ser integrado no quadro, um modelo, não um sujeito. A auto-representação interage com o atributo das coisas e subentende-se uma suspensão biográfica. Num projecto mais recente, e prosseguindo com a perspectiva da pintura, chega-nos a artista em trabalho, Artists at work (2009): a situação desdobra-se na modelo que é pintada e na artista que se retrata. Brotherus transpõe a intimidade para o local de trabalho, um atelier. Uma intimidade que não pertence mais à índole afectiva e que se traduz num corpo presente (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4, Figura 5, Figura 6).

 

 

 

 

2. Falar intimidade: ecoando o contexto

Em 2003 conheci uma artista que co-produzia, com mais quatro amigos, exposições na cave de num café situado na rua das galerias do Porto–o Salão Olímpico. Quando se acompanha um trabalho percebe-se um percurso e, em Carla Filipe, as partes apontam para uma condição que lhe é particular e a distingue no elenco português: trata-se de uma artista que se deixa levar pelo contexto. Família, amigos, empregos, a rua, a própria arte, trazem-lhe matéria que se converte em arquivo e que se vai multiplicando no atelier em imagens, textos e objectos; posteriormente organizados e expostos conforme a especificidade espacial e sensível em que se insere. Viajar ou estar fora de Portugal foi determinante para o seu percurso: visita em 2003 a Documenta em Kassel que diz ter sido decisivo para o seu interesse sobre o local em antítese com o global; em 2008 participa numa exposição colectiva em Bristol; e dois anos depois faz uma residência artística em Londres onde, pela primeira vez, se dedica a tempo integral ao atelier. O rumo que foi tomando suscitou-lhe um interesse para isto de ser uma artista portuguesa, em Portugal ou 'lá fora' e não tanto para conteúdos de uma ordem mais privada aos quais nos familiarizámos inicialmente. Em dez anos de trabalho a própria refere que a obra se adapta a duas condições "a primeira fase onde sou trabalhadora e artista e a segunda fase onde me dedico só à produção artística" (Carla Filipe, comunicação pessoal, 2011) As obras que se ilustram nesta comunicação enquadram-se num período em que Carla Filipe era trabalhadora e artista.

Para Zona de Estar (2004)–produzido no espaço que dirigia–montou pequenas ilhas de plantas de várias espécies. As condições do local não eram as mais propícias e cuidou diariamente das plantas chegando mesmo a cartografar, lado a lado, a evolução das espécies e o seu estado de espírito (Figura 7, Figura 8). Quando planeou a exposição estava desempregada e a própria reporta-se para o projecto como uma carência do compromisso. A artista também quis trabalhar a ideia de resistência evidenciando uma relação entre a sobrevivência da espécie e o contexto artístico do Porto; interessou-lhe a transformação das plantas no lugar, situação que surgiu depois de ter observado, enquanto vigilante em Serralves, como as obras se alteravam no espaço expositivo; por fim acrescenta, que também pretendia um contraste do universo feminino, que a instalação claramente imanava, com o espaço manifestamente masculino do café. Em Áreas Periurbanas II – Doação Comunitária com cadeado (2006) Filipe deu continuidade a uma prática doméstica dedicando-se à construção de uma horta improvisada no exterior do edifício. O trabalho "foi o resultado de um arquivo fotográfico a hortas e jardins ligados ao universo dos caminhos de ferro portugueses" e "se tivesse optado por expor o arquivo fotográfico nunca teria tido acesso às várias realidades que fui conhecendo ao longo da montagem, foi uma continuação do arquivo, um arquivo-vivo" (Carla Filipe, comunicação pessoal, 2011) Nos projectos Estudo de campo, Desertar, antes que ganhe um cancro (2007) e Hospitalidade (2009) regressa à disciplina do desenho (Figura 9, Figura 10, Figura 11). A quantidade de informação que apresentou nos dois eventos é de tal ordem excessiva que o espectador fica constrangido. Aqui o desenho e escrita fundem-se obsessivamente, misturando texto e imagem em conteúdos de natureza auto-referenciais. A artista descreve esta necessidade de querer registar tudo, de 'etnografar', como sendo um combate a um vazio patente, universal, onde também veicula a sua intimidade. O método parece simples: uma interpretação da realidade onde o facto e ficção se misturam; o resultado porém é complexo, no enredo de personagens, histórias, lugares, acontecimentos, referências e transcrições que somente um olhar muito atento poderá seguir (a própria autora comenta que se perde e não se reconhece anos mais tarde). Em A Espera e o Espaço – variações de densidade, uma das séries produzidas para Hospitalidade, a situação do desenho desdobra-se no local onde foi montada a peça. Visitantes, doentes e profissionais contemplam um objecto sob condição de quem está 'à espera.' Com este projecto Filipe viu uma oportunidade para relatar uma experiência comum, enleou a sua versão da história com testemunhos de outros, e deu a contemplar a quem circulava ilustrações verídicas do universo hospitalar.

 

 

 

 

 

Conclusão

Por meio do discurso auto-referencial de duas mulheres conseguimos entender uma identidade própria, duas formas de agir: uma que se expõe e a outra que fala. Talvez tenha que ver com a geografia que as separa. Elina Brotherus detém de um dispositivo que lhe replica, mais do que um corpo, um olhar profundo de si mesma; a câmara fotográfica serve-lhe de 'barómetro' afectivo reproduzindo leituras autênticas, a obra é nítida. Já Carla Filipe não dispõe de um instrumento que lhe valide uma imagem de si própria, serve-se de uma esfera social, de um arquivo e contextos sensíveis que lhe propõem múltiplos caminhos para se localizar. A obra não se observa somente por imagens, há que a ler e percorrer, e para isso precisamos de todo o corpo.

 

Referências

Brotherus, Elina. Disponível em http://www.elinabrotherus.com/photography/index.php         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: email.sonia.neves@gmail.com (Sónia Neves).

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