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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

CORPOS

Marina Abramović, dimensões da culpa: do corpo da vida sacra

Marina Abramović, dimensions of guilt: The body of the sacred life

 

Ricardo Mari Neto*

*Brasil, artista visual. Bacharelado em Artes Visuais, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bacharelado em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Marina Abramović, no ano de 1974, apresenta Rhythm 0, performance em que se encontra sujeita a toda espécie de violência. Este artigo tem por objetivo investigar as dimensões de um corpo presumido culpado e, para tanto, recorre-se ao conceito agambeniano de homo sacer – figura do direito romano arcaico portadora da vida nua, vida sacra -, cuja particularidade deve-se a um duplo cárater: insacrificável e, porém, matável.

Palavras chave: corpo, performance, devir, vida nua.

 

 

ABSTRACT
Marina Abramović, in 1974, presents Rhythm 0, performance in that is subjects all violence types. This article has for objective to investigate the dimensions of a body presumed guilty and, for so much, refers to the concept of homo sacer of Agamben – figure of the right archaic roman bearer of the nude life, sacred life – whose particularity is due to a double character: cannot be sacrificed yet may, nevertheless, be killed.

Keywords: body, performance, becoming, bare life.

 

 

A artista performática Marina Abramović (Belgrado, 30 de novembro de 1946), entre os anos de 1973 e 1974, desenvolveria uma série de performances entitulada Rhythms, composta por Rhythm 10, Rhythm 5, Rhythm 2, Rhythm 4 e Rhythm 0, respectivamente. O trabalho sobre o qual este artigo se concentra é o último da série, Rhythm 0 (Figura 1, Figura 2, Figura 3 e Figura 4), realizado em Nápoles, em 1974, único dentre os cinco em que a artista permite a intervenção ativa do público. Abramović o descreveria como uma "investigação sobre o corpo quando consciente e inconsciente" (Abramović apud Ward, 2010: 134). A performance busca representar a continuidade entre consciência e inconsciência através de "um extraordinário e paradoxal esforço da vontade, a grosso modo, a vontade de abandono da vontade" (Ward, 2010: 134).

 

 

 

 

Os visitantes da galeria deparam-se com a artista imóvel, impassível, não exibindo qualquer reação; além de uma mesa sobre a qual estaria reunida uma série de objetos. Na parede havia a seguinte instrução: "Há 72 objetos sobre a mesa que podem ser utilizados sobre mim conforme desejado. Performance: Eu sou o objeto. Durante este período assumo total responsabilidade" (Ward, 2010: 136). A descrição mais detalhada do que teria acontecido na galeria, durante as seis horas de apresentação, é de McEvilley:

Alguém caminhou em seu entorno. Alguém impulsionou o seu braço no ar. Alguém lhe tocou um pouco intimamente. […] Na terceira hora todas as suas roupas foram cortadas com lâminas de barbear. Na quarta hora as mesmas lâminas começaram a explorar sua pele. Sua garganta foi cortada para que alguém pudesse sugar seu sangue. Várias menores agressões sexuais foram realizadas em seu corpo. Ela estava tão comprometida com a peça que não teria resistido ao estupro ou assassinato. Diante de sua abdicação da vontade, com este implícito colapso da psicologia humana, um grupo que buscava protegê-la começou a se definir na platéia. Quando uma arma carregada foi empurrada para a cabeça de Marina, tendo o seu próprio dedo sido colocado no gatilho, uma briga irrompeu entre as facções do público (McEvilley, 1982: 52).

A potência deste trabalho deve-se não tanto aos 72 objetos dispostos sobre a mesa, dentre os quais muitos poderiam dar fim a uma vida, quanto a assunção do risco por parte da artista, que se responsabilizava por tudo o que naquela noite viesse a acontecer. Quem se não o condenado indefensável, já subserviente, encontra-se impassível diante daquele que lhe aponta a arma? Qual figura, que não a da autoridade competente, dispõe de uma arma de fogo se não aquela do bandido? Quem se não a puta, "Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído sete demônios" (Lucas 8:2), seria se não a culpada por corromper aquele que lhe suga os seios fartos, por oferecer prazeres baratos até mesmo ao pedinte mais repugnante? Quem se não a mãe, culpada pelo crime mais bárbaro, poderia inspirar compaixão àqueles mesmos que a julgavam facínora, levando-os a arriscarem as próprias vidas em defesa daquela criminosa já ao pé do cadafalso? Quem se não Madona, a virgem que engravidara e dera à luz "um filho, por obra do Espírito Santo" (Mateus 1:23:25), portaria a culpa e a inocência por acolher em suas entranhas Aquele cujo conhecimento estremeria o mundo dos antigos? A artista mesmo o confessaria: "o público começou a se tornar cada vez mais agressivo, e eles projetaram três imagens básicas sobre mim: a imagem da Madonna, a imagem da mãe e a imagem da prostituta" (Abramović, 2002: 30).

