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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

EDIÇÕES

PUBLISHING

Fé (uma corrente de anéis que Lhe pertencem). A Aliança do Anel – um tributo de Cristina Filipe a Santa Joana d’Arc

Faith (a chain of rings that belongs to her): The Alliance of the Ring – a Cristina Filipe’s tribute to Saint Jeanne d’Arc

 

Isabel Ribeiro de Albuquerque*

* Portugal, artista visual, joalheira. Professora na Escola Secundária Fernando Namora, Lisboa. Licenciatura em Pintura, Faculdade de Belas Artes, Universidade de Lisboa (FBAUL); Mestrado em Teorias de Arte (FBAUL).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
Este livro de artista reflecte o processo de criação de Cristina Filipe. Resulta dum projecto que se centra nos valores e nas relações humanas que foi desenvolvido durante o mestrado em joalharia, em Farnham, uma pequena cidade inglesa em Surrey. A cooperação de vinte e oito pessoas da comunidade revelou-se fundamental para que este trabalho resultasse num gesto simbólico, um tributo a Santa Joana d’Arc, a quem é dedicada a igreja católica local.

Palavras chave: Joana d’Arc, comunidade, conceptual, jóia, aliança.

 

ABSTRACT:
This artist book shows the creation process of Cristina Filipe. It results from a project that focuses the values and human relationships, that was made during her jewellery MADegree, at Farnham, a little town, in Surrey. The cooperation of 28 people from the community was essential to this work resulted in a symbolic gesture, a tribute to St. Joan of Arc, to whom is dedicated the local Catholic church.

Keywords: Jeanne d’Arc, community, conceptual, jewell, alliance.

 

 

Introdução

O livro de artista de Cristina Filipe, à primeira vista, poderia ser considerado apenas um catálogo de exposição, dado que contem um texto escrito pela historiadora de arte Katalin Aknai, publicado aquando da exposição Faith (a chain of rings that belongs to her), na Galeria Assírio & Alvim, em Lisboa, em Maio de 2003.

Este livro prende-se com um projecto que foi desenvolvido durante o seu mestrado, como bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, 2000/2001, no Surrey Institute of Art & Design, em Farnham, Surrey.

Este objecto resulta da compilação de vários desenhos e colagens de imagens inseridas noutros cadernos de reflexão e de maquetas executadas especificamente para este fim. Esses livros, que estiveram na base deste, poderiam ser classificados mais facilmente como livros de artista, visto serem manuais; contudo, a questão da manufactura deixou de se pôr desde 1962, quando o livro de Edward Ruscha (1937), – Twenty Six Gasoline Stations – se tornou uma referência paradigmática dos livros de artista impressos.

 

1. O Projecto

Cristina Filipe permaneceu durante um ano em Farnham e, desde a sua chegada, que pode contar com o apoio da comunidade local na sua integração. O apoio logístico e a cadeia de relacionamentos que Cristina estabeleceu tornaram-se, metaforicamente, o corpo do seu trabalho de mestrado. O facto de, nesta pequena cidade, existir uma igreja católica dedicada a Santa Joana d’Arc, a que a cidade prestava culto, motivou Cristina para um estudo aprofundado sobre o mito. Durante a investigação, descobriu que Joana d’Arc normalmente usava dois anéis nos quais estavam inscritos os nomes de Jesus e Maria. São esses anéis que, durante o julgamento, estiveram na origem do comentário: "o único luxo que se lhe conhecia, era o de usar anéis" (Figura1).

 

 

Utilizando a carga simbólica e mágica que o anel tem através dos tempos, em lendas, contos e rituais, numa primeira fase, o trabalho assumiu essa forma. A aliança possui um significado de compromisso, de fidelidade e de pacto.

As pessoas a quem Cristina quis prestar uma homenagem foram convidadas a descrever numa palavra a sua impressão sobre a donzela de Orleães. Teve a adesão de vinte e oito pessoas daquela comunidade e a cada uma foi tirada a medida do dedo anelar da mão esquerda, onde passa uma veia que flui para o coração. Foram feitas o mesmo número de alianças, em prata com o interior a ouro, cada uma com a medida do dedo da pessoa a que correspondia a palavra que foi gravada no anel: Poder, Benediction, Mulher, Love, Politics, Brave, Fighter, Leadership, People, Soldier, Guerrreira, Holy, Saint, Cruz, Belief, Warmth, Courageous, Truth, Sacrifice, Strength, Misunderstood, Flames, Fire, Heroic, Armour, Courage, The Strength.

