SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número6Pedro Saraiva: vidas de papel O artista como significanteO livro de artista como espaço expositivo: quando a exposição continua no catálogo índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

EXPANSÕES

EXPANSIONS

Um Teatro Intimista: ou o jogo entre imagem e palavra no livro de artista

An Intimate Theatre: or the interplay between image and word in the artist's book

 

Maria Manuela Bronze da Rocha*

*Portugal, artista Plástica e figurinista. Afiliação atual: Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo (ESMAE), Instituto Politécnico do Porto. Graduação em Artes Plásticas, Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP); Master of Fine Arts in Costume Design, Boston University, EUA; Doutorada em Artes, Fac. de Belas Artes, Pontevedra, Universidade de Vigo.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
A abordagem a esta Instalação analisa a singularidade do objecto Livro de Horas enquanto Livro de Artista, quer como obra em si, quer no cruzamento de linguagens que a palavra e a trajetória do olhar convocam na representação da palavra e com a palavra. No contexto da relação entre imagem e palavra, quando nos ajoelhamos perante este livro somos levados a ficcionar tempo e espaço como elementos constitutivos do processo de reconhecimento da teatralidade.

Palavras chave: Teatralidade, Tempo, Imagem, Palavra

 

ABSTRACT:
The approach to this Installation examines the singularity of the object Book of Hours as an Artist’s book: a piece per se within which an intersection of languages – the word and the trajectory of the gaze – is summoned to the representation. In the context of the relationship between image and word, while kneeling before this book we are led to fictionalize time and space as constitutive elements for the recognition process of theatricality.

Keywords: Theatricality, Time, Image, Word

 

 

Introdução

Nesta instalação (Figura 1) estamos perante um conjunto de elementos que se assumem cenicamente de modo a proporcionar ao espectador uma apresentação e uma proposta performativa. É de um teatro intimista que falamos. Face a face, encontram-se o espectador e o Livro de Horas. Ambos habitam a cena, o Livro de Horas enquanto Livro de Artista e o espectador enquanto leitor. Entre os dois, uma narrativa de formas, cores e palavras entrelaçadas graficamente, questiona a cada virar de página os limites do tempo através de um jogo que não rejeita a sua inerente dimensão lúdica.

 

 

Pousado no altar dourado, um intrigante livro vermelho, em pé, com uma porta, faz-se maqueta de cenário para outra representação.

Frente ao altar, lado a lado, dois genuflexórios, iguais, convidam o espectador a folhear, individualmente, o seu Book of Hours. O altar, lugar ancestral de rituais sagrados, era na Idade Média para muitos o ponto do todo da arte dramática, e o Livro de Horas, manuscrito, iluminado e personificado, era para alguns o compasso da rotina diária. Folhear este livro neste lugar é ser parte de um processo que nos compele a sentir o espaço real como ficcional. Página a página, a encenação do quotidiano desenvolve uma imagética do tempo que já não reconhecemos no Livro de Horas mas onde as referências contemporâneas constroem, como diria Didi-Huberman, uma espécie de objecto dialético: ‘’Une chose à double face, un battement rythmique. Comment nomer cet object, si le mot ’’anachronisme’’ ne qualifie éventuellement qu’un versan de son oscillation? ‘’ Figura 1. "À capela/ 2011/ Instalação/ Livro vermelho/ 40x40cm/ 1992/2 Book of Hours/ 23,3x17cm/ Sobre genuflexórios’’ de Gil Maia, apresentada na capela do Palacete Pinto Leite por ocasião da Mostra de Artes Plásticas: Elipse da Duração, Porto (2011). Livro de Artista: Book of Hours – 150 copies of this book have been made in coated matt paper, 150g, numbered and signed by the author; black textile hardcover. Fonte: Elipse da Duração (catálogo).

Gil Maia nasceu em Vila do Conde em 1950. Vive e trabalha no Porto. Arquiteto, licenciado pela ESBAP, trabalha sobretudo no domínio das Artes Gráficas. Completou a sua formação académica com o Master of Arts in Graphic Design pela Central Saint Martin’s College of Art & Design em Londres e Doutorou-se em Design de Comunicação pela FBAUP. É docente na ESE do IPP .

 

1. O Livro

Constam do livro: Introdução, Índice, Calendário, Separadores, Textos e Imagens das Horas.