Marina encarnava a figura do bandido, da puta, da mãe e da Madona – todos condenáveis! Criava para si um corpo sem órgãos, corpo em constante devir, "que é não desejo, mas também desejo. Não é uma noção, um conceito, mas antes uma prática, um conjunto de práticas […], povoado por intensidades" (Deleuze e Guattari, 2008). Corpo de Abramović, corpo de Antonin Ataud, que declararia guerra aos órgãos: "porque atem-me se quiserem, mas nada há de mais inútil do que um órgão" (Artaud apud Deleuze e Guattari, 2008: 10). Interroga-se o autor:

Quem sou? / De onde venho? / Eu sou o Antonin Artaud / E basta dizê-lo, / Como sei dizê-lo, / Imediatamente / Vereis o meu corpo atuar / Voar em estilhaços / E em dois mil aspectos notórios / Refazer / Um novo corpo / Onde nunca mais / Podereis / Esquecer-me (Artaud, 1983: 96).

A artista tornava-se o culpado, e este devir-bandido, somente o pode ser aquele inocente que faz de seu corpo o lugar semântico por excelência(Sánchez, 2004). Levinas o chamaria de corpo nu, corpo que é aderência ao eu, "mas aderência irrevogável da qual não escapamos, união com o sabor trágico do definitivo, é dizer, a brutalidade do feito de ser" (Levinas, 2006: 14). A alegoria confundia-se com o real – antinomia inerente a vida do artista -, e o culpado deve pagar pelos delitos cometidos. Sobre a experiência da punição, falaria Abramović:

Percebi então que o público pode matar você. Se você lhes dá total liberdade, eles vão se tornar frenéticos o suficiente para matá-lo. […] Um homem apertou a arma com força contra a minha cabeça. Eu podia sentir a sua intenção.[…] Eu não consegui me livrar do sentimento de medo por um longo tempo (O'Hagan: 2010).

É este corpo opaco, que carrega consigo o ser da performatividade, corpo discursivo doser-recortado-no-mundo (Sánchez, 2004), que Marina suporta em Rhythm 0 enquanto culpado, que somente o é se culpado. Segundo Benjamin, "aquele que é proclamado sagrado é (grifo nosso) precisamente o portador destinado à culpa: a vida nua" (Benjamin apud Agamben, 2007: 74), ou seja, é esta vida nua a que é proclamada sacra. De acordo com Benveniste, para tornar a vítima sagrada, é preciso "separá-la do mundo dos viventes, é preciso que esta atravesse o limiar que separa os dois universos: este é o objetivo da matança" (Benveniste apud Agamben, 2007: 75). Abramović, em Rhythm 0, artista, comungava com aqueles que dela abusavam, ou com o resto dos seres ditos normais? Fazia parte do mundo dos humanos aquela que estava tão comprometida com a performance que nem mesmo se oporia ao estupro ou assassinato? Não, ela era o bandido, e Henry Miller explicaria o por quê:

Lado a lado com a espécie humana corre outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, incitados por desconhecidos impulsos, tomam a massa sem vida da humanidade e, pela febre e pelo fermento com que a impregnam, transformam a massa úmida em pão, e pão em vinho, e o vinho em canção. […] Vejo esta outra raça de indivíduos esquadrinhando o universo, virando tudo de cabeça pra baixo, e os pés sempre se movendo em sangue e lágrima, as mãos sempre vazias, sempre se estendendo na tentativa de agarrar o além, o deus inatingível: matando tudo ao seu alcance a fim de acalmar o monstro que lhe corrói as entranhas. O vejo quando arrancam os cabelos em seu esforço para compreender, para apreender o que é eternamente inalcançável […]. E tudo quanto fique aquém desse aterrorizador espetáculo, tudo quanto seja menos sobressaltante, menos terrificante, menos louco, menos delirante, menos contagiante, não é arte. Esse resto é falsificação. Esse resto é humano. Pertence a vida e à ausência de vida (Miller, 2003: 230-231).

