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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012

 

DOSSIER EDITORIAL

EDITORIAL SECTION

O livro de artista como assunto acadêmico

The artist’s book as an academic subject

 

Paulo Silveira* (autor convidado)

*Paulo Silveira (Paulo Antonio de Menezes Pereira da Silveira) é mestre e doutor em História, Teoria e Crítica da Arte, professor do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. É autor de A página violada: da ternura à injúria na construção do livro de artista, Editora da UFRGS, 2001 (segunda edição: 2008). Participa dos grupos de pesquisa Veículos da Arte (UFRGS) e Grupo de Estudos em Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu (USP).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO:
No século XXI, a presença do livro de artista na universidade tem sido cada vez mais intensa e qualificada, o que exige de artistas e teóricos o refinamento da capacitação artística, crítica e educacional.

Palavras-chave: livro de artista, ensino da arte, ensino universitário, arte contemporânea.

 

ABSTRACT:
In the XXI century, the presence of the artist’s book in the university has been increasingly intense and qualified, which requires artists and theorists the refinement of artistic, critical and educational skills.

Keywords: artist’s book, art education, university education, contemporary art.

 

Penso que seja correto considerar que os anos 60 e 70 foram o período de infância e afirmação do livro de artista, publicações não periódicas que são um dos veículos estruturantes da arte contemporânea. Também podemos aceitar que os 80 testemunharam a superprodução, os excessos, a ingenuidade e as reivindicações, reacionárias até, de artistas exigindo o direito de livros refratários à edição terem a sua cota de atenção. Aos anos 90 caberia o serenar de ânimos, a partilha de espaços e a redução da produção, mas também a busca do conhecimento do projeto editorial, pelo lado mais profissional, e da encadernação criativa, pelo lado artesanal. E, ao mesmo tempo, a lenta e progressiva avaliação crítica das décadas passadas, que resultaria em uma das mais marcantes características dos anos 2000: o gradativo aumento da inserção do livro de artista em assuntos e interesses da vida universitária, como objeto ou como agente de artistas com vida acadêmica regular, ou como tema de investigações teóricas. Vejamos então, a partir da universidade, um laboratório de reflexão, alguns sabores e dissabores do convívio entre circunstâncias limitantes e possibilidades estimulantes. A começar pela permanência do fantasma das belas-artes.

A recorrência do versus: artisticidade v. artesanalidade, ou v. comunicabilidade, ou v. funcionalidade etc. Não deveriam acontecer conflitos entre esses conceitos. O aprendizado em artes tem espaço intelectual para todos. Porém, no caso específico do livro o contraponto pode se constituir em problema, às vezes pequeno, às vezes intenso. Para alguns criadores certos conflitos são dilacerantes. A mais clara manifestação disso vem de fora das universidades, e é renitente: o ressentimento de muitos artistas (e poucos teóricos) pela identificação de "livro de artista" como uma designação mais interessada na autoria (o artista) do que da forma (a eloquencia material do volume). Portanto com a difusão de ideias (através da palavra ou do pensamento visual), o que definitivamente o liga, o livro, com a desmaterialização da obra, a instauração da arte, o artista como intelectual etc. Presume-se que um aluno de artes, que muito estudou para alcançar o estatuto de universitário, não tenha ou não queira ter uma sensibilidade epidérmica, desvinculada da linha de força que vai da consciência histórica e do pensamento abstrato até a articulação do conjunto de experiências e saberes adquiridos durante o seu curso. A concepção teórica de si mesmo, um artista especial que se reconhece como culto, será determinante para a constituição de sua identidade e para a sua inserção no sistema das artes.

O que unirá a artisticidade a seus contrapontos, apaziguando-os, será a criatividade, uma força maior e universal, determinante de um sem-número de processos e atividades, de ações mais simples até capacitações científicas. Poderíamos buscar lições pertencentes à vida universitária, trabalhos executados nas diversas disciplinas curriculares. Mas tomo um exemplo de fora, tirado das classes escolares, o caso do serviço educativo do Museu de Serralves, na cidade do Porto, e sua atividade e exposição Retratos, de maio a outubro de 2006, reunindo trabalhos executados no ano letivo de 2005-2006 por quase uma centena de escolas (do pré-escolar ao secundário do sistema português). Os trabalhos dividiam-se em dois grupos maiores: pinturas (retratos simples) e livros únicos. Estes, muito coloridos, eram cheios de vida. Não resta dúvida que uma criança ou adolescente tem maior facilidade em realizar uma construção continuada se esta permitir um tom confessional, não corrompido. As mesas em exibição eram cobertas de emoção. Em algumas ocasiões mostrei fotos dos trabalhos para meus alunos, sempre surpreendendo. Empatia imediata.