Outra referência importante para este trabalho foi o filme La Passion de Jeanne d’Arc (1928) de Carl Thodore Dreyer. Depois do seu visionamento e paralelamente às alianças, Cristina Filipe elaborou um caderno de reflexão, que esteve na base deste livro de artista, conjuntamente com outros estudos gráficos, onde figuram várias imagens de "frames" de expressões do rosto da atriz Renée Jeanne Falconetti, que personifica Joana d’Arc no filme. Também foram objecto da sua atenção o verde da paisagem (Figura 2, Figura 3, Figura 4) e as diversas cores do céu de Farnham, consoante as estações do ano. (Figura 5, Figura 6, Figura 7).

 

 

 

 

Na última fase do projecto, a fim de enfatizar a ideia de tributo e o aspecto de site specific, foi criada uma imagem virtual que apresenta este conjunto de anéis como elos duma cadeia, em cima da escultura da Santa, na fachada da Igreja (Figuras 8 e 9).

 

 

Por fim, mandou construir um objecto em madeira, com a forma duma mesa, contendo um compartimento na parte superior, forrado com vinte oito módulos de feltro cinzento e cada uma das alianças foi inserida numa incisão, de forma quadrada, feita em cada um. Aquando da apresentação final do trabalho, esta peça de joalharia foi instalada em frente do altar, na nave central da Igreja de Santa Joana d’Arc, em Farnham (Figura 10).

2. Da materialidade e plasticidade do livro

Este livro de artista de formato A6, em papel Canson, com a forma de "folium" (Figura 11), tem setenta e duas páginas, trinta e seis de cada lado, sem numeração. Algumas das fotografias são de Cristina. É uma edição de autor, bilingue – português e inglês – de duzentos e cinquenta exemplares, todos numerados e assinados pela autora.

 

 

No texto Le Livre, instrument spirituel (1897), Stéphane Mallarmé refere a materialidade do livro – a dobra, a dobragem ou o vinco (le pli, le pliage, le reploiement) – donde sai a dimensão imaterial do mesmo.

O "folium" com as suas dobras cria-nos um ritmo de leitura. O facto de se poder ver de um lado e do outro gera uma certa dinâmica. O seu assunto é o processo de concepção duma peça de joalharia e a jóia encerra em si um valor especial. Esse conceito de algo precioso é transposto para o livro, enquanto objecto, porque, quando se acaba de ler, não se fecha simplesmente – não tem uma capa, mas sim uma caixa, um estojo, para ficar preservado como as jóias (Figura 12). Depois de se lhe desvendar os segredos, pode ser guardado como uma raridade. Pela sua dimensão cabe dentro das mãos e apetece manuseá-lo, senti-lo. A maneira de ler é aleatória. Pode-se começar a ler dum lado ou do outro. Exceptuando a parte que tem o texto em que as linhas e o espaçamento da letra lhe dá o ritmo sequencial habitual, pode ser lido da esquerda para a direita, como é habitual, ou ao contrário, assim como se pode ver a partir de qualquer folha, o que é reforçado pela ausência de numeração das páginas. Pode-se abrir todo ou vai-se abrindo e apreciando as páginas, duas a duas. Tem a possibilidade de revelar as imagens duma forma sequencial, ou seja, de se ir desdobrando tal como se folheia um livro normal, ou pode-se abrir conforme a necessidade e podemos comparar, ao mesmo tempo, imagens de páginas diferentes, das anteriores ou das seguintes, sem haver o gesto do virar de página. É um livro que comunica principalmente através de imagens e que estabelece uma relação connosco como se fosse um jogo. Quando se acaba de ver dá vontade de voltar a vê-lo de novo. Inverte-se e obriga-nos a ver do outro lado, outra vez e outra vez. Pode suscitar sempre uma nova leitura e de uma maneira outra. Por vezes, para entender o que está escrito nos anéis é necessário rodá-lo, criando uma mobilidade adequada à leitura, um espaço de deambulação. Os números a ouro, que figuram junto das palavras, não são relativos a uma paginação, são os números que personificam aquelas palavras, pois são o tamanho do dedo de cada pessoa, a quem a palavra corresponde.

