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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

MÃOS

HANDS

A materialidade nos livros de artista de Ulises Carrión

Materiality on the books of Ulises Carrión

 

Vicente Martínez Barrios*

*Brasil, artista plástico. Docente no Programa de Pós-graduação em Arte da Universidade de Brasília (Brasil), linha de pesquisa Poéticas Contemporâneas. Atualmente é pesquisador convidado na SciencesPo. / Centre Nationale de Recherche Scientifique – CNRS (Paris, França), em pós-doutorado (apoio CAPES, Ministério da Educação do Brasil). Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil), Master in Fine Arts pelo Pratt Institute (New York, USA) e Licenciado em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília (Brasil).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
Ulises Carrión contribuiu para a consolidação do livro de artista como um gênero de produção artística na década de 1970. A partir de explorações que ampliam as possibilidades do codex, o livro deixa de ser compreendido em uma perspectiva exclusivamente literária e linguística. Sua produção expande o sentido da materialidade própria do livro. O texto-tecido do livro passa a ser colocado numa dimensão de ordem plástica, da estesia.

Palavras-chave: Livro de artista, materialidade, Ulises Carrión.

 

 

ABSTRACT:
Ulises Carrión contributed for the consolidation of the field of artist's books as a an artistic genre in the seventies. He explores new possibilities which enlarge and expand the codex, the book is not approached exclusively in a literary perspective. His production expanded the material meaning of the book/ the materiality proper to books. The text (meaning) of the book approaches/reaches a plastic dimension, of estesic order.

Keywords: Artists' books, materiality, Ulises Carrión.

 

 

Introdução

Ulises Carrión, artista mexicano residente em Amsterdam, Holanda, fundou a livraria Others Books and So em 1975, sendo esta considerada a primeira livraria a trabalhar com venda e divulgação de livros de artista. Contribuiu para a consolidação do livro de artista como gênero de produção artística na década de 1970, como também para a expansão do circuito alternativo para as artes nesta mesma década. Em El nuevo arte de hacer libro Carrión define o livro como uma “sequência coerente de páginas” e “uma sequência espaço-temporal”. Entre os livros publicados por esse artista, analisamos Tell Me What Sort of Wall Paper Your Room Has and I Will Tell You Who You Are e Mirror Box. Em cada um desses livros, analisamos como o conjunto de qualidades plásticas confere unidade ao livro, definido por Carrión como “uma estrutura”.

 

1. A visão de Carrión sobre o livro

Carrión tinha preferência por livros de artista que pareçam simplesmente livros, despretensiosos, e que fossem de baixo custo. Preferia livros que, como ele mesmo afirmava, não parecessem arty, ou seja, estetizados demais ou, poderíamos dizer tendo em vista as posições de Carrión, “bonitinhos”. O artista estava interessado em livros “que claramente façam referência a livros comuns” (Carrión, 2008: 178). A diferença entre um livro de artista e um livro considerado ordinário estaria nas suas concepções.

Embora tivesse dedicado sua trajetória artística a este gênero, Carrión não gostava do termo livro de artista (artist's book) e tinha preferência pelo termo bookwork, por considerar que o termo livro de artista pressupõe uma associação exclusivamente à atividade no campo das artes visuais.

 

2.Tell me What Sort of Wall paper Your Room Has and I Will Tell You Who You Are

Iniciamos nossa análise com o livro Tell Me What Sort of Wall Paper Your Room Has and I Will Tell You Who You Are, realizado em 1973. Possui capa neutra, em preto fosco, sendo esta cor uniforme e sem qualquer texto ou imagem impressos. Ao abrir o livro, encontramos em seu interior uma diversidade de papéis. São vinte páginas em diferentes papéis de parede em cores e padrões diversificados, sem numeração. Sobre cada página há uma impressão em mimeógrafo, em tinta preta e tipografia discreta. Em cada uma das páginas há uma pequena legenda identificando e associando cada um dos padrões de papel de parede ao respectivo ocupante do quarto onde o papel estaria colocado. Em cada legenda, o texto marca a relação de um sujeito, fictício ou não, e de membros de sua família com os quartos aos quais os papéis pertencem: my room, parent's room, my sister room, uncle's room, my wife's room. Em seguida, apresenta uma sequência de locais com os quais o mesmo sujeito tem algum tipo de relação profissional: teacher's room, Doctor's room, my account's room, my lawyer's room, my Psychiatrist's room, my boss room. E, após essa, apresenta uma sequência de quartos de outras pessoas com as quais mantém algum tipo de relação pessoal: my lover's room, neighbour's room, servant's room, guest room, their room, your room, a room. Na última página, deixa em aberto as possibilidades de pertencimento: …'s room. O verso de cada página preserva e revela as qualidades do verso do papel de parede.

Esse livro de Carrión nos proporciona um modo diferente de ler ao integrar numa mesma página o papel de parede que consideramos fundo, ou suporte, e a tipografia impressa. Neste livro não existe uma relação hierárquica entre figura e fundo, entre a tipografia e a página em branco do livro tradicional. O suporte-página de papel de parede se torna significante ativo e não mais funciona como um elemento passivo que recebe e sobre o qual é realizada a impressão tipográfica.

A construção de sentido do livro, não se da exclusivamente pelo texto impresso, mas sim a partir da interação, da inter-relação e do entrelaçamento entre a palavra impressa e os elementos visuais e tácteis que nos são apresentados e que compõem o livro como um todo. Somos conduzidos pelos diversos ambientes – quartos – atravessando cores, formas, texturas e padrões de diferentes papéis de parede que revelam os humores, os estados patêmicos, bem como o caráter de cada um dos seus ocupantes. Na passagem de uma página para a seguinte, somos conduzidos a sentir os diferentes humores dos ambientes por meio da percepção de cores e texturas, pela sequência de elementos escolhidos e apresentados e pela maneira como estes diferentes elementos são colocados em relação no interior do livro. O caráter, a personalidade e o humor de cada individuo, bem como seu perfil, nos são traçados a partir das escolhas realizadas pelo autor. Os contrastes que se estabelecem na sequência das páginas e os padrões selecionados, assim como suas cores e texturas, nos ajudam a construir a personalidade de cada um dos ocupantes dos quartos. Conduzem-nos também a imaginar suas preferências, seus gostos, seus costumes, sua rotina, seus hábitos etc. Alguns são mais delicados, retraídos, sonhadores. Outros são joviais e espirituosos. Outros possuem personalidade forte, são possessivos, impetuosos, sanguíneos. Outros são brumosos, misteriosos. Outros são ingênuos, inocentes, sem malícia.

Não podemos deixar de enfatizar a relação que se estabelece entre esse trabalho e as colagens cubistas, em que eram incorporados papéis de parede e fragmentos de jornais ao interior da tela, estabelecendo uma nova relação entre pintura e mundo por meio do uso de elementos da realidade cotidiana, do dia a dia, que migram e passam a ser inseridos no contexto pictórico retangular do quadro. Não é casual que Carrión aborde no seu texto Bookworks revisited (2008: 157) a diferença entre a leitura de uma pintura pré-cubista, que prevê um ponto de vista único e uma linearidade, e a de uma pintura cubista que impõe a fragmentação e a simultaneidade do olhar. Por outro lado, retoma também procedimentos utilizados por artistas da vanguardas russas do inicio do século vinte como Vaselii Kamenski, que faz uso também de pedaços de diferentes tecidos como suporte e página na confecção de livros.

Carrión transforma a página em muro, em parede. Ao retirar o papel de parede do lugar para o qual é destinado e inserí-lo no contexto do livro, a página figurativiza o muro do quarto de cada uma das personalidades retratadas.

 

3. Mirror Box

O segundo livro é Mirror Box, de 1979. Este livro é composto de dois volumes confeccionados em material maleável: feltro artificial. Cada um dos volumes possui doze páginas, não numeradas como no livro anteriormente analisado, e apresenta diferenças de qualidade. O aspecto geral do livro é artesanal, de páginas cortadas de forma ligeiramente irregular e encadernação feita com um grampo metálico na lateral que se sobrepõe à fita preta que recobre a lombada. O primeiro volume, que recebe o título Mirror Box, tem as páginas brancas mais amareladas que as do segundo, de material mais branco. As páginas do primeiro volume de feltro são também mais duras que as do segundo, confeccionadas de um feltro mais mole.

Sobre o feltro, em cada página, o livro apresenta duas figuras impressas manualmente com carimbo que podemos reconhecer como as de dois boxeadores. Cada uma das figuras é de uma cor diferente, uma é azul e a outra é vermelha. As duas figuras estão colocadas em posição de confronto e se repetem com ligeiras variações ao longo de todas as páginas, mais ou menos centralizadas.

A leitura do livro se inicia pelo primeiro volume, de páginas de feltro mais rígido. Ao tocá-lo, percebe-se que este não apresenta a mesma rigidez em todas as páginas. Essas apresentam qualidades de rigidez diferenciadas que provocam e estimulam o tato. Atinge-se um clímax no meio do livro quando as páginas apresentam uma rigidez maior e, em seguida, a percebe-se que as páginas finais possuem qualidades semelhantes às das iniciais.

Ao passar para o segundo livro, elaborado com feltro mais branco e macio, nosso tato é novamente estimulado pelo contraste com a rigidez-macia do volume anterior. A qualidade de maciez é explorada com intensidade crescente. A impressão realizada com carimbo sobre o feltro produz resultados diferenciados. às vezes se obtém como resultado uma figura de contorno irregular, manchada, e produz-se uma qualidade aquarelada. Outras vezes produz-se um contorno mais definido e preciso.

As superfícies das páginas de feltro são parcialmente transparentes, de tal modo que percebe-se em seu manuseio uma mudança de cor em decorrência da dobra ou da pressão que é exercida sobre ela, produzindo variações na luz que incide sobre a superfície. Nessa manipulação obtém-se uma diversidade de tonalidades de branco.

Cria-se no livro um contraste, uma oposição, entre a suavidade e a delicadeza do material das páginas e as imagens impressas. A leitura táctil que a mão nos oferece ao entrar em contato com o feltro e reconhecer sua suavidade contrasta com a imagem impressa de dois boxeadores em confronto. A oposição se dá também em termos cromáticos: uma das figuras é azul e a outra vermelha. O feltro é material dócil ao tato, macio, e obediente, e serve para amortizar golpes. é também utilizado na absorção de líquidos, sendo esta qualidade revelada pelo modo no qual a imagem impressa com carimbo adquire uma aparência aquarelada, que contribui para a representação de um confronto físico entre corpos e da ação associada à transpiração produzida pelo esforço da luta. A imagem é de firmeza e permanente estado de tensão. Cada um dos corpos encontra-se em alerta para enfrentar os golpes do adversário. Este enfrentamento é apaziguado pelo feltro, que neutraliza os contrários ao integrá-los a um plano maior, o da delicadeza e da suavidade do tato, possuidor de virtudes para dirimir conflitos.

A materialidade do feltro que possui maciez, suavidade e delicadeza, é metáfora para o apaziguamento de litígios e conflitos. Não é casual que este livro tenha sido editado por Carrión na década de 1970, período ainda da Guerra Fria, em um mundo polarizado.

 

Conclusão

Nesses livros poderíamos falar de uma leitura do manuseio e não mais de uma leitura alfabética, como diz o artista brasileiro Wladimir Dias Pino (Silveira, 2001: 272). Nessa maneira de ler, a interação entre a mão do leitor e o material do livro, bem como cheiro, texturas (visuais ou matéricas) e cores organizam o sentido do texto. O contato com a materialidade especifica e diferenciada de cada página organiza e constrói o sentido de leitura do livro. A materialidade do suporte-página escolhido e as características físicas do livro tornam-se geradoras de sentido.

A página deixa de ser suporte e fundo para a ação narrativa construída por meio da visualidade tipográfica das letras sobre a página. A página-suporte passa a desempenhar um papel ativo na construção do livro. Imagem, matéria, cor e tipografia se sobrepõem, entrelaçam-se, colidem e se complementam.

 

Referências

Carrión, Ulises (2008) Quant aux livres/ On Book. Geneve: éditions Héros-Limite. ISBN 978-2-970030-01-0        [ Links ]

Carrión, Ulises (1992) We have won! Haven't we? Amsterdam: Museum Fodor.         [ Links ]

Drucker, Johanna (1995) The Century of Artists' Books. New York: Granary Books.         [ Links ]

Lyons, Joan, ed.(1985) Artists' Books: A critical Anthology and Sourcebook. Rochester, N.Y.: Visual Studies workshop Press. ISBN 0-89822-041-6/0-87905-207-4(Peregrine Smith)/0-87905-280-5(pbk.         [ Links ])

Moeglin-Delcroix, Anne (1997) Esthetique du livre d' artiste 1960/1980. Paris: Jean Michel Place and Bibliothéque Nationale de France.         [ Links ]

Silveira, Paulo (2001) A pagina violada: Da ternura à injúria na construção do livro de artista. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal de Rio Grande do Sul.         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: vmartinezbarrios@gmail.com (Vicente Martínez Barrios).

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