No dia-a-dia pragmático das salas de aula e das oficinas, é impossível, indesejável e inadequado sob todos os aspectos o afastamento dos exercícios mecânicos, das práticas acidentais, das experiências com o acaso (sobretudo nos primeiros anos). A surpresa não tem substituta. Esse espectro que reúne emoções e habilidades específicas poderá ser amplificado no jovem artista através do seu envolvimento com a criação de livros únicos, obras que podem tomar formas gráficas e planas, como nos diários, ou espaciais, como nos livros-objetos e trabalhos escultóricos derivados, além das soluções digitais. O problema será relativizar a forte emoção de satisfação que muitas vezes toma conta do aluno ao se deparar com sua própria obra. Será preciso fazer entender que livros únicos podem ser extravagantes e isso não significa que um primeiro resultado tenha o valor imaginado. Será preciso fazer um segundo trabalho, um terceiro, e assim por diante. Será preciso refletir sobre o que já foi feito e ensaiar o que será realizado. E compreender que assim como fazemos muitos desenhos ou muitas pinturas, precisaremos fazer muitos livros únicos, até alcançarmos a qualidade inflexível de obra. Talvez a partir desse ponto, salvo se frequentou aulas específicas, o artista poderá desfrutar melhor a energia pujante da edição. A publicação, alternativa ou não, é marca fundadora da arte do nosso tempo. O livro de artista, como entendido originalmente (excluindo seus correlatos, mas reconhecendo que juntos são formadores de uma categoria), é primordialmente uma publicação. E por tudo que a condição de não ser periódico implica, é ponto de culminância: a edição artística teve o poder efetivo de propor uma forma inédita de erudição verbo-visual à cultura, espaço simbólico maior que a arte. A publicação é compatível com o compromisso afetivo, como comprovam com estratégias distintas Julião Sarmento, João Penalva ou Isabel Baraona.

Quanto à logística, ela é o tormento de muitos. A edição – e não apenas protótipos e exercícios – exige um parque tecnológico mínimo, preparado para produção. Será preciso contar com oficinas que atendam a ordenação de tarefas, da editoração eletrônica (ou leiaute e arte-final manuais) até a impressão e acabamento. Os equipamentos, e os conhecimentos que os acompanham, existem em praticamente todas as universidades, em suas editoras (agentes publicadores, divulgadores da produção intelectual, com conselho) e gráficas (prestadoras de serviços de impressão, com ou sem núcleos de editoração), ou nas imprensas universitárias (assim chamadas quando reúnem os serviços editoriais e gráficos). O apoio à fase da criação também pode ser oferecido pelos laboratórios de informática dos cursos de artes, ou mesmo pelos muitos núcleos de projeto e expressão gráfica, comunicação visual, publicidade etc. Mesmo quando rudimentares, os núcleos teriam a lucrar na troca de experiências com o pensamento artístico. Isso resolvido, o problema final poderá ser o professor. Muitas vezes acanhado dentro de exigências conservadoras, nem sempre estará apto para o ensino dos procedimentos necessários. Se a sua biografia incluir experiências prévias com a reprodutibilidade, os estudantes poderão enfim exercitar procedimentos expressivos que foram determinantes para o momento artístico dos 60 e 70.

Outro ponto a considerar diz respeito às relações do livro de artista com a metodologia de pesquisa, na graduação e, muito mais intensamente, na pós-graduação. Esse tema merece fórum à parte, mas alguns aspectos devem ser antecipados. O mais importante a lembrar é que para o olhar de um artista pesquisador o livro é geralmente obra, e em raros momentos, documento. Para o pesquisador em história da arte, essa relação pode acontecer em igualdade de condições: o livro é obra, é documento, ou pode ser simultaneamente obra e documento. Na mão do artista, a aproximação mais imediata está nos diários. Ali projetos são riscados, informações anotadas, fracassos documentados, insatisfações confessadas. E ao fim do seu uso primário, a agenda ou diário poderá ser publicamente apresentada como complemento ou chave para os afetos do artista. O grau de sinceridade ou de ficção num procedimento "íntimo e pessoal", que pode premeditar desde o início a exposição em galeria, permitiria uma alentada reflexão. Hoje isso tem pouco importância. Importa, sim, que o artista em conclusão de curso saiba que tem nas mãos uma ferramenta importante de organização, com poder latente de adquirir novos valores operativos.

