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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A tactilidade na obra Vitalino de Jarbas Jacome

The tactility of Jarbas Jacome's artwork Vitalino

 

Soraya Braz* & Fábio Oliveira Nunes**

*Soraya Braz: Brasil, artista multimídia. Graduação em Artes Plásticas pela USP; Mestranda do Programa de Pós Graduação em Artes da UNESP e bolsista CAPES.

**Fábio Oliveira Nunes: Brasil, artista multimídia. Graduação em Artes Plásticas pela UNESP; Mestrado em Multimeios pela UNICAMP; Doutorado em Artes pela USP.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Em homenagem ao ceramista brasileiro Mestre Vitalino, o artista multimídia Jarbas Jacome produziu a obra Vitalino, uma instalação interativa onde o visitante modela um bloco virtual que mimetiza a ação sobre um bloco de barro em rotação. A obra suscita discussões sobre tactilidade em trabalhos de arte digital, vislumbrando processos que problematizam a própria tecnologia.

Palavras-chave: arte e tecnologia, tactilidade, arte e mídia, mimetismo.

 

 

ABSTRACT
In honor of the Brazilian master ceramist Vitalino, the multimedia artist Jarbas Jacome produced the artwork Vitalino, an interactive installation where the visitor models a virtual block that mimics the action of a block of clay in rotation. The work raises discussions on tactility in digital artworks, glimpsing cases that question the technology itself.

Keywords: art and technology, tactility, media art, mimicry.

 

 

1. Tactilidade midiatizada

Em 2010, o jovem artista multimídia brasileiro Jarbas Jacome produziu a obra Vitalino (Figura 1), uma instalação interativa onde o visitante é convidado a modelar um bloco virtual diante de uma área que, embora pareça vazia, possui um sistema que capta os movimentos dos dedos e os processa digitalmente para modificar a imagem do bloco virtual projetado sobre uma parede. A "matéria" virtual disposta mimetiza a ação sobre um bloco de barro em rotação, tal como um torno de cerâmica. O sistema do trabalho consiste em uma área com iluminação controlada, onde duas webcams posicionadas perpendicularmente capturam o movimento das mãos. O software Vimus, desenvolvido por Jacome, que é também músico e possui formação em Ciências da Computação, processa a informação captada pelas câmeras juntamente com a imagem do bloco virtual composto de voxels (volumetric pixels), um tipo de pixel tridimensional. Os voxels apagam-se quando são "tocados" pela mão do visitante.

 

 

Nesta obra, Jacome referencia o artesão do sertão brasileiro Mestre Vitalino (1909-1963), um ceramista que traduziu o imaginário popular e o cotidiano do nordeste brasileiro em expressivas cerâmicas figurativas, modeladas à mão por ele e por seus filhos. Em 1947, o fotógrafo francês Pierre Verger documentou o processo de produção de Mestre Vitalino, praticamente todo artesanal, desde a coleta da argila à beira do rio até a queima da cerâmica em um forno construído pelo próprio artesão. Em diversos momentos, Verger registra as mãos do artista manipulando a argila e modelando as figuras, enfatizando sua habilidade manual. O próprio Mestre Vitalino considerava que em sua terra era mais importante que se aprendesse a usar as mãos do que a cabeça. E Jacome apropria-se desse discurso para invocar a tactilidade na fruição da obra Vitalino: "use as mãos, não use a cabeça, para modelar no barro de voxels, onde o tato físico não existe". O artista estabelece uma linha sensível entre a habilidade manual e o processamento digital da máquina, que se nutre do distanciamento entre a fisicalidade e tactilidade – propõe-se um tato que não é puramente físico.

