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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Renascente – A memoria da agua

Source: the water memory

 

Julio Cesar da Silva*

*Brasil, artista plastico. Estudante de doutorado no programa Lenguages y Poéticas en el Arte Contemporaneo na Universidad de Granada, Espanha. Afiliação atual: Universidade Federal do Espirito Santo

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
O presente texto trata-se das reflexões geradas a partir do acompanhamento como orientador do projeto: Entre Saudades guerrilha, do artista Piatan Lube realizado em 2011/2012 num período de nove meses, no embate do artista com a produção da obra.

Palavras-chave: Memoria, intervenção, paisagem.

 

 

ABSTRACT
The present study is about the reflections created from the attendance as the project advisor: "Entre Saudades guerrilha", from the Artist named Piatan Lube held in 2011/2012 in nine months, in the shock of the Artist with the work production.

Keywords: memory, intervention, landscape.

 

 

Introdução

O texto que apresento possui uma particularidade de ser fruto de uma relação intima com a produção e construção da obra a que se refere, particularidade esta proporcionada pela orientação, o que me coloca como um leitor particular no que diz respeito as reflexões que se anteciparam a realização de cada movimento em direção a realização do trabalho do artista. Contando hoje com 28 anos Piatan Lube possui graduação em artes pela Universidade Federal do Espirito Santo e foi contemplado em 2010 com premio nacional Arte e Patrimônio patrocinado pelo IPHAN o artista vem desde então atuando em propostas que relacionam memoria e espaço em intervenções externas em áreas urbanas e rurais.

A obra a que se refere trata-se de uma intervenção na paisagem e a ocupação de uma galeria, acolhido pelo programa de Residência Artística: Mas que arte cabe numa cidade? na galeria de arte Casarão, Entre Saudades e guerrilha, projeto original apresentado pelo artista para o edital 11- SECULT ocuparia a galeria e uma área de pastagens num sitio conhecido como Morro do Elói (Figura 1) na cidade de Viana. Morro este em que seriam plantadas três mil mudas de espécies nativas que no passado ocuparam aquela paisagem. Estas plantas estariam organizadas neste pequeno território de forma a redesenhar cada uma das sete letras da palavra saudade escavadas no solo previamente preparado em uma escala que poderiam ser vistas a um quilometro, dariam formação uma pequena floresta num futuro imprevisível já que dependem da resistência de cada uma das mudas ali plantadas sujeitas as intempéries do lugar.

 

 

1. Paisagem oculta  

Como podemos imaginar, haveria como resultado final nesta ação uma espécie de monumento recortado na paisagem que a sustentaria de uma forma convencional como sendo quase um objeto, uma escultura. Outro fator preponderante, que durante o período da mostra a intervenção estaria atrelada a Galeria de arte do Casarão (Figura 2) o que evidenciaria a relação direta com o fazer artístico. Na galeria Casarão seria escavado em um dos salões a palavra Guerrilha numa ação análoga a realizada no campo e em seguida as letras seriam preenchidas com água, alusão clara a fonte de vida que representa este elemento. Mantivemos um prolongado debate sobre a participação da galeria no projeto frente a natureza da intervenção na área externa , de como ela poderia atuar como um agente ativo, não passivo, somente um espaço expositivo.

 

 

As sugestões que surgiram foram a de abrir um poço semi-artesiano no solo abaixo do imóvel e dali extrair a água que inicialmente alimentaria as mudas na intervenção no morro do Eloi, isto transformaria a galeria num espaço dinâmico, gerador de vida, ligada à palavra/monumento por um cordão umbilical, (Figura 3) ductos, fornecendo a água inicial para a germinação e sustento de cada uma das futuras arvores. A água originada do subsolo do imóvel revelaria assim um pouco do passado do lugar sua vocação para nascente, abordamos este elemento universal por uma propriedade singular, de forma simbólica nos apropriamos desta imagem da memória da água, como se nela contivesse todo o histórico de seu percurso, de seu ciclo de um passado remoto ate os dias de hoje, como se contivesse disperso fragmentos de todos os elementos e lugares por onde tenha passado, nela diluídos.

 

 

O elo entre a galeria e o exterior tencionam os dois espaços semânticos da proposta, a galeria espaço ideal de representação e o morro do Eloi, lugar sem outra função senão servir de pastagens para o gado do proprietário. Ao perfurar o solo dentro do espaço expositivo haveria esta infiltração uma intervenção no oculto, aquilo que não podemos ver apenas imaginar os extratos que compõe a capa superficial desse planeta. Podemos somente supor a existência desse lençol freático. A galeria antes este cubo dimensionado pela arquitetura familiar ganharia uma outra escala real pois fazendo parte do que a mantém no espaço, a dimensão planetária e histórica que no passado estava ali a flor da superfície, um olho d'água a jorrar ininterruptamente esta informação foi confirmada pela pesquisa feita junto aos arquivos públicos da cidade .  

A proposta sucumbiu frente as intempéries imprevistas do poder publico e do privado, na área negada pelo proprietário para a intervenção externa e na impossibilidade de perfuração no solo da Galeria por tratar-se de espaço em vias de tombamento, porém já não haveria porque realizá-lo diante da inexistência da intervenção na paisagem. Diante do exposto devemos considerar a dificuldade do artista para lidar com as dimensões da obra proposta, que no inicio, na sua origem está na motivação palavra chave, que aparentemente ficou na impossibilidade de mover-se do individual para o coletivo, assim como surgiu na mente do artista, esta dimensão intima que deveria chegar ate o outro para se tornar publica. Dependente da capacidade do artista em convencer por meio de argumentos e atitudes deflagrando o que vamos chamar do desejar estar na ação, na transformação do espaço coletivo. Tudo isso faz parte da obra, a motivação transformadora que faz migrar gestos e atividades banalizadas pelo cotidiano funcional para a dimensão de um gesto transformador.  

1.1 Uma hidrografia sentimental  

No que resultou ao final da jornada de idas e vindas deste projeto aproxima-se das praticas de reflorestamento empreendidas pelo governo e largamente propagadas por instituições não governamentais a favor do meio ambiente. Se analisarmos as praticas elas tem como resultado os mesmos aspectos materiais. A motivação também foi o que moveu o artista em busca de uma saída estratégica, de Entre Saudades e Guerrilha para uma outra configuração que denominei Renascente, e todo este caminhar ate a fonte torna-se processo, então faz parte da obra no jogo de tentativas e acertos, mas não devemos esquecer que ele não chega ate ali sozinho, e isto já torna coletiva esta construção de lugares, surge da orientação em direção ao elemento gerador da vida neste planeta, a água sugerida no poço semi-artesiano que alimentaria as mudas e que aludia ao passado do lugar e nas conversas diárias com sitiantes do seu circulo de convivência, que possuindo as nascentes em suas propriedades, tornaram-se agentes ativos dentro da seguinte proposta: as mudas seriam transplantadas para quatro nascentes em torno de cinqüenta metros a volta de cada uma delas, ha uma lei de recuperação destas nascentes que praticamente obriga os proprietários a realizar este pequeno reflorestamento do em torno isso facilitou a negociação com os proprietários e os incluiu de forma efetiva na proposta. Do primeiro ciclo da projeto nem tudo fora negado, o artista conseguiu junto a INCAPER as três mil e quinhentas mudas que transplantadas tiveram sua estadia na galeria durante todo o processo, transformando o lugar em um berçário (Figura 4). Vários voluntários foram cooptados pelo artista para os mutirões que se seguiram durante os três meses antes da abertura da mostra.

 

 

É possível construir mentalmente uma imagem destas quatro nascentes unidas numa mesma rede/artérias comunicantes que apesar de distantes umas das outras a água que pela gravidade vai recortando esta cartografia mental busca suas depressões, parece unir num mesmo desenho estas tantas futuras arvores que seguras ao solo pelas raízes, também artérias, estarão logo unidas a todo o sistema. Estamos aqui falando da imaginação intima com a matéria, esta mesma de que fala Bachelard quando afirma em seu livro "A água e os sonhos": "No fundo da matéria cresce uma vegetação escura; na noite da matéria florescem flores negras. Já trazem seu terciopelo e a formula de seu perfume."  

Toda a simbologia por trás deste elemento, principalmente em se tratando de fontes de água doce, pureza e purificação são dois significados presentes.  

Renascente retoma a participação coletiva, que flertava como proposta em Entre Saudades e Guerrilha, ela torna-se aqui seu eixo principal, a contaminação se da pela via verbal, o artista lutou por disseminar sua motivação entre aqueles que ouviram o seu pedido, esta contaminação não esta limitada apenas a angariar forças para a sua execução mas dar a ela a dimensão do gesto criativo através da interlocução entre seus vários agentes, ai esta ela a motivação reescrevendo seu ciclo, a diferença entre esta ação migrando do gesto transformador dos entes para um gesto transformador dos seres que outras formas de abordagem poderiam suscitar. Muito mais do que uma intervenção na paisagem Renascente (Figura 5) trata-se de uma intervenção no cotidiano das pessoas que lidam com o em torno diariamente mas de forma a utilizá-lo nas suas necessidades materiais, aqui se da a ruptura de como cada movimento que fazemos em direção a objetificação das coisas podem ser transfigurados a partir de um estado de consciência da dimensão de todo sistema onde somos mais um dos fenômenos a somar nestas conexões, nas relações que formam a matéria desse planeta, em pensadores de sistema do grande sistema vivo que é este mundo. Assim podemos perceber como se amplia nossa percepção e por conseguinte nossa noção de lugar. Cada uma destas futuras arvores como parte de um sistema de trocas sazonais, ligadas a terra e ao céu gerando vida compartilhada com aves e insetos nos religando a esta teia.

 

 

A memória da água, esse talvez seja o tema, a lógica de tudo o que estamos vendo à nossa volta, as plantas que Piatan Lube propôs como ligadura entre o humano e este elemento vital como determinação de um lugar. A partir destes implantes, ao considerarmos quatros fontes, então quatro lugares, prefiro afirmar que estes se fazem compor num mesmo lugar, a fonte onde floresce a origem dessa ideia.  

Tão fluido quanto água é o pensamento, que é capaz de estruturar arquiteturas dentro de uma racionalidade previsível e, ao mesmo tempo, não se manter sempre no mesmo leito, assim como um rio vai encontrando os obstáculos com os quais redesenha sempre suas margens.  

 

Conclusão  

Vamos recordar a guerrilha que foi o início desse projeto de residência, que tinha tão certo como meta a interferência na paisagem de Viana. Assim como um rio, as águas/pensamento foram alterando seu curso, encontrando outras vazantes. Na sala de vídeos, podemos flagrar estes instantes. Ali o processo da obra torna-se a obra em si, leito alterado, olhar deslocado da paisagem da sua forma convencional de horizonte para uma busca da intimidade de um olhar oblíquo sobre a superfície da água brotando da terra, num fluxo tão singelo, mas potente o suficiente para alterar de forma irreversível o entorno. Nessa matéria flui nossa experiência no inconsciente, recolhemos com cuidado na palma da mão uma porção dessas memórias quando encontramos com os proprietários destas terras na lida diária com esse elemento; reconfiguramos sua dimensão simbólica, agora no trato da terra na extensão desses veios, na forma de uma artéria que sustenta cada sitiante, sua fixação no lugar. Estas relações renascentes buscam dar à memória o frescor das fontes. O ciclo prossegue, e as águas encontram seus continentes dentro e fora das famílias ali reunidas; então, é o afeto que se mostra produzindo sentidos, nomina seu lugar. As plantas ainda imberbes são fixadas ao solo na esperança de que venham a fazer parte desses guardiões num futuro, protetores daquela que os alimenta numa troca favorável que envolve a memória dentro deste gesto eu te alimento, você me alimenta, numa troca incessante de fluidos. A obra não trata do replantio destas áreas, mas do que nesta vivência transcende a função destas futuras árvores; o plantio real dá-se na troca entre os seres envolvidos na tarefa de juntos, mentalmente, construírem esta nova hidrografia sentimental, na relação com o espaço agora constituído em lugar construído no ciclo do habitar."  

 

Referencias  

Bachelard, Gastón (2002) El água y los sueños. Madrid: Fondo de Cultura Económica .         [ Links ]  

Duque, Felix (2001) Arte publico y espacio político. Madrid: Akal, S. A.         [ Links ]  

Farah, Ivete (2008) Poéticas das arvores urbanas. Rio de Janeiro: Mauad X : FAPERJ.         [ Links ]

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: tigrejulio@gmail.com (Julio Cesar da Silva).

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