Para a teoria, as publicações têm também um papel generoso. São fontes sem par. A oscilação entre serem documentos primários e ao mesmo tempo obras é fascinante. O conceito de leitura da obra de arte, caro ao nosso universo, precisará ser relativizado. Os fundamentos estéticos, linguísticos, funcionais e estratégicos que configuraram o livro de artista stricto sensu (uma publicação) são os mesmos dos principais eixos estruturantes da arte contemporânea. O amálgama verbo-visual exige para a obra também a leitura pura que a letra obriga (a apreensão do conteúdo de um texto escrito), agora no círculo pertinente à visualidade. Trata-se de um progresso quase exclusivo da metade final do século XX. Vivemos uma etapa, que exige formação, estudo. E os melhores artistas publicaram. Existe, claro, a solução econômica de lermos seus escritos em antologias. É uma atitude conveniente à pressa da sala de aula. Mas se possível, será melhor buscar os livros, periódicos e outras edições originais, para a leitura dos tipos, da composição, dos brancos, das decisões. Cabe à universidade mostrar ao estudante de história da arte a qualidade desse caminho. A metodologia instrumentalizará as decisões, que poderão estar afogadas no excesso de informação virtual.

Lembro de uma experiência da segunda metade dos anos 90. Iniciei ali um estudo sobre os livros de Edward Ruscha, quase sem ajuda de textos em português, raros e geralmente genéricos. Até mesmo o importante artigo "O livro como forma de arte", 1982, de Julio Plaza, esqueceu Ruscha. Concluído o mestrado, a pesquisa não cessou, embora parte significativa tenha sido incluída no exame de qualificação ao doutorado na UFRGS (2005, com acompanhamento de Helio Fervenza, orientador sobretudo em poéticas visuais, numa proveitosa interface com a história da arte). Ideias, imagens e caminhos sobre o tema têm sido difundidos em rede, porém muitas vezes sem o seu contexto de origem e sem menção à instituição. Se o uso livre pode ser lisonjeiro para o autor, para a universidade o entendimento é outro. É através dela que pesquisas são feitas, não apenas recuperando e reavaliando informações do passado, mas também colaborando com o avançar das linguagens. Na internet são danosos os recortes mal feitos ou as verdades sem fundamento. Um estudante apressado poderá reproduzir incorreções de um blog qualquer. Reitera-se aqui o incentivo à busca de fontes primárias e à verificação dos dados. Plaza, na abertura do artigo mencionado, usou algumas frases de Ulisses Carrión, publicadas sete anos antes, sem citar origem. Alguns mantêm a omissão, alimentando uma cadeia que já chegou à imprensa estável.

Nada substitui o contato com originais. Coleções mantidas nas universidades têm a garantia de acesso. O acesso às obras é fundamental para a formação do estudante de artes. A tarefa para curadores e bibliotecários será estabelecer o que será guardado, como e onde. Uma experiência recente no Instituto de Artes da UFRGS demonstra a dificuldade em sobrepujar certos impedimentos. Apesar de hospedar pesquisas na área, ele ainda é lento e pesado. A Biblioteca, pequena para o que possui, é pouco ativa e não promove exibições. Sequer há espaço para vitrina. Tem alguns livros de artista, quase todos gráficos. A Pinacoteca também guarda alguns livros, exemplares de construção mais plástica. Entre ambas, um problema de gestão. O Acervo da Pinacoteca ainda não reconhece a funcionalidade do acesso aos seus exemplares em base de dados, tratados como especiais e sem indexação para busca bibliográfica. Por exemplo, os dois livros de Juan Carlos Romero, importante nome da arte postal na Argentina, não são localizáveis na busca do sistema de bibliotecas da UFRGS. E são livros. Como ação da pesquisa Livro de artista e ambiente acadêmico: relações sistêmicas e estéticas na universidade, em maio de 2012 foi sugerida a identificação de uma coleção especial sediada no Acervo, com consulta agendada, catalogada no sistema. A proposta prevê uma comunicação eficaz entre Pinacoteca e Biblioteca para assuntos relativos a livros de artista (em todas as conformações). As expectativas são incertas, e as coordenações distintas. Os argumentos seguem sendo oferecidos, até que os frutos surjam. Neste diminuto caso local, como em situações internacionais mais complexas, a palavra está com a universidade.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: paulo.silveira@ufrgs.br (Paulo Silveira).

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