Desde surgimento das interfaces digitais controladas por mouse nossa experiência com o computador tem sido cada vez mais tátil. As interfaces permitem o diálogo "entre o universo da informação digital e o mundo ordinário" (Lévy, 1999: 37). Em especial, as interfaces táteis são cada vez mais difundidas, presentes em tablets, smartphones e outros modernos dispositivos touch com telas sensíveis aos dedos – que arrastam objetos, mancham superfícies como se estivem embebidos em tinta, apagam ou desfazem elementos. Há ainda sistemas que abarcam outros domínios de contato com o corpo do usuário, como no caso dos tapetes de dança (o jogador pisa sobre o dispositivo para controlar o jogo). Em um exemplo bastante significativo, temos a instalação 9/4 Fragmentos de azul (1997) do artista brasileiro Gilbertto Prado que utiliza monitores sensíveis ao toque. Na instalação, o visitante é imerso em imagens de céus a serem tocados e manipulados pelos dedos do visitante, que são refletidas no piso espelhado do ambiente. O trabalho se sustenta em uma relação tátil impossível: tocar nuvens. Derrick de Kerckhove ao abordar interfaces que operam "metáforas dos sentidos" (Kerckhove, 1993: 59) nos atenta para o fato de que nossas fáceis distinções entre a objetividade (o 'externo') e a subjetividade (o 'interno') deixam de ser completamente confiáveis à medida que esta fronteira torna-se indistinta (ibidem, p.58). O fato é que esses dispositivos não só ampliam nossos inputs sensoriais, como almejam sua indistinção às propriedades do mundo físico.

No universo da tecnocultura, já nos acostumamos com essa indistinção no domínio das imagens: o conceito de midiatização – os meios entre os sujeitos – (Sodré, 2006), a compreensão de que todo fato "para ser reconhecido como real deve ser midiatizado" (Gomes, 2006: 138), reforça a potencialidade da mídia – e por extensão, da tecnologia – de já não mais preceder o que realmente existe. Baudrillard (1991) aponta para situações que não são mais precedidas pelo "real", em outras palavras, a representação substituída pela simulação dita como "original" – o simulacro. No universo dos sentidos, a experiência com uma "matéria digital" pode ser construída com o repertório da fisicalidade que conhecemos, assumindo certa ambiguidade entre o que é "real" ou "imaginário". Um dos pontos culminantes deste processo é a chamada Impressão 3D, tecnologia para a construção de objetos tridimensionais sólidos a partir de modelos digitais, permitindo, agora, conferir aos objetos virtuais, a fisicalidade própria das coisas.

 

2. Tactilidade pode ser uma postura política?

Voltando-se a Jacome, anteriormente à obra Vitalino, o artista realizou outro projeto chamado Crepúsculo dos Ídolos (2008). Trata-se de uma instalação onde há cinco televisores ligados em um canal de TV aberta, uma câmera e um microfone posicionado em frente delas (Figura 2). Quando algum visitante resolve falar (ou produzir qualquer som) através do microfone, a imagem da TV é distorcida em diferentes cores crepusculares até que, na persistência do falante, a imagem do canal desaparece por completo, sendo substituída pela imagem do visitante. Essa transição acontece em meio a vários efeitos visuais oriundos do mesmo software criado pelo artista, também usado em Vitalino posteriormente. O trabalho Crepúsculo dos Ídolos aborda uma tomada simbólica dos meios de comunicação de massa pela figura dos anônimos, reflexo da Internet como meio essencialmente colaborativo que corrói a hegemonia unidirecional de 'um para todos' (Lévy, 1999, p.83), criando novas percepções diante dos meios para um indivíduo menos comprometido com a contemplação. Insurge a interatividade como situação para um espectador atuante, como bem situa o artista e teórico Julio Plaza (2003): "a interatividade não é somente uma comodidade técnica e funcional; ela implica física, psicológica e sensivelmente o espectador em uma prática de transformação". Tanto Crepúsculo dos Ídolos quanto Vitalino posicionam o visitante – agora, interator – em seu centro, um elemento imprescindível para que cada obra aconteça em sua plenitude.

 

 

Cabe acrescentar que Jacome atua ativamente em um coletivo chamado LaboCA (acrônimo de Laboratório de Computação e Artes), junto com os jovens artistas-programadores brasileiros Jeraman e Ricardo Brazileiro. O coletivo se dedica a realizar laboratórios nômades, promovendo a tecnologia como linguagem criativa e como processo de desenvolvimento artístico. Aos artistas, a iniciativa atua como neutralizadora do universo restrito do desenvolvimento de hardware e software por uma elite de programadores – estes, mitificados e até mesmo 'idolatrados', como defendido pelos artistas em suas apresentações. Os artistas empenham-se em realizar atividades que difundam o uso de tecnologias opensource – os chamados softwares e hardwares livres – que se constituem em um modelo alternativo a distribuição e produção comercial, já que são gratuitos e baseados em iniciativas colaborativas, lançando novos paradigmas de autoria. Ao desmitificar a programação para o uso dos artistas, Jacome e seus colegas naturalmente se aproximam da ideia de que o artista dos novos meios deve ter plena consciência das etapas produtivas envolvidas em seu processo de criação, tal como o próprio Mestre Vitalino assim dominava seu ofício.

Mas, voltando-se à tactilidade: seria esta uma postura política do artista? Sabemos que em regra, tomamos por tátil aquilo que é próximo de nós, ao nosso alcance, enfim, íntimo – tal como tocamos aqueles que queremos bem. Esse domínio íntimo do tato é muito bem traduzido pela artista argentina Paula Gaetano Adi na obra Alexitimia (2006), baseada em um robô que interage com os visitantes com uma significativa linguagem corporal: a criatura (uma semiesfera de pele artificial) simplesmente põe-se a suar quando é tocada. A dimensão tátil nas artes tecnológicas não está, assim, restrita ao que proporciona enquanto interface, mas aos significados que essa aproximação pode representar.

Em Vitalino, que aparenta ser um trabalho muito menos politizado do que Crepúsculo dos Ídolos, ao aproximarmos da experiência do artista com as ações desmistificadoras do LaboCA, está estabelecida uma discussão latente: a tecnologia pode ser tão acessível às nossas mãos quanto um bloco de barro? Poderíamos ter a mesma intimidade diante de um meio extremamente mitificado como o tecnológico? O bloco de voxels, traz a tecnologia em seu estado mais intuitivo: basta aproximar sua mão para interagir com essa matéria midiatizada. É, sem dúvida, também um processo de desmitificação tecnológica, certamente muito menos panfletário ou crítico que outras manifestações, mas eficiente em traduzir através de tactilidade, preocupações sobre uma condição tecnológica presente.

 

Referências

Baudrillard, Jean (1991). Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D'água.         [ Links ]

Gomes, Pedro Gilberto (2006). Filosofia e ética da comunicação na midiatização da sociedade. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos.         [ Links ]

Jacome, Jarbas (2006) Crepúsculo dos Ídolos [site pessoal do artista Jarbas Jacome]. [ Consult. 2013-01-06] Disponível em URL: http://jarbasjacome.wordpress.com/crepusculo-dos-idolos/ .         [ Links ]

Jacome, Jarbas (2006) Vitalino [site pessoal do artista Jarbas Jacome].[Consult. 2013-01-06] Disponível em URL: http://jarbasjacome.wordpress.com/vitalino/.         [ Links ]

Kerckhove, Derrick de (1993). "O senso comum, antigo e novo." In: Parente, André (org.). Imagem máquina. 3a ed. Rio de Janeiro: Ed. 34.

Lévy, Pierre (1999). Cibercultura. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Instituto Itaú Cultural (2007) Mestre Vitalino. Enciclopédia Itaú Cultural Artes Visuais. [Consult. 2012-12-07] Disponível em: URL: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=4457.         [ Links ]

Plaza, Julio (2003) "Arte e interatividade: autor-obra-recepção." ARS – Revista do departamento de Artes Plásticas ECA/USP. Ano 1, n. 2. São Paulo, ECA/USP. pp. 09-29.         [ Links ]

Sodré, Muniz (2006). "Eticidade, campo comunicacional e midiatização." In: Moraes, Dênis de (org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad. pp. 19-31.         [ Links ]

 

 

Agradecimentos

Os autores agradecem ao apoio de FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Brasil.

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: sorayabraz@gmail.com (Soraya Braz).

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