O Calendário compõe-se tipograficamente de modo tão extremo como a diferença entre o dia e a noite. Para todos os dias de cada mês, opõe-se a um fundo negro o recorte branco dos algarismos. E quando os dias se somam em dezenas, subtilmente, na noite que sonha a vida, as estrelas são amarelas, vermelhas, azuis, e uma é laranja para o dia de fevereiro que os bissextos deixam acontecer. Nada sabemos sobre o novo ano; à primeira vista, como se a contra-tempo, os dias dispõem-se em cada linha dos doze horizontes.

Depois, as páginas ocultam e desvendam a sequência das horas: as pares recebem o texto e as ímpares a imagem que ilumina as divisões do dia. Para marcar um ritmo, os separadores anunciam as Matinas e prosseguem com Laudas, Primas, Terças, Sextas, Nonas, Vésperas e Completas, as oito divisões onde cabem as horas dos dias que Gil Maia nos propõe. Este Book of Hours "is not meant to recreate the ancient model. […] It only has two parts. A calender (always a challenge for celebrations), and a new presentation of the sequence of the hours. This sequence is similar to the one used in the primitive Book of Hours but the hours are as pious as ludic" afirma o autor no prefácio. (Maia, 1992: 5)

Horas protegidas pelo desenho das ordens clássicas da arquitetura, para um espaço que se pretende de construção sólida, protetora e detalhada. Desde sempre projeto para um ambiente a habitar. Na fronteira entre interior e exterior, o olhar reclama o mundo, entre janelas e frontispícios. Perscruta capiteis, cúpulas e contrafortes. Divaga entre colunas. Separando as horas, o algarismo que ordena a denominação da sequência ocupa toda a página, vazando, em itálico, um fundo neutro. O corpo visual deste objecto tem uma orgânica própria para as tarefas do pensar e do fazer: um miolo de imagens e palavras — mancha gráfica — aguarelas, desenhos, grafismos, justaposições de imagens, de papéis e de objetos (posteriormente fotografados) e caracteres, obviamente, familiares ao Times, com um tamanho de letra constante. O jogo positivo/negativo mantém-se em cada página. A letra capital, maiúscula, é consistente e solidária com a imagem total que releva de subdivisões rectangulares arquetípicas. O vermelho visita as páginas, prudentemente, para instruir o nosso olhar.

Neste livro ‘‘quando tudo quanto ele pode fazer é dar-nos desejos’’ (Proust, 2003: 35), saem das palavras personagens e engendramos uma contracena:

[Nonas] – Par (aquele que há muito vive o mundo. Austero, o seu figurino confunde-se com o espaço, e a voz quente e colocada, afirma-se em vários registos tímbricos, definidos pela única maiúscula. Apraz-lhe propor jogos antinómicos, debitando frases que roçam aforismos. Fala do tempo, o tempo todo e de como o tempo leva a durar, a configurar, a dividir, a ocupar, a partilhar, a transcrever, a traduzir, a escrever, a lembrar, a percorrer, a contar, a ver, a ligar, a acontecer, a esconder, a amar, a imaginar e a medir, depois das palavras se soltarem do tinteiro.)

–‘‘I kept all your letters in an inkpot. / I forgot all their words and how to get them free. I feel they are constantly searching for a window from where they can see the night coming. / They returned to the place they belong to: the inner place of my memory, the red corner of my paintings. (Maia, 1992: 46, 47)

[Ao lado] – Impar (o da expressão tumultuosa, ensaiada em velaturas e sobreposições empastadas. A cor da sua roupagem invade a superfície do suporte e a fotografia revela transparência e opacidade nos vermelhos do tinteiro e da pena; um outro tinteiro faz de conta que pertenceu a Pandora. A cada ‘deixa’ de Par uma resposta pronta, serve-se de todos os meios próximos. Genuína e rebelde, revela alguma ingenuidade. Impar é um recolector. No bulício dos dias, manipula as cores, as linhas, os caracteres, as contas, os instrumentos para desenhar, medir, escrever e focar; os papéis e os cristais e os algarismos. Está situado no tempo que é o seu).