É o homo sacer aquela figura à qual, pela primeira vez, fora afirmado o caráter sacro da vida nua. Sendo assim, o homo sacer é aquele que o povo julgou por algum delito, e não é lícito sacrificá-lo, mas se alguém o mata, não será condenado por homicídio. "A vida insacrificável e, todavia, matável, é a vida sacra" (Agamben, 2007: 90). Marina, ao expôr aquele corpo da escritura à morte, a todo tipo de violência, expõe sua vida de homo sacer, uma vez que é matável, porém insacrificável, e matável por que culpada, insacrificável por que detentora da vida nua, vida sacra.

A performer seduz o público, o torna soberano, incita-o a deixar aflorar o que nele há de mais selvagem, e somente em relação ao soberano "todos os homens são potencialmente homo sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberano" (Agamben, 2007: 91). Tanto a figura do homo sacer quanto a do homem-lobo hobbesiano fazem referência àquele que é considerado bandido perante a comunidade, e a atmosfera instaurada por Rhythm 0 é aquela da expressão homo homini lupus, em que o homem é para o homem um homo sacer, cuja vida não é a simples vida natural, mas a vida exposta a morte, que é o elemento político originário."Nem bíos político nem zoé natural, a vida sacra é a zona de indistinção na qual, implicando-se e excluíndo-se um ao outro, estes se constituem mutuamente" (Agamben, 2007: 98).

 

Referências

Abramović, Marina (2002) Marina Abramović . Mailand: Charta, 2002.         [ Links ]

Agamben, Giorgio (2007) Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.         [ Links ]

Deleuze, Gilles & GUATTARI, Félix.(2008) Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, v. 3. São Paulo: Editora 34, 2008; p. 9-13.         [ Links ]

Levinas, Emmanuel (2006) Algunas Reflexiones Sobre la Filosofia del Hitlerismo. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2006.         [ Links ]

McEvilley, Thomas (1983) Marina Abramović/Ulay. New York: ARTFORUM, XXII/1 (setembro 1983); p. 52-55.         [ Links ]

Miller, Henry (2003) Trópico de Câncer. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003; p. 19-23.         [ Links ]

O'Hagan, Sean (2010) Interview: Marina Abramović . [Consult. 2012-01-20] Texto. Disponível em http://www.guardian.co.uk/artanddesign/2010/oct/03/interview-marina-abramovic-performance-artist         [ Links ]

Sánchez, Pedro A. Cruz (2004) La Vigilia del Cuerpo: Arte y Experiencia Corporal en la Contemporaneidad. Murcia: Tabularium, 2004.         [ Links ]

Ward, Frazer (2010) The Do-it-yourself' Artwork. Marina Abramović: approaching zero.Org. Anna Dezeuze. London: Rethinking Art's Histories, 2010.         [ Links ]

Performance Rhythm 0, de Marina Abramović, no Studio Morra, Nápoles, 1974 [Consult. 2012-01-20] Fotografia. Disponível em http://www.lissongallery.com/#/exhibitions/2010-10-13_marina-abramovi/

Performance Rhythm 0, de Marina Abramović, no Studio Morra, Nápoles, 1974 [Consult. 2012-01-20] Fotografia. Disponível em http://www.moma.org/images/dynamic_content/exhibition_page/42552.jpg         [ Links ]

Performance Rhythm 0, de Marina Abramović, no Studio Morra, Nápoles, 1974 [Consult. 2012-01-20] Fotografia. Disponível em http://www.thedaysofyore.com/blog/wp-content/uploads/2011/12/MA4357_Rhythm_Zero_011-22A_Book.jpg         [ Links ]

Performance Rhythm 0, de Marina Abramović, no Studio Morra, Nápoles, 1974 [Consult. 2012-01-20] Fotografia. Disponível em http://museomagazine.com/#938495/MARINA-ABRAMOVI         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: ricardomarisp@gmail.com (Ricardo Mari).

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