É um objecto para contemplar, no fluir de cada vinco e de cada dobragem. Dado que é constituído, na sua quase totalidade, por imagens, estas conferem-lhe uma variedade que quebram a monotonia sequencial das linhas do texto escrito.

 

3. A dimensão imaterial

Como vimos, as imagens presentes neste livro abrem um leque de possibilidades de leitura. Uma questão importante é a antinomia entre o público e o privado, porque, se por um lado este trabalho tem o lado intimista de partilha apenas entre as pessoas envolvidas, por outro lado, ao ser instalado na igreja, adquire o aspecto público ao ser revelado a toda a comunidade.

Um segundo aspecto é que este trabalho podia resumir-se a uma única aliança, contudo a sua multiplicação formal, apenas com pequenas diferenças, obriga-nos a um olhar estético que se prende com a percepção artística, da ordem das percepções ínfimas, quase imperceptíveis à primeira vista (Gil, 1996).

Também no campo das pequenas percepções estão as citações visuais do filme de Carl Theodor Dreyer (Figuras 13 e 14) que põem em evidência o sofrimento e o êxtase místico da Santa quando está a ser queimada viva na fogueira. É o momento mais dramático do seu sacrifício, que pode ser comparado ao de Cristo. São expressões que vão desde a total abnegação e de entrega ao sofrimento, até à de felicidade. É a experiência dos místicos que Georges Bataille denomina de "experiência interior", comparável à expressão de Santa Teresa d’Ávila, esculpida por Bernini, ou à expressão de São Sebastião, pintado por Guido Réni (século XVII), do Museo Palazzo Rosso de Génova, que Yukio Mishima descreve, com grande erotismo, nas Confissões de uma Máscara (1949). Estas imagens visam o sagrado. A verdade do suplício encerra uma beleza mística e terrível a que Julia Kristeva se refere como os "poderes do horror" (Kristeva, 1980). Os temas recorrentes de Georges Bataille (sacrifício, êxtase, erotismo angustiado, transgressão e morte) são aspectos que levam o indivíduo a exceder os seus limites e a vislumbrar o impossível, sendo que o objecto de êxtase é criado pela arte (Bataille, 1968). Dado que este filme é mudo, a tónica é posta nas expressões dos rostos dos actores. É através das expressões de Joana d’Arc, das pequenas acções e da variação mínima que se estabelece a narrativa.

 

 

A variação mínima presente em Dreyer constituiu também o "modus operandi" de Cristina na cadeia de anéis.

Conclusão

Este livro estabelece um jogo com leitor. Deixa de ser um objecto subsidiário da exposição, para se tornar um objecto íntimo. Embora o trabalho que está na base deste livro de artista seja da ordem do íntimo, a sua a sua divulgação como um site specific situou-o do lado do público. É um tributo a Joana d’Arc e um pequeno monumento conceptual que se centra nos valores e nas relações humanas que esta entidade representa, tal como a aliança que se estabeleceu entre a artista e a comunidade. Este livro de artista revela não só o processo de criação da artista, como ainda se prende com a vertente conceptual do processo de concepção na joalharia contemporânea. Pelo investimento de sentimento que Cristina Filipe põe nos objectos, pode-se fazer uma aproximação à escultura social, de Joseph Beuys, mas isso poderá ser assunto para uma investigação futura.

 

Referências

Bataille, Georges (1980) O Erotismo.2ª edição, tradução de João Bénard da Costa. Lisboa: Antígona. ISBN: n.c.         [ Links ]

Caratini, Roger (1999) Jeanne D’Arc De Domrémy à Orléans et du bûcher à la légende. L’Archipel. ISBN:2-84187-173-8

Gil, José (1996) A Imagem Nua e as Pequenas percepções. Estética e Metafenomenologia. Relógio D’Água Editores, Lisboa. ISBN: 972708299-8.

Kristeva, Julia (1980) Pouvoirs de l’horreur. Essai sur l’Abjection in Art en Théorie1900-1990.Une Anthologie par Charles Harrison et Paul Wood (1997), Hazan. Itália: ISBN: 2 85025 571 8

Mallarmé, Stéphane (1897) Le Livre, instrument spirituel. Tradução de Manuel Maia inserida no catálogo da exposição Tarefas Infinitas (2012), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa. ISBN: 978-972-8848-84-2        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: isadribeiro@yahoo.com.br (Isabel Albuquerque).

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