[Voltando atrás] – Par (interpela com uma W capital):

–‘’Why do angels have wings if they don’t know how to fly?’’/ ‘’What can I say?’’/ I know that they are never in heaven, and that they do not belong on earth. / Perhaps their wings are meant only to show us that they do not really exist; that they belong nowhere. / I once met a walking angel. He would always walk away from me.’’(Maia, 1992: 44,45)

[Ao lado] – Impar (mantém-se silencioso; uma asa expande-se, espessa e texturada, como uma curva esboçada sobre uma mancha vermelha e laranja na superfície do papel.

 

2. O Modo de Ler

Objecto publicado, o livro propõe, à partida, uma leitura individual, por ventura, mística e alheia a cerimónias coletivas. E o teatro, por excelência um espetáculo com público, tem como principal desafio a conquista, a cada ‘função,’ dessa espécie de privilégio de intimidade que acontece entre a imagem da palavra e cada espectador da assistência.

Ao entrar na pequena capela estamos no lugar universal do ponto de vista único. O convite ao recolhimento reúne as condições cenográficas que fazem da intimidade uma vivência estética e espacial. Uma vez lá dentro, somos compelidos a uma pose devocional, assim se resgatando, no modo Instalação, a interatividade de um processo de relação entre dois mundos (Féral, 2002) — uma experiência de teatralidade. Da capela com os genuflexórios à figura do Book of Hours ali pousado, a trajetória para um espaço virtual é uma experiência no cenário onde o Livro de Artista nos convida à articulação do espaço e do tempo, como figuras na representação de uma narrativa. Anulada a distância entre a peça e o espectador, esse espaço semiotizado acolhe a experiência de um processo teatralizado. "In this instance, space is the vehicle of theatricality. […] It is the simple exercise of watching that reassigns gestures to theatrical space" (Féral, 2000: 95).

Necessitamos estar disponíveis e cúmplices para compreender o sentido do que nos é proposto organicamente, emocionalmente e intelectualmente, dando ao tempo um tempo largo para a experiência do advérbio. "More than a property with analyzable characteristics, theatricality seems to be a process that has to do with a ‘gaze’ that postulates and creates a distinct, virtual space belonging to the other, from which fiction can emerge" (Féral, 2000: 97). Na realidade, estamos agora de posse dos elementos formais e materiais que conferem significado ao que vemos. Assim o livro, abandonada a portabilidade que lhe é inerente, reforça o carácter da metáfora conceptual, já contida na sequência das páginas que nos falam sobre "organizações plurais do tempo" para assim se assumir como experiência alternativa de leitura. "Être devant l’image, c’est à la fois remettre le savoir en question et remettre du savoir en jeu" (Didi-Hubermam, 2011: 83).

 

Conclusão

Estabelecida a transferência do real físico para o ficcional, o carácter relacional cria, nesta Instalação, a possibilidade da percepção da teatralidade. Este processo permite, assim, uma experiência próxima da de um teatro intimista (espaço limitado e reduzido; íntimo de estilo e conteúdo) e que exige, para a sua compreensão, a cumplicidade que lhe valoriza o sentido. Neste jogo, Gil Maia propõem-nos, afinal, um objecto de resistência onde se reflete sobre a possibilidade de resgatar uma outra forma de entender o tempo.

 

Referências

AAVV (2011), ‘“;Elipse da Duração’’, catálogo da exposição-curadoria Fátima Lambert, Porto, IPP

Augé, M., Didi-Huberman, G., Eco U. (2011), ‘“ Expérience des Images’’, Paris, INA Éditions

Didi-Huberman, Georges (2000), ‘“;Devant le temps’’, Paris, Les Editions de Minuit

Féral, Josette e Ronald P. Bermingham (2002), ‘“Theatricality: The Specificity of Theatrical Language’’, in Substance, Vol. 31, No. 2/3, Issue 98/99: Special Issue: Theatricality pp. 94- 108, University of Wisconsin Press

Maia, Gil (1992) ‘“Book of Hours’’, # 34, Porto, Porto Editora

Proust, Marcel (2003), ‘“O Prazer da Leitura’’, trad. Magda B. Figueiredo, Lisboa, Teorema

 

Artigo completo recebido a 8 de setembro, e aprovado a 23 de setembro, 2012.

 

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: manuela.bronze@gmail.com (Manuela Bronze).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons