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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

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ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

SAUDADE, uma dimensão aporética na obra de Julião Sarmento

SAUDADE, an aporetic dimension in the work of Julião Sarmento

 

Manuela Bronze*

*Portugal, artista plástica e figurinista. Artes Plásticas, Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP); Master of Fine Arts in Costume Design, Boston University, EUA; Doutorada em Artes, Fac. de Belas Artes Pontevedra, Universidade de Vigo. Afiliação actual: Escola Superior de Música, Artes e Espectáculo (ESMAE), Instituto Politécnico do Porto.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Questionando a possibilidade de um registo visual da Saudade no âmbito das artes plásticas, esta reflexão considera a obra de Julião Sarmento como paradigmática desta inscrição. A partir de estudos de referência sobre a singularidade e problemáticas deste sentimento, é no cruzamento de afirmações e de obras de Sarmento que se pretende reconhecer o modo como essa possibilidade se justapõe ao discurso do próprio artista.

Palavras chave: Saudade, Julião Sarmento, memória, desejo.

 

 

ABSTRACT
Questioning the possibility of a visual record of Saudade within the visual arts, this reflection considers the work of Julião Sarmento as paradigmatic of this inscription. From reference studies and issues about the uniqueness of this sentiment, it's at the intersection of Sarmento's assertions and work that one intends to recognize how this possibility overlaps to the discourse of the artist himself.

Keywords: Saudade, Julião Sarmento, memory, desire.

 

 

Introdução

Julião Sarmento, nascido em Lisboa em 1948, vive e trabalha em Portugal, expondo frequentemente e com reconhecimento internacional, em Galerias e Museus nacionais e estrangeiros.

Sobre a sua obra, sobejamente comentada e analisada, muito foi dito e escrito contextualizando e enformando o nosso pensar; todavia, as suas narrativas da memória e do desejo assumem-se, entre outras, como referências próximas descodificáveis mesmo ao olhar do espectador mais desprevenido.

A deriva do espaço que nos fez sair pelo mar e para outros mundos contribuiu para que, na distância do tempo e do lugar, nos encontrássemos no estado dual -— passivo e motor — que se manifesta como um sentimento fundador da nossa essência idiossincrática. Uma espécie de desígnio de portugalidade reside nessa pulsão ontológica que é a Saudade. Localizado na expressão de domínio do tempo, o registo passivo (memória) aparece como verdade do conhecimento na ausência, enquanto o registo motor permanece como condição de imortalidade (desejo). Sentimento inconformado de perda que deseja a presença do ausente, é uma lembrança em constante expectativa do devir. Demasiado próxima à instância dos afectos, enquanto intimidade exposta, a Saudade repercute-se amplamente na lírica ibérica. Mas uma intimidade exposta não se canta apenas. Que transcendência visual incorpora ou configura a experiência desse sentimento para lá das palavras e dos sons?

Na verdade, não temos saudades, é a saudade que nos tem, que faz de nós o seu objecto. Imersos nela, tornamo-nos outros. Todo o nosso ser ancorado no presente fica, de súbito, ausente (Lourenço, 2011: 114).

 

1. "Nunca penso em termos de passado… Não sou saudosista, não sou melancólico (…) Estou sempre à espera do que vou fazer amanhã" (Sarmento / Espiral do Tempo, 2012).

Não será este carácter regressivo e passadista, lugar-comum que o vazio encerra, mas a simultaneidade da expressão nostálgica, carregada do desejo latente de completude (também esboçada nesta afirmação), que nos interessa reconhecer na obra de Julião Sarmento. Se a saudade na sua singularidade compreende o abrigo do futuro, 'unha transcendencia volitiva' (Piñeiro, 1984: 38), enquanto sentimento nostálgico, é essa positividade que a afasta da fixação obsessiva no passado a que se submete, irremediavelmente, a melancolia.

Na vertigem de um acontecimento, esta escultura (Figura 1), como que instalada à 'margem do mundo' (Lourenço, 2011: 88) instaura uma relação ambígua entre pudor e exibição: um vestido preto envolve o volume de um corpo de mulher, descalça, sem cabeça; uma corda contorna-lhe o pescoço, esticada de um ponto da parede. A depuração mórfica dos elementos adensa o mistério provocado pela narrativa fragmentada, qual frame de um filme; um desejo contido na história do personagem que vemos amarrado a uma memória qualquer. Enquanto memórias objetuais presentificadas, as narrativas pessoais que se fazem transportar no vestuário dão lugar a cruzamentos anacrónicos. Estes cruzamentos, delimitados na tensão entre esquecimento e lembrança, podem identificar-se nos valores semânticos e plásticos depositados tanto nas matérias têxteis como nos objetos e instalações que os contextualizam. A produção artística é essa capacidade que temos de escolher um novo continuum material (Eco, 1993: 211) ao qual se atribui uma função sígnica que transforma ideia em forma. 'A roupa tende pois a estar poderosamente associada com a memória ou, para dizer de forma mais forte, a roupa é um tipo de memória' (Stallybrass, 1999:14) que, na associação de ideias e na exposição cénica, cria uma possibilidade de leitura substantiva de equivalências plásticas e sinestésicas.

 

 

2. "Por vezes há quem considere que o meu trabalho é erótico; acerca do desejo... Será verdadeiramente isso? Sinceramente, eu próprio me questiono se, realmente, trabalho sobre o desejo? Penso que não mais do que qualquer outra pessoa." (Sarmento/ Klonarides, 2006)

Como falar destas formas imbricadas de memória e de desejo, sem mencionar Saudade? Será porventura impossível aceitar que a resolução desse impasse relacional, que a Saudade encerra, não possa inscrever-se definida e visualmente em cada uma destas esculturas ou nas suas pinturas? Será apenas preconceito? Não será a Saudade um modo de ser complexo que inventamos para nós?! Enquanto sentimento, a saudade, torna-se matriz referencial, ideia e mito que nos permite ficcionar um devir em constantemente recusa da realidade (Figura 2). Algo que nos revela de forma paradoxal que 'a intimidade não é, em saudade, estar em si, mas é ser excedência, procurando-se fora de si, em aperfeiçoamento ontológico' (Pereira; Rodrigues, 2008: 211)

 

 

3. "Tudo em mim passa pelo corpo. Pelo sentido do toque. Pelo sentir das coisas. (…) Permanece intacto o sentido do Desejo. E reflete-se no trabalho. É mutante" (Sarmento / Ribeiro, 2012).

Toda a questão sensorial que emanada do objecto, acontece por via do autor, que não pode inventar-se outro. J. Sarmento desloca a reconfiguração da esfera privada para o olhar do espectador, como se se tratasse uma alteridade íntima. Trata da intimidade do corpo, apresentando-o sempre como um entidade fragmentária e depurada, as mais das vezes, vestido de negro; qual ruralidade ou sofisticação enlutada por grafite, carvão, linho, algodão ou cetim. Trata da intimidade doméstica, desenhada nas casas, onde os limites do traçado de planta apenas, já só abrigam ausências de silêncios compassivos (Figura 3). Trata da intimidade solitária da leitura, como uma afirmação plasmada do pensamento que se desenha. "A saudade (que mais podia ser?) é apenas isto: a consciência da temporalidade essencial da nossa existência, consciência carnal, por assim dizer, e não abstracta, acompanhada do sentimento subtil da sua irrealidade" (Lourenço, 2011: 116).

 

 

O vazio nostálgico, "(…) profundo ensimesmamento, com abandono de alteridade, como se o saudoso vivesse absorto nas imagens passadas," distancia-se da saudade pelo seu carácter de cessação. "A saudade como mesmidade aceita a alteridade, tal como o mesmo aceita o outro, sem o qual o mesmo não sabe que é o mesmo" (Gomes, 2008: 82).

 

4. "Apenas utilizo os meios segundo as suas propriedades...para chegar a um sítio… o importante é que chegue. O que me interessa é o discurso …" (Sarmento/ Máxima, 2012)

Já as grandes pinturas brancas, 'que não são exatamente pinturas' (Celan/ Sarmento: 1997, 148) e que não são exatamente brancas no sentido acético do termo, são brancas no sentido orgânico e vivido do humano, tal com a espuma dos dias (Figura 4). Carregadas de material, as telas recebem, a negro, grafismos de episódicas narrativas, Inscrições que podem ser-nos muito íntimas, fragmentos do tempo onde a memória gera o desejo. Assim, neste jogo de contrários, fica por saber se a dimensão física da pintura é o limite ou se as configurações figurais desenhadas e preenchidas a negro são os verdadeiros limites do desassossego.

 

 

Com efeito, nas esculturas (Figura 4), instaladas em 'espaço branco', é o espectador quem, verdadeiramente, define o limite. Ora se aproxima, ora se afasta, ora toca essa forma de mulher translúcida e vestida de negro simplesmente, na escala 1:1. Uma eminência que separa e que relaciona, transfigurando a transitoriedade do desejo na presença da memória, "…uma referência a uma rapariga, num quarto, com um vestido-camiseiro. Estava a vestir o vestido. Foi uma imagem que me ficou. Ela a apertar os botões, de cima para baixo…" (Sarmento/Ribeiro, 2012) como em 'O raio sobre o lápis', o livro que JS ilustrou para Mª Gabriela Llansol.

5. "É uma mulher à espera, constantemente à espera. Nunca vai a lado nenhum e nunca chega a lado nenhum" (Sarmento/Ribeiro, 2012).

Mais uma vez, traduzir a ideia de tempo na ideia de espera pressupõe uma reflexão sobre a não apropriação do tempo, isto é, sobre o verdadeiro sentido da suspensão, que anula a convenção linguística do antes e do depois, deste modo desconstruindo o que há de racional na utilização do relógio (Figura 5). Como se fosse numa evocação, o tempo é uma presença ausente para a mulher que espera, uma espécie de matéria do desejo.

O tempo da Saudade é, portanto, um tempo sem passado, sem presente e sem futuro, a sua vivência, dando-se ao nível da consciência, anula a importância de qualquer marcação de duração de extensão. Diríamos, pois, que a extensão da Saudade é puramente temporal, e que essa temporalidade é a experiência imediata do confronto com a irreversibilidade como verdade (Noronha, 2007: 203).

 

 

Conclusão

O que nos revela e torna fascinante a obra de J. Sarmento é o que ela releva da sua capacidade de se pensar e de se ficcionar. Coisa, aliás, pouco comum à matriz do imaginário português e que de modo algum garante a coincidência entre o discurso do sujeito criador e a interpretação do sujeito leitor. Com base nos excertos das entrevistas, identificámos tópicos que geram a tensão relacional dos opostos que caracterizam o seu discurso visual. J. Sarmento tem uma linguagem própria, onde o jogo dos contrários é uma constante. Um modo seu que é diverso do dos outros e que, por ser profundamente genuíno, "se vai buscar à vida (...) uma forma de aprender a partir das sensações, do prazer, do conhecimento e de tudo aquilo que, conjugado, ajuda a construir uma nova realidade" (Sarmento/Templon, 2012) para revelar um conjunto de realidades e vivências que configuram uma pulsão radicada na experiência da ausência.

Não se corre grande risco ao afirmar que, de um modo geral, qualquer artista começa por surpreender-se com o seu próprio trabalho, para depois se surpreender ainda com as descobertas do espectador. Há o olhar do artista e o olhar do espectador. Contudo, uma prolongada série de exposições remete o artista 'a viver fora de si mesmo' (Lourenço, 2011: 22) e com um outro olhar. Olhares que se cruzam, assim questionando 'a distância entre o artista e a obra, a distância entre o espectador e a obra, a distância entre o espectador e o artista' (Sarmento/Lacasaencendida, 2012).

Nas obras de Julião Sarmento a representação do corpo feminino é metáfora da própria Saudade, esse 'supremo ícone da cultura portuguesa' diria Pascoaes) como se a mulher fosse o lugar (presente) onde se inscreve a improvável coincidência da aporia, com toda a sugestão das suas conotações semânticas. Rodeada de suspensões que lhe conferem toda uma carga dramática, a uma camada de dimensão pessoal na esfera da sua individualidade constitutiva, vem sobrepor-se essa outra que traz consigo uma certa ideia de portugalidade, como se a persistência geográfica do artista se tivesse, literalmente, contaminado pelo espírito do lugar.

 

Referências:

AAVV (2008) in Sobre a Saudade – Actas do III Colóquio Luso-Galaico, Sintra, Zéfiro.         [ Links ]

Celant, Germano (1997) "Julião Sarmento: una rivelazione sensuale, (ensaio/entrevista)".Julião Sarmento, Lisboa: Assírio & Alvim.         [ Links ]

Eco, Umberto (1993) Tratado Geral de Semiótica, 2º ed., Lisboa: Editorial Presença.         [ Links ]

Gomes, J. Pinharanda (2008) "Saudade, Esperança e Metanóia" in Sobre a Saudade – Actas do III Colóquio Luso-Galaico, Sintra: Zéfiro.         [ Links ]

Lourenço, Eduardo (2011) Portugal como destino/Mitologia da Saudade, 4ª ed., Lisboa: Gradiva.         [ Links ]

Noronha, Maria Teresa de (2007) A SAUDADE: Contribuições fenomenológicas, lógicas e ontológicas. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.         [ Links ]

Pereira, Paula C. e Vera Rodrigues (2008) "A Saudade: Gramática e Espaço -Horizonte da Intimidade" in Sobre a Saudade Actas do III Colóquio Luso-Galaico, Sintra: Zéfiro.         [ Links ]

Piñeiro, Ramón (1984) Filosofía da Saudade, Vigo: Ed. Galáxia,         [ Links ]

Sarmento / Máxima (2012) entrevista. [Consult. 2012-01-13] Disponível em http://videos.sapo.pt/TqZd9hqZEZhLZzm4huY1         [ Links ]

Sarmento / Espiral do Tempo (2012) entrevista. [Consult. 2012-01-9] Disponível em http://www.espiraldotempo.com/2012/05/28/3187/         [ Links ]

Sarmento/Klonarides (2006) FilmeNoir, CGrimesGalery, entrevista. [Consult. 2012-01-9] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=pEhWeaQsC8U         [ Links ]

Sarmento / Ribeiro (2012) [Consult. 2012-01-9] Disponível em http://www.maxima.xl.pt/entrevistas/14323-as-artes-de-juliao.html         [ Links ]

Sarmento / Lacasaencendida (2011) Distancias Cortas. [Consult. 2012-01-9] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=DJ-Rms3PgCE         [ Links ]

Sarmento / Templon (2012) Quelques Jeux Interdits, Galerie Daniel Templon, Paris. [Consult. 2012-01-9] Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=59KcwtUFrvY         [ Links ]

Stallybrass, Peter (1999) O Casaco de Marx: Roupas, memória, dor. Belo Horizonte: Autêntica.

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: manuela.bronze@gmail.com (Manuela Bronze).

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